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sábado, 5 de maio de 2007

Milagres: milagre e milagres: como identificá-los?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 176/1974)

Em síntese: O milagre, na teologia e na apologética católicas, não é simplesmente um feito que derrogue às leis da natureza, suscitando admi­ração e surpresa nos seus observadores, mas é, antes do mais, um sinal ou uma palavra "plástica" de Deus aos homens. Em conseqüência, entenda-se por "milagre" um acontecimento real, que seja inexplicável aos olhos da ciência contemporânea e que ocorra em autêntico contexto religioso como resposta de Deus a esse contexto.

O autêntico milagre, para a apologética católica, não poderá ser:

- um fenômeno de experiência meramente individual, que os homens não possam reconhecer por critérios objetivos,

- nem um fenômeno ambivalente, Isto é, suscetível de dupla inter­pretação (a natural e a sobrenatural),

- nem uma cura de moléstia funcional-(requer-se moléstia orgânica tida como incurável pela medicina contemporânea),

- nem algo que se verifique em ambiente de imoralidade, charlata­nismo, cobiça de lucros financeiros, sensacionalismo, arrogância em relação a Deus...

Ao contrário, o autêntico milagre se realiza em contexto de prece humilde, fé autêntica, e dá frutos de conversão à verdade, repúdio do pe­cado, concórdia e caridade entre os homens.

- Caso seja a cura de alguma moléstia orgânica devidamente diagnosticada, requer-se que seja instan­tânea ou quase instantânea.

É mediante tais critérios que se podem distinguir de falsos portentos (devidos à ilusão ou a forças ocultas) os verdadeiros milagres, sinais de Deus que confirmam uma mensagem ou um arauto da verdadeira fé.

***

Comentário: É significativo o interesse de grande parte da humanidade de hoje por fenômenos extraordinários: curas, revelações, profecias, possessão diabólica, etc. Os jornais não raro noticiam prodígios ocorridos em igrejas ou em centros religiosos, suscitando os mais diversos comentários dos leitores: enquanto uns acreditam com facilidade em tais notícias, outros se mostram reservados ou céticos. A cautela destes explica-se pelo fato de que muitos dos fenômenos outrora tidos como pre­ternaturais ou sobrenaturais[1] hoje em dia vem sendo mais e mais explicados pelas ciências naturais e humanas. Este pro­gresso do saber científico leva mesmo grande número de pes­soas a descrer da realidade ou até da possibilidade do milagre. Até os portentos realizados por Jesus, segundo o Evangelho, são assim postos em xeque.

Visto que se requerem idéias claras a este respeito, propo­remos abaixo a posição da teologia católica frente ao problema, encarando o conceito de milagre e as características tanto do autentico como do falso prodígio.

A respeito dos milagres de Jesus nos Evangelhos, já há artigos em PR 171/1974, pp. 91-103; 134/1971, pp. 75-81; 135/1971, pp. 106-115; 136/1971, pp. 181-188.

1. Que é milagre?

1. Na linguagem comum, costuma-se entender por «mila­gre» um fato maravilhoso ou extraordinário que suscite admi­ração ou espanto (o termo miraculam latino vem da mesma raiz que admirar). Com outras palavras: milagre seria um fato contrário às leis da natureza e, por isto, só explicável por especial intervenção do Criador.

Ora em nossos dias os fatos “maravilhosos” são cada vez mais elucidados pelas pesquisas cientificas, de modo a já não suscitarem admiração. Além disto, as leis da natureza vão sendo concebidas de nova maneira e os conceitos da Física se vão al­terando, de sorte a tornar pálido e dúbio para muitos estudio­sos o conceito de “infração das leis da natureza”.

É este questionamento que leva os teólogos a lembrar algo da história do conceito de milagre.

2. Nos Evangelhos, o milagre é considerado, antes do mais, como sinal, isto é, como Palavra de Deus que interpela o homem e o ajuda a proferir um ato de fé na mensagem trans­mitida por Cristo. Quem vê um sinal, é incitado a crer, ... a crer na palavra de Jesus, que fez o sinal.

Tenham-se em vista, entre outros, os seguintes textos

Jo 3,2: Diz Nicodemos a Jesus: "Ninguém pode fazer os sinais que fazes, se Deus não está com ele".

Jo 2,11: "Este foi o primeiro dos sinais de Jesus. Ele o cumpriu em Caná da Galiléla. Manifestou a sua glória e os seus discípulos creram nele".

Em Jo 11,4, o último milagre de Jesus também é apresentado como sinal: "Essa doença não é mortal; mas é para a glória de Deus; deve servir à glorificação do Filho de Deus".

Em Jo 11,48-53, os fariseus, após a ressurreição de Lázaro, deliberam: "Que faremos? Esse homem (Jesus) realiza muitos sinais. Se o deixarmos agir, todos acreditarão nele".

Em Lc 5,8, após a pesca milagrosa. Pedro prostrou-se aos pés do Mestre e exclamou: "Afasta-te de mim, Senhor, pois sou um pecador".

Mc 2,9-11: "Que é mais fácil: dizer ao paralítico ‘Teus pecados te são perdoados?’ ou dizer-lhe 'Levanta-te, toma o teu leito e anda'? Para que saibais que o Filho do Homem na terra tem o poder de perdoar os pecados, (diz Jesus ao paralítico): 'Levanta-te, toma o teu leito e vai para casa!’"

Nos primeiros séculos, os Padres da Igreja, ao considera­rem os milagres insistiam sobre o seu caráter de sinal salutar mais do que sobre o de manifestação de poder. O milagre, para eles, era o selo ou sinete que autenticava a verdadeira revela­ção feita por Deus aos homens. Não era o acontecimento portentoso como tal que lhes interessava, mas a finalidade e a fun­ção do mesmo na vida de fé do cristão.

Na Idade Média, porém, a partir de S. Anselmo de Can­tuária (+ 1109), deslocou-se o enfoque dado pelos teólogos ao milagre: mais do que o sinal, começaram a acentuar no milagre a manifestação do poder de Deus como tal: “Um fato é mila­groso, quando ultrapassa o poder de toda criatura”, diz S. Tomás, sem se importar diretamente com a índole de sinal, que vinha a ser, no caso, um acessório (cf. S. Teol. I, qu. 110, a. 4c).

O motivo pelo qual se deslocou o enfoque, é o seguinte: os Padres da Igreja seguiam de preferência a filosofia platônica, que é propensa a considerar as realidades visíveis como ima­gens das invisíveis; nessa mentalidade, a noção de sinal é clara e óbvia; adotando-a, os Padres da Igreja não tinham dificuldade em ver nos milagres (curas, ressurreições, restauração da or­dem corporal.. .) acenos às realidades espirituais ou sinais de Deus. Na Idade Média, porém, o sistema filosófico predomi­nante entre os teólogos foi o aristotelismo; este se preocupa mais com as noções de causa e efeito do que com a de sinal; é mais guiado pela razão do que pela intuição. Daí a nova acen­tuação que a teologia medieval passou a dar ao milagre: con­siderou-o, antes do mais, como um efeito que ultrapassa a causalidade natural das criaturas; em conseqüência, julga-se que, quanto mais um efeito parece extraordinário, tanto mais preenche as condições de milagre.

O conceito medieval perdurou entre os teólogos até fins do séc. XIX: o milagre foi sendo mais e mais considerado como feito que evidentemente se opõe às leis da natureza e, por con­seguinte, deve ser causado pelo Criador. O valor de sinal, nessa conceituação, era menos explicitado, se não silenciado.

3. Finalmente no início do séc. XX registrou-se na teolo­gia a tendência a voltar ao conceito bíblico e patristico de mila­gre. Este de novo foi sendo entendido como sinal ou palavra­-feito de Deus. É este o conceito dominante hoje na teologia católica, que assim formula o seu pensamento

Milagre é

a) um fato real,

b) totalmente inexplicável pela ciência de nossos dias,

c) realizado em autêntico contexto religioso, como sinal ou resposta de Deus a esse contexto.

Percorramos cada um dos elementos desta descrição

a) Fato real... Antes do mais, requer-se que o episódio apresentado como possível milagre seja um episódio real, his­tórico. Sabe-se quanto a imaginação é fértil em criar casos maravilhosos ou, ao menos, em aumentar as dimensões estra­nhas de determinado episódio; o subconsciente, com as suas aspirações íntimas, a alucinação, a sugestão, são responsáveis por muitos dos casos que o rumor popular apresenta como mi­lagrosos, mas que na verdade nunca ocorreram ou só ocorre­ram com características perfeitamente explicáveis pela ciência e a razão.

Por conseguinte, diante da noticia de um fato portentoso, a primeira tarefa do estudioso será a investigação do grau de historicidade que toca a tal episódio. Muitos «milagres» e mui­tas dúvidas se dissipam logo, mediante tal pesquisa.

Tenha-se em vista a notícia, propalada na Guanabara em 1972, segundo a qual em Irajá aparecera milagrosamente uma imagem de Cristo esculpida na rocha. Muitos fiéis foram ao local, a fim de pedir graças e orar, quando após alguns dias se averiguou que a imagem nada tinha de milagroso, mas fora esculpida clandestinamente na pedreira local por mãos huma­nas

b) ... Inexplicável pela ciência contemporânea ao fato. A ciência moderna tem elucidado numerosos fenômenos que, na época de sua ocorrência, foram tidos como milagres.

Con­seqüentemente, muitas pessoas perguntam se os fenômenos hoje considerados milagrosos ainda o serão dentro de cinqüenta anos; extinguir-se-ia assim o conceito de milagre.

O pensador racionalista A. Sabatier (f 1901) dizia

"Nesse conflito entre o milagre e a ciência, o milagre será necessaria­mente vencido, pois o seu setor se estreita e diminui sempre mais, à me­dida que se enriquece e estende a ordem magnífica e soberana do cosmos" ('Esquisse d'une philosophie de la religion d'après la psychologie et I'l;is­toire". Paris 1897, p. 75).

Em resposta, dir-se-á

- há fatos, registrados pelo Evangelho (e por outros do­cumentos fidedignos), que a ciência não explica nem jamais explicará: tais são a ressurreição de um morto, a multiplicação de alimentos, a transformação de água em vinho, a sedação imediata de uma tempestade violenta.. .

- independentemente desta observação, o conceito de mi­lagre subsiste desde que a ciência contemporânea ao portento não o saiba explicar nem conheça pista para explicá-lo futura­mente. Basta a verificação de tais condições. - Em tal caso, dir-se-á que o fato foi produzido por Deus como sinal ou como resposta para as pessoas que acompanharam o acontecimento portentoso. A linguagem é algo de relativo ou algo que se deve adaptar à compreensão das pessoas interpeladas. Ora, se estas registram um evento que de modo nenhum parece passível de explicação nem no presente, nem no futuro, tais pessoas

pode­rão concluir que o prodígio se deve a uma intervenção explícita de Deus, que assim se quis manifestar mais pujantemente aos homens.

c) ... Realizado em autêntico contexto religioso... O mi­lagre-palavra vem confirmar, da parte de Deus, uma atitude religiosa dos homens: ora Deus só pode confirmar valores autênticos e verdadeiros. É por isto que, depois que a ciência contemporânea verifica a inexplicabilidade de determinado fato, a Igreja ainda não apregoa milagre; ela examina as circuns­tâncias em que o portento se deu: terá sido resposta a uma prece humilde, confiante, inspirada pela verdadeira fé ? Terá servido para confirmar um servidor de Deus cuja doutrina ou cujo comportamento precisavam da chancela do próprio Deus? - Ou será que o prodígio se verificou em contexto de magia, crendices, superstições, culto ao demônio,

etc.? Caso se veri­fique a primeira hipótese, a Igreja reconhece o milagre-sinal de Deus. Caso, porém, se dê a segunda alternativa, a Igreja atribui o portento à ação de forças maléficas, ou seja, ao demô­nio (o que na verdade é ocorrência muito rara, que não se há de supor com facilidade).

Em conclusão, deve-se afirmar que o milagre não é sim­plesmente um fenômeno físico, ao qual sobrevenha a função de sinal. Mas, por sua própria índole, o milagre é um sinal ou uma palavra «plásticas dirigida por Deus a determinada por­ção da humanidade, a fim de suscitar a fé dos homens ou tornar mais facilmente acreditável aquilo (a mensagem ou a pessoa) que o milagre assinala.

Passemos agora à consideração das

2. Características do autêntico milagre

Foi dito atrás que todo milagre é um sinal ou uma palavra de Deus aos homens. Ora, para que essa palavra possa ser reconhecida e utilizada pelos teólogos - principalmente pelos apologistas da fé - como testemunho válido para todos os homens, é necessário que ela tenha certas características.

Procuraremos, pois, enunciar abaixo as notas distintivas do genuíno milagre-sinal de Deus para os homens, distribuin­do-as por dois subtítulos: características negativas e

caracte­rísticas positivas.

2.1. Critérios negativos

Não são reconhecidos como sinais que a apologética utilize para seus fins

2.1.1. Os fenômenos ambivalentes

Há, sim, fenômenos suscetíveis de dupla interpretação: a natural e a sobrenatural. Com outras palavras: certos aconte­cimentos se podem verificar tanto em contexto religioso como em contexto puramente natural, psicológico ou parapsicológico. Tais são os fenômenos que por vezes acompanham a experiên­cia mística: visões, vozes interiores, êxtases, estigmas, sonhos premonitórios, adivinhação do pensamento...

Todos estes fenômenos podem, sem dúvida, ter uma causa sobrenatural (intervenção extraordinária de Deus), mas são igualmente suscetíveis de explicação natural, que apela para reações psicológicas ou parapsicológicas. Já que é assaz difícil distinguir a verdadeira causa de tais fenômenos, a teologia ca­tólica não costuma utilizá-los em seus tratados de apologética. Com isto não se diz que as visões, os estigmas ou outros fenô­menos atrás apontados jamais sejam de origem sobrenatural; apenas observamos que as pessoas sem fé diante de tais fenô­menos poderão sempre apelar para causas naturais - o que torna ineficaz o sinal ou a palavra que o apologista católico poderia deduzir desses mesmos acontecimentos.

Não raro os adversários da Igreja impugnam tais fenô­menos e os ridicularizam, como se, para a Igreja, fossem mila­gres aptos a favorecer a fé. Ora tal não é o modo de pensar da Igreja. - Doutro lado, acontece que multas pessoas piedo­sas valorizem exageradamente tais expressões ambivalentes (vozes, estigmas, aparições, visões...) como se fossem neces­sariamente sinais de intervenção divina ou de comunicação com os espíritos do Além; não se creia isto, dado que tais fatos podem ser reduzidos à atuação de causas puramente psicoló­gicas ou parapsicológicas.

A respeito de estigmatização, vejam-se ulteriores considerações em PR 54/1962, pp. 214-224.

2.1.2. Os fenômenos de experiência meramente individual

Há fatos que podem ser realmente milagres genuínos, mas que só uma determinada pessoa vive e conhece. Tais fatos serão verdadeiros sinais de Deus para a pessoa assim agraciada, mas não poderão ser utilizados pela apologética como mensagem des­tinada por Deus a todos os homens. Tais sinais têm algo de incomunicável, pois implicam um tanto de experiência imediata e de intuição, que não se pode enquadrar em um esquema objetivo e válido para o grande público.

Aliás, muitas das nossas certezas mais arraigadas e firmes são incomunicáveis; se as tentássemos relatar, não seriam en­tendidas ou se tornariam talvez objeto de menosprezo. Não obstante, são certezas fundamentadas e válidas.

Tenha-se em vista, por exemplo, um caso freqüentemente relatado nas vidas de santos. Um homem de Deus, movido pelo puro desejo de servir ao Senhor, contraiu pesadas dívidas... Aproximando-se a data de pagá-las, vê o seu cofre vazio. To­davia permanece em paz e se refugia na oração, certo de que o Pai do céu não o abandonará. Ora acontece que um visitante desconhecido vai procurá-lo; depois de palavras banais, deixa­-lhe discretamente uma esmola e se vai; era precisamente a quantia necessária para cobrir as dividas... ! - Pois bem; o fato parece ser sinal nítido da Providência Divina, que houve por bem responder milagrosamente às preces do seu servidor. Sem querer negar o milagre, diga-se, porém, que para o grande público não se pode fazer de tal fato uma prova apodíctica da intervenção divina; com efeito, os ouvintes poderiam anelar para mera coincidência não intencional...; poderiam dizer que o benfeitor foi, por um conjunto de circunstâncias naturais, admoestado a respeito da situação trágica do beneficiário; poderiam também alegar que se tratou de um fenômeno de tele­patia ou de sugestão. Apesar de tudo, porém, quem tivesse vivido tal experiência, não seria um doente nem um simplório, se insistisse em julgar, com certeza inabalável, que Deus o teria agraciado milagrosamente.

2.1.3. As moléstias funcionais

As curas de doenças são os fenômenos mais freqüente­mente apontados como milagrosos. Por isto é que neste setor se impõem rígidas cautelas a fim de não se confundir milagre com outros fenômenos.

Comecemos por distinguir entre doenças orgânicas e doen­ças funcionais.

Nos casos de moléstia orgânica, há um órgão afetado em sua integridade anatômica ou histológica ou deformado e dege­nerescente, de modo a estar em vias de perecer lentamente. Certos processos de destruição ou degenerescência dos tecidos são, no estado atual da medicina, irreversíveis e, por conse­guinte, irrecuperáveis. Outros processos desse tipo estão sujei­tos à recuperação dentro de certas proporções e prazos.

Outras moléstias são meramente funcionais, não dependen­do de lesão física, mas de perturbação do sistema nervoso; têm causas psicológicas; donde o nome de moléstias «psicogê­nicas». Quando tais causas psicológicas desaparecem, também as suas conseqüências ou os distúrbios funcionais cessam, até mesmo quase instantaneamente. Tais são, entre outras, as per­turbações histéricas pseudo-orgânicas, que apresentam todos os sintomas de uma lesão orgânica sem que esta exista real­mente, ou, ainda, a pseudo-peritonite tuberculosa sem a pre­sença de bacilos.

Há quem fale também de moléstias psicossomáticas, nas quais um fundo nervoso está associado a lesões orgânicas. Em alguns casos, o elemento psíquico predomina e é diretamente responsável por irritações orgânicas (dermatoses, úlceras, mo­léstias cardíacas...). Em outros casos, o fator orgânico (com seus bacilos, por exemplo) predomina, mas o estado psíquico ou afetivo do paciente influi poderosamente no curso da doença.

Pois bem. As doenças funcionais ou nervosas ou mesmo as doenças orgânicas de origem nitidamente psíquica ou nervosa não vêm ao caso, quando se trata de milagre na apologética ou na teologia. Ao contrário, interessam as lesões orgânicas nitida­mente diagnosticadas e tidas como incuráveis pela medicina con­temporânea. Caso sejam curadas em um contexto de fé e prece puras, pode-se admitir aí uma intervenção extraordinária de Deus ou um milagre.

Acrescentemos que, dado o conceito de milagre «sinal de Deus», não podem ser tidos como milagres certos fenômenos realizados em contexto indigno de Deus. Donde o novo subtítulo:

2.1.4. Circunstâncias que desabonam

a) Tais seriam, em primeiro lugar, os ambientes de irre­verência a Deus, imoralidade ou deboche de costumes, charla­tanismo ou ilusionismo, cobiça de lucros materiais ou aceitação de lucro financeiro por parte do pretenso taumaturgo, ocasião de satisfazer ao orgulho, à vaidade ou à sensualidade das pes­soas envolvidas no portento...

Expliquemo-nos: o homem pode ser incoerente ou contra­ditório em suas expressões ou condutas (assim pode haver la­drões que rezem para pedir o bom êxito das suas trapaças; pode haver quem peça a Deus que o ajude a vingar-se dos seus inimigos). Mas o Senhor Deus não pode ser incoerente ou con­traditório. Daí dizer-se que Ele não realiza sinais ou palavras portentosas que de algum modo possam sugerir a confirmação do deboche, da fraude ou da imoralidade...

b) Ambientes de sensacionalismo e alarde levam igual­mente a desconfiar da autenticidade dos “milagres” - Na ver­dade, as obras de Deus costumam ser discretas, mesmo quando derrogam ao curso natural dos acontecimentos. Um portento exageradamente sensacional já não seria sinal, pois não levaria os espectadores a procurar outra realidade invisível assim assi­nalada. Alimentaria a fantasia e a curiosidade profanas mais do que a inteligência, a fé e a reverência a Deus.

e) O espírito de arrogância e de domínio com que alguém trate as coisas de Deus e os fenômenos prodigiosos, também resulta em desabono do pretenso milagre.

Quem julga ter direito a algum milagre, porque possui ciência e receitas ou porque é virtuoso e sempre foi fiel a Deus, já se coloca fora das disposições necessárias para ser atendido pelo Senhor Deus. O autêntico milagre é sempre sinal gratuito, nunca é devido por Deus ao homem. -O homem não “encomen­da” milagres a Deus. Somente quando assume uma atitude de humildade e disponibilidade, pode o homem esperar receber a graça e a condescendência de Deus.

Para que melhor se penetre o sentido desta verdade, trans­creveremos abaixo uma página em que o escritor Ernesto Renan (+ 1892) formula as condições que o pensador racionalista es­tipularia para poder reconhecer um milagre:

"Digamos que venha a se apresentar amanhã um taumaturgo com cre­denciais suficientemente sérias para ser levado em consideração. Suponha­mos: ele afirmaria que pode ressuscitar um morto. Que faríamos? Seria nomeada uma comissão de fisiologistas, físicos, químicos, pessoas treinadas na crítica histórica... Essa comissão escolheria o cadáver; certificar-se-ia de que a morte foi real, designaria a sala em que se faria a experiência, estipularia todo o sistema de precauções necessárias para não deixar lugar a dúvida alguma. Se em tais condições se efetuasse a ressurreição, estaria adquirida uma probabilidade quase igual à certeza. Todavia, dado que uma experiência deve sempre poder repetir-se e visto que o experimentador deve ser capaz de refazer o que ele fez uma vez e - mais - já que na linha do milagre não vem ao caso o fácil ou o difícil, o taumaturgo seria convi­dado a reproduzir o seu ato portentoso... Se em cada instância o milagre acontecesse, duas coisas estariam comprovadas: em primeiro lugar, acon­tecem no mundo fatos sobrenaturais; em segundo lugar, o poder de os produzir pertence ou é delegado a certas pessoas. Mas quem não vê que nunca um milagre se realizou em tais condições?" (E. Renan, "Vie de Jésus". Paris 1863, pp. LI-LIII).

Na verdade, o fiel cristão pode estar certo de que nunca um tal milagre se realizou nem realizará. Não seria milagre cristão, nem mesmo acontecimento religioso; não teria sentido. Viria a ser, em última análise, uma capitulação de Deus, que cederia à desconfiança e ao orgulho da criatura. Diz a S. Escri­tura que Deus recusa a sua graça aos soberbos e auto-suficien­tes, mas a derrama sobre os humildes com a generosidade de um grande senhor.

Mais: pode-se notar que a comissão imaginada por Renan, ainda que verificasse a “aparição” do morto-vivo, provavel­mente suspenderia o seu julgamento e declararia que havia de estudar um pouco mais a fim de averiguar, por meio de expe­riências e pesquisas, se certas forças naturais até agora igno­radas ou um acaso ou uma combinação de fatores até aqui improvável ou a intervenção de um número quântico... não poderiam explicar o que, em primeira abordagem, ficava sem explicação.

Em suma, para que alguém possa fazer uma experiência religiosa - seja ordinária, seja extraordinária -, existe uma condição prévia indispensável: admitir que tal experiência não seja impossível. E só o pode admitir quem seja humilde e des­tituído de preconceitos.

2.2. Critérios positivos

Uma vez enunciadas as características que desabonam o milagre no sentido teológico e apologético, importa averiguar as que o recomendam e autenticam aos olhos do observador.

2.2.1. Cura milagrosa: características

Para que uma cura de enfermidade venha a ser levada em conta como possível resposta de Deus aos homens, deve, se­gundo a jurisprudência da Igreja, preencher as cinco seguintes condições

1) Trate-se de uma doença orgânica grave, consistindo em alterações anatômicas (modificação, perda ou hiperprodu­ção de tecidos... ). Essa doença terá sido diagnosticada pelos métodos mais seguros e haverá sido considerada totalmente incurável aos olhos da medicina contemporânea.

2) Tenham sido ineficientes todos os meios terapêuticos devidamente aplicados.

3) Verifique-se a restauração dos órgãos ou tecidos le­sados em espaço de tempo tão breve que possa ser considerado instantâneo.

4) Não se tenha registrado o prazo ordinariamente ne­cessário para a recuperação gradual da função lesada (a pessoa curada conseguiu logo caminhar ou comer e digerir com toda a normalidade... ) .

Ou, em outros casos, não se tenha verificado o prazo ne­cessário para a reabsorção dos edemas, dos derrames de pleura ou para a destruição das massas de tumores - o que não exclui ritmo progressivo (mas rápido) do estado geral de saúde da pessoa curada (aumento de peso, de fortes, etc.).

5) Seja a cura duradoura, capaz de ser comprovada por exames sucessivos, feitos a intervalos regulares durante longo espaço de tempo.

No artigo seguinte, veremos como em Lourdes procede a Comissão encarregada de examinar os fatos extraordinários lá ocorrentes.

2.2.2. Autênticas atitudes de fé

a) As pessoas envolvidas no verdadeiro milagre devem apresentar atitude de autêntica fé, marcada principalmente pela oração e a humildade.

As idéias professadas por essas pessoas deverão ser as da Revelação cristã. O milagre verificado em tal contexto será o sinete dado por Deus para confirmar a virtude, a missão ou a doutrina das pessoas por intermédio das quais ou em favor das quais o portento se realiza. Sendo assim, entende-se que os milagres se efetuem geralmente na vida dos Santos ou dos arautos de Deus, pois estes é que precisam de credenciais, isto e, precisam de ser identificados ou confirmados pelo Senhor aos olhos do mundo.

A rigor, não se exclui que um milagre ocorra por intermé­dio de pessoa de vida indigna ou de doutrina errônea. É de crer, porém, que isto só se dê excepcionalmente e que o Senhor, ao realizar o portento, remova os perigos de ilusão; Deus então fará que os homens compreendam o sentido do prodígio ou o termo preciso ao qual se refere o sinal milagroso. Em outras palavras: o Senhor pode querer servir-se de um pagão ou de um homem de má vida para ser portador de uma mensagem divina. Em tais casos, o milagre atestará a verdade dessa men­sagem, mas não comprovará a conduta de vida ou o conjunto de idéias do arauto; o Senhor permitirá que isto se torne claro aos homens.

É importante frisar que o quadro mais normal dentro do qual o milagre se insere, é o da prece humilde, destituída de crendices ou artifícios supersticiosos. O prodígio aparece então como a resposta de Deus ao apelo da miséria do homem. Este não é capaz de comprar ou de forçar o favor de Deus; não há preces ou ritos de efeito infalível; a oração agradável a Deus é a que procede de um coração filial, voltado para o Pai do céu em confiança e amor, sem «receitas» prévias «garantidas».

b) Os efeitos do genuíno milagre são, entre outros, a con­firmação dos homens na verdade e no bem, o repúdio do pe­cado, conversões à reta fé, paz de alma, concórdia e caridade entre os homens, fidelidade ao dever de estado, obediência às autoridades...

c) A expressão «A tua fé te salvou», freqüente nos lábios de Jesus (cf. Mt 8,13; 9,2. 22; 15,28; 17,20), não quer dizer que os milagres sejam projeções do psiquismo subjetivo do paciente (faith heating, la foi qui guérit). Há, sem dúvida, casos de cura por auto-sugestão; todavia, desde que sejam reconhecidos como tais, a Igreja não os utiliza na apologética. Outros casos de cura, porém, não podem ser atribuídos à sugestão; tenham-se em vista os que supõem, comprovadamente, o câncer, a cegueira, a esclerose... Charcot e Janet, que defendem a tese da «fé que cura», só apontam, entre os exemplos dados, casos de doenças funcionais, ocorrentes em «pacientes especiais afetados de mo­léstias especiais»; cf. J. M. Charcot, «La foi qui guérit»», Paris 1897; P. Janet, «Les médications psychologiques», 3 vols., Pa­ris 1919.

A fé, de resto, não é sugestão subjetiva. A fé que Jesus louva nos Evangelhos como penhor de salvação, significa aber­tura para Deus cheia de entrega e confiança. Está claro que uma tal disposição acalma o sistema nervoso do paciente, mas é incapaz de explicar a cura radical do mesmo, quando afetado de certas lesões orgânicas. A autêntica fé, ademais, é precedida por um juízo da razão; longe de ser cega ou sentimental, ela supõe o conhecimento dos motivos de credibilidade: por que posso crer ?... por que devo crer ?... por que crer precisa­mente em Jesus de Nazaré ?... por que crer na Igreja Cató­lica, e não em outra comunidade religiosa ? O estudo de tais perguntas exige o funcionamento da razão e da lógica, contri­buindo assim para emancipar da sugestão, do sentimentalismo e do fanatismo a autêntica fé cristã.

Eis o que, resumidamente, ocorre dizer sobre o autêntico milagre no sentido da teologia católica e suas características. Não é a ostentação de poder divino que ai importa, mas, sim, a palavra «plástica» que o Senhor assim queira transmitir aos homens.

A temática deste artigo será completada pelo que se segue.

Bibliografia

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PR 171/1974, pp. 91-103.

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NOTA:

[1] Sobrenatural é aquilo que ultrapassa o alcance ou o poder de qual­quer criatura: assim a participação da vida de Deus ou a filiação divina, concedida através da graça santificante, é um dom sobrenatural.

Sobrenatural não é necessariamente sinônimo de portentoso ou espa­lhafatoso; pode ser um dom latente e despercebido aos homens.

Preternatural é o que ultrapassa o alcance da natureza humana como tal, levando-a além de seus limites próprios. Assim a imortalidade do com­posto humano é um dom preternatural; o homem que fosse imortal por dom de Deus, não deixaria de ser homem, mas ultrapassaria os limites da sua condição natural.


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