Páginas

sábado, 29 de maio de 2010

Alma Humana: espiritualidade (I)

ESCOLA "MATER ECCLESIAE"

CURSO DE FILOSOFIA POR CORRESPONDÊNCIA

IV. PSICOLOGIA FILOSÓFICA

MÓDULO 19: A ALMA HUMANA—ESPIRITUALIDADE (I)

Estamos agora na segunda parte da Filosofia da Natureza. Com efeito; após estudar a Cosmologia Filosófica, consideramos a Psicologia Filosófica ou Racional.

Etimologicamente falando, Psicologia é o estuda da psyché ou da alma. Sabemos, porém, que a alma não pode ser encontrada "na ponta de um bisturi", pois está intima­mente unida à matéria como princípio vivificante da matéria. Quem vê matéria viva, vê corpo e alma unidos para formar um único princípio substancial ou uma única natureza (a natureza vegetal da rosa, do cravo, a natureza animal do cão, do pássaro, a natureza racional do homem...). Por isto a Psicologia Racional ou Filosófica não pode prescindir da experimentação ou da observação dos fenômenos psíquicos.

Os nossos estudos, neste Curso, versarão diretamente sobre a alma humana, que é simultaneamente intelectiva, sensitiva e vegetativa.

Começaremos recordando, a título de sistematização, algumas noções já enuncia­das.

Lição 1: Generalidades — espírito, alma

1. A palavra "alma" provém do vocábulo latino anima; significa o princípio vital ou o princípio animador (vivificador) de um corpo organizado. Isto quer dizer que

<!--[if !supportLists]-->1) todo ser vivo tem alma;<!--[endif]-->

<!--[if !supportLists]-->2)distinguem-se tantos tipos de alma quantos são os tipos de vida. Ora há três tipos de vida:<!--[endif]-->

a) a vida vegetativa, cujas funções são nutrição, isto é, a faculdade de assimilar e incorporar ao próprio organismo determinadas substâncias;

crescimento, isto é, a capacidade de desenvolvimento homogêneo das partes do organismo, segundo um modelo impregnado na natureza mesma desse organismo;

reprodução ou faculdade de gerar outros viventes da espécie dos genitores;

irritabilidade ou capacidade de reagir a lesões, restaurando os tecidos prejudica­dos, em conformidade com o modelo impregnado no vivente;

<!--[if !supportLists]-->b) a vida sensitiva, cujas funções são as da vegetativa, acrescidas da capacidade de conhecer seres concretos e singulares mediante os sentidos externos (visão, audição, tato...) e os sentidos internos (estimativa, memória sensitiva, fantasia);<!--[endif]-->

<!--[if !supportLists]-->c) a vida intelectiva, que realiza as tarefas da vida vegetativa e da sensitiva e ainda é dotada do conhecimento de noções universais, abstratas, distinguindo o essencial e o acidental, para chegar a definições tão precisas quanto possível.<!--[endif]-->

Em conseqüência, distinguem-se:

a alma vegetativa (o princípio vital de um organismo de vida vegetativa), que se encontra nas plantas;

a alma sensitiva (o princípio vital de um organismo de vida sensitiva), que se encontra nos animais irracionais;

a alma intelectiva (o princípio vital de um organismo de vida intelectual), que ocorre nos viventes racionais ou intelectivos, ou seja, nos seres humanos.1

2. A palavra psique vem do grego psyché. É geralmente tida como equivalente a anima, alma. Verdade é que as escolas filosóficas e psicológicas hoje em dia atribuem matizes diversos ao vocábulo psique, matizes que não é nosso intuito recensear nestas páginas.

A Psicologia, por conseguinte, é o estudo do princípio vital em geral ou, segundo a acepção mais comum, é tão somente o estudo da vida consciente do homem.

3. Espírito é o ser real que não tem corpo, isto é, carece de extensão, quantidade, peso, tamanho..., mas é dotado de inteligência e vontade. Vê-se assim que a palavra espírito tem acepção mais ampla do que o vocábulo alma. A chave abaixo exprime a diferença:

<!--[if !vml]-->

<!--[endif]-->

Espírito incriado, não unido à matéria: Deus criado,

não unido à matéria: anjo criado, unido à matéria, para nela se aperfeiçoar: alma humana (espiritual)

O espírito que é o princípio vital do organismo humano, é chamado alma humana. Esta, portanto, é espiritual ou não material. Se a alma humana é espiritual, também é imortal, pois a imortalidade é propriedade de todo espírito.

Procuremos agora considerar a alma humana em suas duas notas essenciais: 1) espiritualidade e 2) imortalidade.


Lição 2: Espiritualidade da alma humana

Pergunta-se: a alma humana é espiritual? — Tal pergunta já foi abordada nos Módulos 15, 16 e 17 deste Curso. Voltamos ao assunto, desta vez de maneira mais exaustiva.

Para averiguar se a alma humana é espiritual ou não, devemos levar em conta o seguinte princípio: o ser e o agir de determinada realidade devem ser correlativos entre si. Consequentemente, se vejo que determinada substância tem por efeito "salgar" alimentos, digo obviamente que o seu ser consta de cloro e sódio (NaCI); se outra substância é corrosiva, suporei que seja um ácido, como o ácido sulfúrico (H2SO4). Se, pois, desejo saber se a alma humana é espiritual ou se é material, devo examinar o seu agir ou as atividades que exerce; se estas são de ordem material, sem ultrapassar as capacidades da matéria, direi que a alma humana é material; se, ao contrário, as atividades da alma humana ultrapassam as virtualidades da matéria, concluirei que o próprio ser da alma humana é imaterial ou espiritual.

Analisemos, pois, as atividades da alma humana:

1) Percepção do universal

É certo que o ser humano, além de conhecer os objetos concretos, singulares e materiais que lhe ocorrem, é também capaz de conceber noções abstratas, universais, percebendo o essencial; é apto a reconhecer proporções, relações de dependência, de causalidade e de finalidade.

Com efeito, depois de ver um homem, uma mulher, uma criança, um ancião, um gordo, um magro..., a inteligência humana se emancipa das diferenças motivadas por cor, tamanho, sexo, idade... e define todos esses indivíduos como participantes da mesma essência ou natureza; são todos seres humanos, iguais entre si pela natureza (que a inteligência apreende), embora diferentes uns dos outros pelos aspectos que os olhos percebem.

Paralelamente, depois de ver diversos objetos belos (uma flor, uma paisagem, um animal, uma escultura...), a inteligência humana se emancipa dos elementos extrínsecos e concretos que apreende, e formula a definição da beleza. A partir da percepção de situações justas e injustas, formula as noções universais de justiça e injustiça.

A Psicologia Experimental, por sua vez, corrobora estas afirmações mediante a seguinte experiência:

Disponha-se uma série de vasilhas fechadas, na primeira das quais se coloca o alimento de um macaco. O animal, posto diante de tal série, não sabe onde encontrar a sua ração; o operador então abre a primeira vasilha e lhe mostra o seu alimento.

Repita-se a experiência, encerrando na segunda vasilha o alimento, e não na primeira. O animal, recolocado diante da série, é guiado pela memória sensitiva e, recordando-se do ocorrido no dia anterior, vai à primeira vasilha. O operador então o coloca diante do segundo recipiente, do qual o animal se serve.

Num terceiro ensaio, coloque-se o alimento fechado no terceiro recipiente: guiado pelas impressões sensíveis do ensaio anterior, o macaco se dirige para o segundo vaso... Caso se multipliquem as experiências, verifica-se que o animal procura de cada vez o recipiente em que no ensaio anterior encontrou o que lhe interessava. Nunca chega a abstrair dessas diversas experiências a lei da progressão que as rege. Nunca se desven­cilha das notas concretas da vasilha em que, por último, encontrou a sua ração, deduzindo que não é o fato de ser a segunda, a terceira ou a quarta vasilha que interessa, mas o fato de ser a vasilha n + 1 (fórmula em que n designa o número da experiência anterior). Ora uma criança sujeita a tal teste, depois de quatro ou cinco experiências, consegue abstrair a lei n + 1 do fenômeno.

Destes ensaios se conclui que o animal, por mais semelhante que seja ao homem, jamais se desembaraça da percepção do concreto, material; ele percebe o primeiro, o segundo, o terceiro objetos... postos à sua frente, mas é incapaz de perceber a proporção que há entre esses objetos:

<!--[if !supportLists]-->1 = n+1<!--[endif]-->

<!--[if !supportLists]-->2 =n+1<!--[endif]-->

<!--[if !supportLists]-->3 =n+1<!--[endif]-->

<!--[if !supportLists]-->4 =n+1<!--[endif]-->

<!--[if !supportLists]-->5 =n+1<!--[endif]-->

Na coluna da esquerda temos acima a lista dos termos concretos, particulares, ao passo que na coluna da direita temos a fórmula universal e a indicação de proporção. Ora passar da coluna da esquerda para a da direita, percebendo a constante n + 1 por debaixo das variações 2, 3, 4, 5... é algo que só a inteligência faz, porque só esta abstrai do concreto. O animal irracional não se eleva ao abstrato, universal. Por conseguinte, o irracional não tem princípio de conhecimento ou princípio vital imaterial ou espiritual; a alma do macaco ou do animal irracional é material. Ao contrário, o homem, que é capaz de abstrair do concreto singular, possui um princípio vital ou uma alma imaterial ou espiritual.

Observe-se também: não há transição entre o material e o imaterial (ou espiritual). O espiritual não é a matéria rarefeita ou gasosa energética, pois mesmo a matéria rarefeita e a energia elétrica são dimensionáveis mediante números ou estão sujeitas à quantidade, ao passo que o espírito não é quantitativo nem comensurável.

2) A consciência de si mesmo

Verifica-se que os animais têm conhecimento de objetos que os cercam, ameaçando-os ou favorecendo-os. O ser humano, além deste tipo de conhecimento, possui o conhecimento de si mesmo ou a autoconsciência; o homem não somente sente dor, mas sabe que sente dor ou que está lesado fisicamente; este fator aumenta enormemente a sua dor, pois o sujeito humano percebe que a sua moléstia o impede de trabalhar devidamente, o que pode prejudicar a sua família, a sua carreira, o seu ideal... Possuindo o conhecimento dos objetos e de si mesmo, o homem concebe o plano de ordenar o mundo e a si mesmo, dominando fatores estranhos ao seu ideal, superando paixões desregradas, cultivando boas tendências, etc. Isto tudo escapa às possibilidades de um animal irracio­nal, pois este conhece o seu objeto concreto, singular, e é incapaz de se emancipar das notas concretas deste e de se voltar para si mesmo de maneira sistemática a fim de se conhecer. O ser humano, ao contrário, realiza esta introspecção, porque o seu princípio de conhecimento (intelecto) é capaz de ultrapassar o seu objeto concreto, material para atingir o próprio sujeito...

3) A cultura e o progresso

Verifica-se que o homem intervém no ambiente natural que o cerca, modificando-o de acordo com as suas intenções e os seus planos; cria assim a cultura, que se sobrepõe à natureza, adaptando-a ao homem; assim é que surgem casas, estradas, cidades, fábricas, artefatos... Essa atividade científica e técnica, social e ética, artística e religiosa, não é o produto de processos fisiológicos apenas ou de fatores materiais e econômicos tão somente, mas se deve à ação intelectiva e planejadora da inteligência e à liberdade de arbítrio do ser humano. Com efeito, ao conhecer a natureza que o cerca, o homem apreende as relações entre meios e fins ou as proporções entre diversos termos e concebe projetos para melhorar o seu ambiente (o seu habitat natural, a sua alimentação, o seu vestuário, as expressões de sua arte, de seus sentimentos religiosos...); vai assim construindo civilizações sucessivas... Ora o animal é incapaz de progredir em suas expressões, porque é guiado por instintos; assim o animal, embora certeiro e apurado em seus movimentos instintivos, é incapaz de dar contas a si mesmo do que faz e dos porquês da sua atividade; é, por isto, incapaz de se corrigir ou de se ultrapassar. Em última análise, a raiz da diferença entre o comportamento do homem e o do animal reside no fato de que o homem tem um princípio vital ou um princípio de atividades imaterial ou espiritual, ao passo que o animal tem uma alma material ou confinada pelas potencialidades da matéria.

Os argumentos em prol da espiritualidade da alma humana continuarão a ser estudados no próximo Módulo, que tratará da linguagem ou do falar do homem.

* * *

[1] Observa-se uma diferença entre intelectivo e racional.

Intelectivo é todo ser que conhece noções universais, distinguindo essência e acidentes.

Racional é o ser cuja inteligência não é intuitiva, mas progressiva, passando de premissas a conclusões, para estabelecer novas premissas e chegar a ulteriores conclusões.

O ser humano, por exemplo, é intelectivo racional (aos poucos vai penetrando a verdade). Deus e os anjos são intelectivos não racionais, mas intuitivos.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Alma Humana: Espiritualidade (II)

ESCOLA "MATER ECCLESIAE"



CURSO DE FILOSOFIA POR CORRESPONDÊNCIA


IV. PSICOLOGIA FILOSÓFICA


MÓDULO 20: A ALMA HUMANA — ESPIRITUALIDADE (II)

Continuando a examinar os argumentos em favor da espiritualidade da alma humana, abordaremos agora o da linguagem, tema este complexo.

Começamos por indagar:

Lição 1: Em que consiste o falar?

— A linguagem é a capacidade que temos de formular conceitos universais e exprimi-los mediante sons concretos, que variam de idioma para idioma. Assim os conceitos de pai e mãe, por exemplo, são conceitos universais, que todo ser humano concebe espontaneamente, mas que cada povo ou cada grupo lingüístico exprime de modo diferente. O homem é capaz de emancipar-se de determinado som associado a determinado conceito universal para propor exatamente o mesmo conceito mediante outra expressão fonética; é o que se dá com os tradutores, que procuram guardar exatamente as mesmas mensagens intelectuais através de diversas sonorizações: pai, père, padre, father, Vater, pater, 'ab...

Quem olha para a cavidade bucal de um homem e a de um macaco, é propenso a dizer: se o homem fala, o macaco também fala, pois organicamente este dispõe de tudo o que o homem possui para falar. Não obstante, o macaco não fala. Isto só se pode explicar pelo fato de que no homem há algo mais do que no macaco; esse algo mais é a espiritualidade do seu princípio vital. Com efeito; o homem só pode falar porque é capaz de perceber que diversos sons não significam sempre diversos conceitos ou porque é capaz de distinguir entre o som concreto e o conceito universal, imaterial. Isto denota no homem a presença de uma alma imaterial ou espiritual.

Aprofundando a temática, perguntamos:

Lição 2: Como teve início a linguagem?

A linguagem humana em seus inícios deve ter tido índole estritamente emotiva. Tratava-se possivelmente de simples canto que ritmava os passos do viandante ou o trabalho executado por mãos de caçador ou de coletor de frutas e raízes; devia asseme-lhar-se aos gritos dos animais a exprimir dor ou deleite, receio ou desejo. Aos poucos esses sons terão tomado o valor de sinais ou símbolos, aptos a ser repetidos por diversos indivíduos postos em idêntica situação: tal som foi associado (em virtude de afinidade espontânea, natural ou por. um artifício convencional) a tal tipo de sentimento ou idéia.1 Em outros termos: verificou-se no plano da fonética o que se deu no do comércio: outrora o comércio se fazia pela troca de bens naturais (cereais, gado, verduras, etc), tendo sido estes posteriormente substituídos pela moeda de metal e até pelo papel-moeda; assim também aos sons foi atribuído, por um acordo tácito entre os interessados, um valor de símbolo; na mente dos ouvintes, o "valor som" foi sendo trocado por outro valor (de ordem mental); o som sugeria uma idéia precisa... Uma vez que se despertou nos homens a consciência do "som-valor" ou do "som-símbolo", a descoberta foi sendo mais e mais explorada a aperfeiçoada; cada indivíduo foi retendo na memória, para seu uso pessoal, o simbolismo dos diferentes sons postos em circulação. — A vida em sociedade tornou-se poderoso estimulante do desenvolvimento da linguagem: em atos e cerimônias coletivas impunham-se aos membros do mesmo clã certas manifestações vocais previamente estabelecidas por convenção; quanto mais se acentuou o progresso da vida social, tanto mais se foi aprimorando a linguagem.

"Tal hipótese, embora não possa ser demonstrada, não carece de verossimilhança. Ela tem a vantagem de fazer compreender como a linguagem é um produto natural da atividade humana..., é um resultado da adaptação das faculdades do homem às neces­sidades sociais. Para entender a explicação acima dada, basta admitamos que o homem primitivo tenha um dia tomado consciência de que o som pode ser sinal. Uma vez adquirida esta consciência, a linguagem se foi desenvolvendo por via de diferenciações sucessivas" (J. VENDRYES, Le langage. Paris 1950, 17).

Convém sublinhar que o ato lingüístico primordial consistiu em atribuir ao som o valor de símbolo. É este processo psicológico que distingue a linguagem humana da dos animais irracionais. Com efeito, no homem o som natural (que o irracional também poderia emitir) adquiriu uma função objetiva, variável em larga escala segundo convenções previamente estabelecidas pelos indivíduos ou pelos povos. O cão, o macaco, o pássaro emitem, sem dúvida, gritos e cantos que correspondem claramente a estados psíquicos de bem-estar, espanto, furor, desejo, apetite, etc, e que são entendidos como tais pelos animais congêneres e pelo próprio homem. O pássaro sabe lançar um clamor, por exemplo, para chamar a si a mão de alguém que lhe apresente uma folha de alface; tal objeto nele provoca tal som concreto (como reflexo condicionado); som e objeto material estão, para ele, intimamente associados entre si. E não há vestígios de progresso e adaptação da "linguagem" do animal irracional no decorrer dos tempos, apesar das numerosas tentativas que os estudiosos e domesticadores têm feito neste sentido... Verifica-se, sim, que os animais aprendem numerosos atos assaz complicados, não, porém, o de falar ou atribuir significado simbólico, universal, a determinado grito: é justamente por não perceber o valor do "som sinal de..." que o papagaio repete mecani­camente, com ou sem propósito, as mesmas "frases". Há contudo animais, como o chimpanzé, cujos órgãos faciais seriam perfeitamente capazes de proferir palavras como o homem as profere; o macaco, por mais que imite o seu dono, jamais imita a fala deste.

Somente o homem sabe atribuir a tal som um valor independente da presença de tal ou tal estímulo externo. Esta arte supõe no indivíduo humano a inteligência, ou seja, a faculdade de abstrair do concreto e material, para conceber noções gerais, aplicáveis a muitos indivíduos análogos entre si; a inteligência, e somente ela, é capaz de apreender o que há de essencial e uno sob as múltiplas notas sensíveis que caracterizam objetos concretos.

Na base destas observações é que, com toda a razão, se diz que a faculdade de falar caracteriza a natureza racional ou intelectiva do homem, natureza de que carecem os animais inferiores, incapazes de conceber noções universais.

Os estudiosos têm efetuado experiências muito significativas no terreno da lingua­gem. Chegaram a educar, um ao lado do outro, nas mesmas condições de vida, um filhote de macaco e uma criancinha (ser humano), de modo a poder acompanhar minuciosamente o desenvolvimento de suas funções. Verificaram que até os dezoito meses de idade um e outro reagiam aos estímulos extrínsecos de modo semelhante; respondiam aos mesmos testes com sucesso variável, mas geralmente obtendo empate final; apenas o macaco se mostrava mais hábil e ligeiro nos seus movimentos físicos, enquanto a criança manifestava mais capacidade de prestar atenção. Após determinado prazo, porém, verificaram que a criança, por seus progressos, se distanciava do concorrente de sorte a tornar vã qualquer comparação ulterior. A criança começou a falar propriamente, transpôs o limiar da linguagem, que a caracterizaria como ser humano.

De modo geral, a criança, com poucos anos de idade, coloca as impressões recebidas pelos sentidos (vista, ouvido, tato, olfato...), impressões que também o animal irracional colhe, a serviço de uma faculdade de conhecimento superior: a razão. Esta, e só esta, percebe o significado intrínseco de cada situação, sabe também concatenar os acontecimentos da vida, estabelecendo entre eles relações de causa e efeito, meio e fim. Em conseqüência, emite sons concebidos bem a propósito, palavras e frases que têm valor perene, universal..., coisa que o animal infra-humano não faz, porque não tem razão ou inteligência.

Lição 3: Uma objeção

Nos últimos anos, a psicóloga norte-americana Francine Patterson fez surpreen­dentes experiências com uma fêmea de gorila chamada Koko; terá conseguido ensinar a este animal 375 sinais ou gestos correspondentes a ideias variadas. Outros pesquisa­dores, na base de semelhantes afirmações, julgam que o homem não é mais do que um macaco aperfeiçoado.

— Esta conclusão merece atenção.

Em primeiro lugar, observamos que, quando fatos concretos são apresentados à discussão dos filósofos, psicólogos, antropólogos..., importa, antes do mais, ter relatos objetivos e fidedignos de tais ocorrências. Ora quem refere as suas experiências, não raro tende a interpretá-las simultaneamente ou, com outras palavras, refere-as a partir das premissas filosóficas que lhe são próprias; assim o leitor recebe não somente a notícia fria e objetiva das ocorrências, mas é, ao mesmo tempo, sugestionado a aceitar determi­nada interpretação de tais fatos ou dados empíricos.

Ora a Psicologia moderna apresenta, entre outras correntes, a do empirismo, que se difundiu principalmente nos países de língua inglesa. Está outrossim muito influenciada pelo Positivismo e o Neopositivismo. Estas escolas apenas registram dados empíricos ou fenômenos e renunciam a procurar causas não empíricas (metafísicas) para os mesmos; verificam que o fenômeno B se segue ao fenômeno A e renunciam a procurar saber se existe relação de causalidade entre A e B e, eventualmente, qual seria essa causalidade. De modo especial, note-se: a psicologia que o empirismo inspira, é uma psicologia sem "anima" ou sem sujeito definido dos fatos psicológicos; ela se limita à descrição fenomenológica dos fatos psíquicos. Por isto, quando Francine Patterson diz que o comporta­mento do gorila é semelhante (ou mesmo idêntico) ao do ser humano, guardando apenas diferença gradativa em relação a este, põe-se legitimamente a pergunta: que entende a psicóloga por "semelhante" ou "idêntico" no caso? — Reconhecemos, sim, a semelhança das atitudes que ela atribui à gorila com aquilo que o ser humano geralmente pratica. Trata-se de semelhança de fenômenos ou de dados experimentais, que não implica necessariamente identidade de essência ou de consciência psicológica. Dizemos que o animal pré-humano e o homem são capazes de exprimir sentimentos e afetos, mas só o homem emite conceitos ou tem pensamentos e linguagem conceituais. Com outras palavras: o homem e o gorila são aptos a dizer que concebem afetos de simpatia ou que sentem dor, mas somente o homem é capaz de dissertar sobre a simpatia, o amor e a dor. O animal é capaz de pedir água para beber, para refrescar-se ou para lavar-se, porque efe pode experimentar os efeitos da água e, por conseguinte, pode desejar experimentá-los; todavia só o homem é apto a discorrer sobre a água, enunciando, de maneira teórica e especulativa (não pragmática), o que a água é e aquilo de que ela se compõe.

Ora um psicólogo empirista contenta-se com a descrição dos fenômenos experi­mentados ou averiguados e, na base de tais averiguações, estabelece confrontos e afirma semelhanças ou identidades. Todavia o filósofo que não seja meramente empirista, mas que, através dos fenômenos, analisa as estruturas do ser e sonda as essências de cada qual, poderá ver diferenças essenciais por detrás de idênticos comportamentos fenome­nais ou empíricos. Ora, se Francine Patterson adota a filosofia empirista, entender-se-á que ela tenha conceito de linguagem diferente daquilo que se entende por linguagem humana em filosofia clássica. Em conseqüência, o seu relatório não será suficiente para se dizer que o gorila e o homem diferem entre si apenas por graus de perfeição no tocante à linguagem.

* * *

[1] Algo de semelhante se dá com a linguagem dos surdo-mudos: em vez de recorrer a sons, servem-se de gestos. Estes são associados a conceitos ou idéias, na base de afinidade ou de convenção arbitrária - o que permite boa comunicação de sentimentos, afirmações e perguntas entre tais deficientes

Alma Humana: Espiritualidade (III)

ESCOLA "MATER ECCLESIAE"



CURSO DE FILOSOFIA POR CORRESPONDÊNCIA


IV. PSICOLOGIA FILOSÓFICA


MÓDULO 21: A ALMA HUMANA — ESPIRITUALIDADE (III)

Consideremos neste Módulo duas questões complementares à doutrina da espiri­tualidade da alma humana: 1) a dependência da alma em relação ao cérebro; 2) a tese que identifica entre si corpo e alma.

Lição 1: Dependência do cérebro

Dirá alguém: como admitir a espiritualidade da alma humana quando se sabe que as atividades mais sublimes do ser humano não se realizam se o organismo está lesado em seu cérebro ou em seu sistema nervoso? Em tais condições, pode-se falar de alma imaterial ou espiritual?

A resposta não é difícil. Todos os antropólogos reconhecem a realidade psicosso­mática do homem. A moderna Psicologia científica adverte que não se pode dissociar, no homem, o plano intelectivo (e volitivo) do plano sentimental, nem este do plano vegetativo e instintivo; a linguagem humana (que é a expressão mais típica do raciocínio ou da espiritualidade do homem) é acompanhada por movimentos mímicos, gestos automáticos do corpo, desencadeados pelo funcionamento da inteligência e da vontade. Assim o espiritual e o corpóreo colaboram intimamente no homem.

De modo especial, a inteligência humana (que é uma das faculdades da alma espiritual) depende dos sentidos externos e do cérebro. Com efeito, os sentidos externos percebem os dados concretos da realidade ambiental (cores, sons, temperatura...), que, através de filamentos nervosos, são levados ao cérebro, sede do senso comum.1 No cérebro, esses dados são elaborados e reduzidos a uma síntese. Posteriormente o intelecto humano se aplica às diversas sínteses ou imagens que recebe, e distingue nestas o essencial e o acidental.

Admitamos, porém, que o cérebro ou algum filamento nervoso venha a se ressentir de lesão ou defeito, transmitido por hereditariedade ou contraído pelo próprio sujeito em acidente ou moléstia... Em conseqüência, a inteligência humana carecerá do instrumental sem o qual não pode manifestar a sua perspicácia; o sujeito poderá chegar a levar vida meramente sensitiva ou vegetativa... como se não tivesse inteligência. É o que leva muitos estudiosos a dizer que a inteligência é o próprio cérebro ou a massa cinzenta (camada cortical) do cérebro. — Tal conclusão, porém, é precipitada ou errónea. A alma humana, com as suas faculdades próprias (inteligência e vontade), não é matéria, como foi evidenciado atrás, mas depende da matéria para exercer suas atividades. Um doente mental possui alma espiritual como os demais homens, todavia tem seu organismo lesado a ponto de não permitir as manifestações inteligentes e lúcidas da alma que deveria servir-se desse organismo.

Vê-se, pois, que a dependência da alma em relação ao corpo no tocante ao seu agir não significa que a alma humana seja uma realidade material, mas tão somente que a alma humana espiritual foi feita para animar a matéria e aperfeiçoar-se em união com esta.

Lição 2: Corpo e alma — Dualismo ou dualidade?

1. Até os últimos anos era comum, nas escolas cristãs de filosofia, afirmar-se que o homem é um composto de corpo (matéria) e alma (espírito); corpo e alma nesta perspectiva se completam mútua e harmoniosamente, constituindo assim a realidade psicossomática do ser humano.

Recentemente, vários autores, entre os quais pensadores católicos, julgam que corpo e alma não se distinguem entre si, mas são, antes, duas facetas de uma só e mesma realidade que é o homem. As razões em favor desta nova tese seriam:

a) a antropologia bíblica que, segundo dizem, propõe uma concepção monista ou unitária do homem, sem deixar lugar para a distinção de corpo e alma;

b) a necessidade de superar o dualismo "corpo e alma", o qual tem inspiração platônica e facilmente leva a conceber oposição entre espírito e matéria ou entre salvação eterna e progresso material ou temporal.

2. A propósito observemos:

a) os autores bíblicos não pretenderam "canonizar" ou oficializar algum sistema filosófico. Verdade é que os mais antigos escritores sacros eram propensos a conceber o ser humano como um todo sempre integrado pela matéria ou, depois da morte, por "sombras da matéria" (rephaim). Os semitas dificilmente faziam abstração de imagens e noções sensíveis, de modo que não lhes era fácil conceber o ser humano sem matéria. Todavia o autor bíblico do livro da Sabedoria (séc. II a.C.) serve-se de noções filosóficas gregas e concebe a alma humana após a morte como um ser separado do corpo (cf. Sb 5). No próprio Evangelho segundo S. Mateus, lêem-se as palavras do Senhor:

"Não temais os que matam o corpo, mas não podem matar a alma. Temei, antes, aquele que pode destruir a alma e o corpo na geena" (Mt 10,28).

b) Não há dúvida, a filosofia platônica, herdeira de concepções órficas, admitia dualismo antagonista entre corpo e alma. Todavia entre o dualismo platônico-órfico e o monismo contemporâneo existe uma posição intermediária que é a aristotélico-tomista: esta afirma a distinção entre corpo e alma, sem, porém, os opor ontologicamente entre si, antes concebendo-os como seres complementarmente unidos um ao outro. O próprio discípulo de Platão, Aristóteles (f 322 a.C), superou o dualismo de seu mestre, estabe­lecendo os princípios do hilemorfismo; estes, devidamente desenvolvidos, levam a afirmar a distinção de corpo e alma que se unem entre si como matéria e forma, constituindo um todo harmonioso. Os cristãos que seguiram a filosofia de Aristóteles, professaram a dualidade de corpo e alma, não, porém, o dualismo de Platão.1

3. A distinção de corpo e alma e, por conseguinte, a negação de todo monismo no ser humano evidencia-se por diversas vias. Realçaremos apenas o seguinte fato:

O corpo humano consta de inúmeras partículas que vão sendo renovadas constan­temente, de modo que de sete em sete anos a matéria do corpo humano é totalmente nova. Não obstante, não muda o núcleo consciente da personalidade que se manifesta através do corpo em mutação; um só é o eu que pensa, fala e age dentro da matéria mutante do organismo. Isto quer dizer que dentro do ser humano há algo que não está simplesmente sujeito às leis da biofísica e que se chama a alma humana.

Os dois princípios — corpo e alma — se unem entre si, sem a mediação de um terceiro princípio, mas por si mesmos, perfazendo um todo, que é uno. O corpo é o substrato material e a expressão da alma; a alma é o princípio vivificante, que comunica sentido e finalidade às diversas partes e funções do corpo. O corpo está constituído de tal modo que corresponde às exigências da alma; esta, por sua vez, necessita do corpo a fim de desenvolver as suas potencialidades.

* * *

[1] A propósito do senso comum, ver Módulo 25, Lição 3.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Alma Humana: espiritualidade IV

A — As operações da INTELIGÊNCIA são espirituais.


(Cerruti, P., A Caminho da Verdade Suprema, Rio de Janeiro, pp. 260-267)

DEMONSTRAÇÃO

I. Argumento.

149. Pelo objeto da inteligência.

São necessariamente espirituais as operações com as quais são atingidos objetos imateriais, isto é, sem as condi­ções da matéria.

Ora, com as operações da inteligência são atingidos objetos imateriais, sem as condições da matéria.

Logo, as operações da inteligência são espirituais.

Prova da MAIOR:

a) De um modo geral, a operação, sendo o meio de atingir o objeto ao qual se une como o movimento ao seu termo, está por sua própria natureza relacionada com seu objeto: assim a visão não é senão o movimento com o qual a facul­dade visual atinge o objeto colorido, que é o seu objeto externo próprio; o pensamento não é senão o movimento ou atividade vital com a qual a inteligência atinge a natureza de um objeto; ora o meio deve ser proporcionado ao seu fim próprio para o qual tende por sua natureza, como o movimento ao seu termo próprio; deve pois a operação ter intrínseca proporção com o objeto formal que ela atinge e por conseguinte ser da mesma ordem que ele; donde somente uma operação imaterial poderá atingir objetos imateriais. (193)

b) No nosso ato cognitivo a união do objeto com a faculdade é obtida por meio de uma espécie impressa na facul­dade (ns. 84 e 88). Quando a faculdade e o ato não são espi­rituais, mas intrinsecamente dependentes da matéria, esta espécie impressa contém as condições da matéria, pois está recebida numa faculdade não imaterial e tudo o que nela está recebido deve forçosamente ter o modo de ser desta faculdade: quidquid recipitur ad modum recipientis recipitur. Ora, evidentemente uma espécie impressa encerrada nas condições materiais não pode representar um objeto que não tenha estas condições. Logo é impossível que com um ato não imaterial se possa conhecer um objeto imaterial. Donde, quando o objeto conhecido é imaterial, a operação é necessariamente imaterial. (194)

Prova da MENOR:

As propriedades da matéria são a quantidade e as outras determinações que dela resultam, como a individuação, a figura, a cor, a resistência, a temperatura, o peso, o lugar, o espaço, o tempo... Logo tudo o que não tiver estas propriedades não será material, mas imaterial. — Ora os objetos que a inteligência atinge com suas operações não têm estas pro­priedades. Assim:

1. — Pela Simples Apreensão são formados Conceitos

a) universais, essencialmente diferentes das imagens sensíveis: por ex., os conceitos de homem, planta, triângulo, etc. O que os sentidos percebem e as imagens representam ò sempre um singular concreto, este homem, esta planta, este triângulo particular, com suas condições concretas de tal figura, tal lugar, tal tempo... O conceito, pelo contrário, prescinde do hic et nunc e de todas as condições concretas individuais, representa uma natureza, um algo inteligível, com os carac­teres de necessidade, de universalidade, de imutabilidade e de eternidade (n.s. 61 e 64), sem nenhuma das propriedades da matéria. (195) Donde, na simples apreensão, o que é atingido e conhecido é sempre algo de imaterial e mesmo os seres materiais são conhecidos de um modo imaterial.

b) de objetos existentes nos seres materiais, mas que entendemos poder achar-se também em seres não materiais; donde os conhecemos como não ligados necessária e intrinse­camente à matéria, isto é, como imateriais : ex., as noções de ser, causa, substância...

c) de objetos absolutamente fora da ordem material e sensível, que nos seus elementos não contêm nenhuma con­dição material : assim as noções de Deus, de alma, de dever, de justiça, de necessário, de contingente, de verdade...; assim também as relações entre os seres: igualdade, divergência, dependência..., pois a relação, como tal, não inclui nada de material.

Logo, os objetos atingidos pela primeira operação da inteligência — a elaboração dos conceitos — são imateriais e por conseguinte esta atividade, que se processa fora da ordem sensível, é imaterial.

Reconhecem-no os mesmos materialistas, que para fu­gir da conseqüência (a nossa alma é espiritual) negam a existência de conceitos em nós, afirmando, como o positivista Taine, que é uma "ilusão psicológica". Afirmação absurda: como já vimos (ns. 39, 50), o reconhecimento da ilusão, como tal, supõe o conhecimento da realidade, como o do erro supõe a verdade. Donde a ilusão de termos idéias, supõe o fato de termos idéias. Como pode um ser material (qual seria o homem, segundo os materialistas) ter uma ilusão independente das condições da matéria, como é o pensamento? Seria como admitir que um jumento pudesse ter ilusões de cálculo infinitesimal. Afirmação contraditória: não é por meio de con­ceitos que negam os conceitos, admitindo com os fatos o que negam com as palavras?

Somente uma atividade espiritual da inteligência explica a LINGUAGEM : É lei constante que na ordem física as mesmas cau­sas produzem regularmente os mesmos efeitos. Ponhamos que o homem todo seja só matéria. É claro então que impressões per­feitamente iguais feitas sobre esta matéria, por meio de sensações externas, produzirão sempre o mesmo efeito. E assim a palavra do homem, tomada materialmente, não sendo senão uma série de sons articulados, se no homem tudo é matéria, produzirá fenômenos di­versos se variarem os sons; mas se os sons forem os mesmos, tam­bém os efeitos deverão ser os mesmos. "Ora, contrariamente à lei enunciada, palavras completamente diversas produzem no homem fenômenos perfeitamente semelhantes, e palavras perfeitamente semelhantes, produzem fenômenos de todo diferentes. Um francês me vem ao encontro e me diz: "Comment vous portez-vous ?" Eu respondo: "muito bem" e agradeço. Sobrevém um inglês e diz: "How do you do?" — Eu respondo: "muito bem" e agradeço. Um italiano: "Come stà?" Respondo também a ele: "muito bem" e agradeço. Um alemão, um russo, um otentote teriam a mesma res­posta, se, perguntando-me também eles na sua língua "como es­tou", eu compreendesse a sua linguagem, isto é, se compreendesse a relação que há nestes vários povos entre alguns sinais e sons e algumas idéias: relação para a qual a matéria bruta é absoluta­mente inapta. Receba embora impressões e sons quanto se quiser o nosso organismo; mas se tudo fosse matéria, nós nunca pode­ríamos dar a mesma resposta a sinais diferentes, produzindo impres­sões diversas..." (Monsabré, Exposição do Dogma, Quaresma 1875, Conferência XVI).

Vice-versa, as mesmas palavras, os mesmos sons sensíveis, podem suscitar reações muito diferentes. Ouçamos ainda Monsabrê na mesma conferência :

"Eu leio em qualquer história: "O rei voltou para a sua ca­pital; foi aí "qu'il mourut". Este "qu'il mourut" deixa-me comple­tamente insensível. Mas leio em Corneille:

— Que vouliez-vous qu'il fit contre trois ?

— Qu'il mourut.

Logo sinto palpitar meu coração... e chorar meus olhos. Estas duas palavras qu'il mourut, comoveram todo o meu ser e penetraram até a medula dos meus ossos. Porque isso? Porque é que estava ainda há pouco tranqüilo, e porque é que agora não posso conter minha admiração? As palavras são as mesmas, a entonação não pôde mudar a impressão recebida, pois eu li silenciosamente. O mesmo órgão foi modificado do mesmo modo, deve ter produzido na massa cerebral a mesma reação. Eis a matéria apanhada em plena contravenção a suas próprias leis. Experimentai explicar este mistério de outra maneira que não pela ação de uma força transcendente que vê o que a matéria não vê, não o podereis."

2. — No Juízo, num único ato conhecemos simultanea­mente dois termos e comparando-os vemos o NEXO entre eles.

Ora os sentidos só podem perceber partes justapostas, sucessivas porém o nexo, o qual não tem nenhuma condição material (não tem tamanho, nem forma, nem cor...). Logo os sentidos não podem julgar. — Nos juízos universais, vemos este nexo como universal, abraçando todos os casos possíveis. Ora os sentidos, ligados ao material, só podem atingir as qua­lidades exteriores do que é "hic et nunc", não a essência em si mesma, nem o que deve ser, o necessário, o universal. Logo, também o juízo transcende a ordem sensível e atinge o ima­terial, e por conseguinte é uma atividade imaterial.

3. — No Raciocínio, quer dedutivo onde a inteli­gência vê o nexo entre as premissas e a conclusão (vendo os nexos de dois termos com um terceiro), quer indutivo onde ela vê a lei universal nas experiências realizadas, o que é atin­gido — os nexos, a ilação — é sempre algo destituído de qual­quer condição da matéria, incapaz por conseguinte de impres­sionar os sentidos. Logo, também o raciocínio, que atinge o imaterial, é uma atividade imaterial.

4. — Ordenando lógica e harmoniosamente conceitos, juízos e raciocínios, a inteligência forma as diversas Ciências, teóricas e práticas, com as quais domina o mundo da matéria e o faz servir para a utilidade do homem; prescruta a natu­reza dos corpos, dos viventes, do homem mesmo, e de progresso em progresso, descobre as leis gerais e a ordem admirável do universo, subindo sempre das causas próximas e particulares para as mais gerais, até a mais universal, Causa Primeira, Primeiro Princípio e último Fim, Ser Supremo, diante do qual se inclina reverente num culto religioso de adoração e submissão.

— Quem poderá afirmar que uma tal atividade da inte­ligência se reduz à atividade sensível e material ? que entre elas a diferença é somente de grau, não de natureza ? (196) Parte, sim, a inteligência de dados fornecidos pelos sentidos, mas é somente com uma atividade estritamente imaterial que poderá "contemplar neles as essências despojadas da sua materialidade, subir ao conhecimento de coisas supra-sensíveis e imateriais, descobrir relações universais e constantes no fluxo incessante dos seres, abraçar o universo todo e descobrir-lhe as leis, prescrutar-lhe as causas últimas e elevar-se até à contemplação e adoração do absoluto, do eterno, cio infinito." (197)

II. Argumento.

150. — Entre a atividade intelectual há também a refle­xão completa, em que a inteligência se volta completamente sobre si mesma, tornando-se juntamente objeto conhecido e faculdade conhecedora. Acontece isso em todo juízo direto certo, e quando conscientemente nos percebemos pensando, julgando... (por isso essa consciência é chamada reflexa, auto-consciência = consciência de si mesma, a inteligência se conhece a Bi mesma). (198)

Ora uma tal reflexão completa não pode ser uma ativi­dade material, pois : no ato cognitivo material, quem age é o órgão animado, isto é, o conjunto do órgão com a faculdade que o informa, e o ato reside neste conjunto do órgão ani­mado; donde, para uma faculdade orgânica, refletir-se com­pletamente sobre si mesma ou sobre o seu ato incluiria também a reflexão completa do órgão sobre si mesmo; ora isso é impos­sível, porque o órgão é extenso com "partes extra partes" incompenetráveis: pode o órgão dobrar uma parte sobre outra, não porém o todo sobre o mesmo todo, como é necessário para que seja juntamente objeto e instrumento de conheci­mento; donde nenhuma faculdade orgânica pode conhecer-se a si mesma, nem ao próprio ato.(199)

CAP. I - ESPIRITUALIDADE DA ALMA

Logo o ato de reflexão completa é um ato imaterial.

151. CONFIRMAÇÃO da imaterialidade da atividade intelectual.

1. — Pelo domínio que o conhecimento intelectual tem

a) sobre si mesmo: a inteligência não só se conhece a si mesma e ao seu ato, mas conhece também as normas e as condições da sua atividade, e assim pode examinar, verificar os próprios pro­cessos e corrigi-los em caso de erro;

b) sobre o conhecimento senível: ela pode controlar os dados dos sentidos, verificar se agiram nas devidas condições, cor­rigir os chamados "erros dos sentidos", conhecendo-lhes o porquê (por ex., as leis da refração da luz), e assim pode julgar contra as aparências (por ex., julga intacta uma bengala que, meio imersa na água, lhe aparece como quebrada).

Ora, dirigir os próprios atos e o das outras faculdades subor­dinadas segundo ordens absolutas e imateriais, conhecidas reflexa e conscientemente, é uma atividade totalmente diversa, na natureza e no modo, da atividade material de uma faculdade orgânica, pois esta, dependendo inteiramente das impressões produzidas no órgão, não pode conhecer senão as aparências que impressionam este órgão.

Logo o nosso conhecimento intelectual é uma atividade ima­terial. (200)

2. — No conhecimento material, sensitivo, o objeto vem im­pressionar o órgão e quando este objeto supera certa intensidade, fica o órgão lesado por ele e a operação impedida ou por algum tempo, ou mesmo para sempre: assim uma luz intensa pode cegar, uma explosão violenta pode ensurdecer, uma dor veemente pode causar a morte, uma sensação muito intensa torna durante certo tempo o órgão insensível a sensações menores; uma sensação muito repetida diminui, e como que se apaga. Pelo contrário, o estudo de um assunto muito difícil não só não lesa a inteligência, mas a dispõe melhor para compreender assuntos mais fáceis para os quais pode passar imediatamente. Donde — é a conclusão que já Aris­tóteles deduzia — a inteligência na sua atividade não depende de um órgão material, e por conseguinte, a sua atividade não é de ordem material. (201)

3. — Os casos dos surdo-mudos cegos, que partindo somente dos dados do tacto puderam chegar a conhecimentos universais, a noções espirituais, à consciência do dever, ao conhecimento de Deus e da vida futura : o que supõe neles um princípio ativo interno e uma operação espiritual infinitamente superior ao alcance do sentido do tacto. — Assim as Irmãs Religiosas de Larnay (Viena) educaram Martha Obrecht e depois Maria Heurtin (1885 — 1921). (202) Nos Estados Unidos é célebre o caso de Helen Keller, que chegou até a escrever livros como "História da minha vida", "Mi­nha chave de vida".

* * *

(193) Cfr. Thonnard, obra cit., pp. 482-487. De fato, como compreender que uma operação, exercendo-se debaixo das condições da matéria, possa atingir um objeto situado fora da ordem material, onde nenhuma destas condições podo realizar-se?

(194) Cfr. BOYER, obra cit., II, p. 69

(195) O que conhecemos com a idéia de homem, de planta, de pedra, de peso... i. é, a natureza humana, a natureza da planta, da pedra, do peso, não tem forma nem cor, nem resistência nem peso, não ocupa lugar no espaço : a idéia de azul não é azul, a idéia de km não tem mil metros de comprimento, a idéia de quadrado não é quadrada, não tem peso, nem cheiro, nem cor... o que a idéia nos dá a conhecer é a natureza "absolute considerata" (n.° 73), desmaterializada pela abstração universalizadora (ns. 70-72).

(196) (Esta, irredutibilidade essencial entre o conhecimento inte­lectual e o sensível foi confirmada também pelas pesquisas experimentais. Cfr. DE LA VAISSIÈRE S. J., Eléments de Psychologie Expérimentale, Paris, Beauchesne, 1914, ns. 76 e 77.

(197) "É característica da inteligência a necessidade incoercível de ver, de saber; é uma sede — direi absurda ? direi sublime ? — de lua infinita. Ontem eu não existia, amanhã não existirei mais. Tenho somente um lampejo de inteligência. Uma nesga de céu, um astro, uma flor, deveriam bastar, parece, para absorvê-lo. Mas não : quero ver tudo, pene­trar tudo, o meu espírito ultrapassa todos os tempos, todos os lugares, todos os espaços, todos os objetos criados, e, com o poeta que no momento de morrer bradava : Luz, mais luz !, depois de ter virado todas as páginas de um livro, especulado todos os astros, esgotado todas as ciências, ávido e ainda insatisfeito digo: E depois? Eis o espírito do homem". BOUGAUD, O Cristianismo e os tempos presentes, Vol. I, cap. 1.

(198) Cfr. Thonnard, obra cit., pp. 791-792.

(199) Assim a vista não pode ver-se a si mesma nem ver a sua visão. Podemos nos sentir sentindo, porque há em nós (também nos animais) um sentido interno, o sentido comum (= consciência sensível), que tem por objeto as várias sensações dos sentidos externos e as suas diferenças. Nisso porém não há reflexão total de um sentido sobre si mesmo, nem sobre o ato próprio, mas somente conhecimento de atos produzidos por outros sentidos.

(200) Cfr. Santanna, obra cit. p. 213.

(201) Cfr, Santo Tomás, Contra Gentiles, 1. II, cap. 66; Boyer, obra cit., Vol. II, p. 70-1; E. Petazzi, Corso di Cultura Superiora Religiosa, Série II (1933-1934), pp. 27-28.

(202) Cfr. Arnould, Une ame en prison. Vide um resumo em Buysse, Vers la Croyance, pp. 213-217.

Alma Humana: diferença entre o homem e o macaco

ESCOLA "MATER ECCLESIAE"



CURSO DE FILOSOFIA POR CORRESPONDÊNCIA


IV. PSICOLOGIA FILOSÓFICA


MÓDULO 22: HOMEM E MACACO

Em nossos dias registra-se forte tendência a despojar o ser humano de todos os predicados que sempre foram tidos como características exclusivamente suas. Charles Darwin († 1882) insinuava que o ser humano não vem a ser senão um macaco aperfei­çoado; Freud († 1939) gloriava-se de haver reduzido o homem a joguete de instintos cegos, ao passo que a filosofia estruturalista decompõe o homem em elementos estrutu­rais sem conteúdo específico: proclama assim a morte do homem, como passo conseqüente à morte de Deus.

Este problema nos oferece a ocasião de continuar a estudar valores específicos do homem, que o distinguem dos animais infra-humanos. Assinalaremos três traços, que complementam quanto foi dito nos'Módulos anteriores sobre a espiritualidade da alma humana.

Lição 1: Ainda a linguagem humana

O chimpanzé e o gorila não podem falar nem aprender a falar linguagem sonora desenvolvida, como demonstram todas as tentativas até agora realizadas. Em conseqüência, os experimentadores têm procurado ensinar aos chimpanzés e aos gorilas alguns sinais, que se assemelham aos da linguagem dos surdo-mudos. A aprendizagem surtiu efeitos, como se depreende do relatório publicado por Francine Patterson com o título Conversations with a Gorilla em National Geographic, vol. 154, october 1978, pp. 438-465. Experiências anteriores à de Francine Patterson foram levadas a termo por cientistas como R. Fouts, Gardner, Rumberger, Gill, Glaserfeld...; os resultados foram positivos... Todavia D. Ploog em 1972 verificava que, mesmo diante de tal êxito, se devem registrar profundas diferenças: a comunicação entre animais e a linguagem usada pelos homens não diferem entre si apenas por diversidade de graus de perfeição dentro da mesma pretensa linha homogênea, mas supõem estruturas físicas e psicológicas essen­cialmente diversas: o homem é, por sua natureza mesma, um ser dado à cultura ou pré-programado para a cultura; o mesmo não se pode dizer a respeito dos animais inferiores ao homem, que são dados a repetir e imitar o que vêem, sem poder criar algo que dependa de lógica e raciocínio.

Nota-se também que os chimpanzés podem transmitir uns aos outros certos artifícios: assim na ilha japonesa Koshima, que não é habitada por seres humanos, uma fêmea de macaco descobriu certa vez que, para limpar batatas, não é necessário esfregá-las entre as mãos, mas basta mergulhá-las na água e lavá-las. Quatro anos mais tarde, a metade dos indivíduos do grupo a que pertencia tal fêmea, praticava o rito de lavar as batatas; no decorrer de dez anos, 71% dos membros do grupo haviam adotado tal costume por via de imitação. Deve-se, porém, observar que esta propagação de artifício não se deve ao desejo de educar, ensinar ou de comunicar aos semelhantes alguma novidade; ela se assemelha muito mais à difusão por contágio ou por imitação.

Lição 2: O Senso Ético

Já Charles Darwin em 1871 procurava enumerar os caracteres que distinguem o ser humano de maneira típica, permitindo assim estabelecer a linha divisória entre o homem e o animal inferior. Dizia então:

"Sem restrição, subscrevo a tese dos especialistas que afirmam que, dentre todas as diferenças existentes entre o homem e o animal inferior, o senso moral ou a consciência é a mais importante" (Die Abstammung des Menschen, p. 144).

Observações efetuadas em pessoas surdas e cegas de nascença revelaram que ao homem a consciência é inata, ou seja, anterior a qualquer experiência.

Somente o homem tem a noção do bem e do mal. Somente o homem pode tornar-se réu ou culpado. Em conseqüência, só o homem tem responsabilidade.

A responsabilidade, por sua vez, supõe liberdade de opção, faculdade esta que falta aos animais inferiores.

Não há dúvida, o animal tem uma bondade espontânea, a qual se manifesta principalmente no instinto materno; todavia não se pode dizer que essa bondade resulte de uma opção consciente. É inconsciente e indeliberada; o animal reage espontaneamen­te a certos estímulos como é o caso da prole ou dos filhotes. O ser humano também reage espontaneamente a tais estímulos; haja vista como as crianças gostam de brincar com bonecas, cachorrinhos, coelhinhos, etc. Todavia, à diferença dos animais, o homem é capaz de proceder contra os seus instintos; assim fazendo, ele se perverte ou... segue um ideal e cultiva valores que ele julga superiores à satisfação proporcionada pelos instintos. Só o homem pode assumir certas atitudes aparentemente paradoxais ou antitéticas aos instintos: a paciência, a misericórdia, o amor aos inimigos, a compaixão e a benevolência com os criminosos e perversos; tais virtudes estão fora do alcance dos animais, mas elas não são sobre-humanas; são, ao contrário, profunda e tipicamente humanas.

Mais: o animal não é capaz de assumir deveres ou compromissos; não se lhe podem impor normas, mesmo que se lhe imponha determinada aprendizagem. Por isto também a educação é fenômeno especificamente humano; sem educação não só o psiquismo do homem é prejudicado, mas também o próprio desenvolvimento biológico e corporal do homem sofre detrimento.

Tais ponderações evidenciam como o senso moral caracteriza o ser humano, distinguindo-o especificamente dos animais, e colocando o homem em posição singular no reino dos viventes.

Lição 3: O Marco Religioso

Dividiremos o nosso estudo em duas partes: 1) capacidade de refletir, 2) o fenômeno religioso propriamente dito.

3.1. A capacidade de refletir

Ainda ao estudar as diferenças entre o ser humano e os animais inferiores, Darwin apontava a consciência que o homem tem de si mesmo: esta é a chamada consciência psicológica, à diferença da consciência moral**

Quais as conseqüências deste fato?

1) Por sua consciência psicológica, o homem é capaz de refletir sobre si mesmo, sobre o seu presente, o seu passado e o futuro. Essa capacidade de refletir é caracterís­tica do ser humano, pois só este é sujeito de recordação propriamente dita; com efeito, um animal pode reconhecer o seu patrão ou determinados objetos quando estes lhe são apresentados de novo; mas somente o homem pode recordar-se de pessoas ausentes e de acontecimentos já ocorridos. Visto que os animais não conseguem isto, vivem quase exclusivamente no presente como vivem os bebês.

2) É precisamente a capacidade de recordar realidades ausentes que permite a formação de conceitos universais e de uma linguagem tal como o homem possui: linguagem que exprime noções universais, como homem, criança, belo, justo, injusto..., recorrendo aos mais diversos sons (francês, russo, chinês, bantu, tupi, etc).

3) Notemos outrossim: um ser para o qual só existe o presente imediato, não pode cultivar a história, como o homem a cultiva...

4) Nem pode ter responsabilidades, porque não pode prever as conseqüências de determinado comportamento seu...

5) Nem pode ter Religião como o homem tem, visto que a Religião põe o homem em contato com a transcendência ou com os valores históricos e trans-históricos. A Religião vem a ser, pois, um sinal típico e inconfundível do ser humano. Detenhamo-nos um pouco mais sobre esta afirmação.

3.2. O fenômeno religioso

O senso religioso, pondo o homem em contato com valores transcendentais, exprime-se, entre outras maneiras, através da crença na vida póstuma. É por isto que, desde os remotos tempos da pré-história, o ser humano sepulta os seus mortos. Os animais irracionais, diante dos seus semelhantes exânimes, experimentam sentimentos mistos de medo, insegurança, curiosidade, intranqüilidade... Mesmo a fêmea do macaco, apesar do seu instinto materno, não se preocupa com o sepultamento do filhote falecido: após a morte deste, ela ainda procura insistentemente alimentá-lo, carrega-o para diversos lugares,... mas, logo que o cadáver entra em decomposição e as características físicas do filhote se vão extinguindo, ela abandona o cadáver em qualquer lugar e não mais se interessa por ele.

Ora entre os homens a atenção aos mortos é uma característica das mais antigas.

Os fósseis do homo erectus (devidamente identificado) encontrados na Europa e na Ásia atestam esta verdade. O homem de Neandertal, por exemplo, sepultava seus mortos na posição de quem está dormindo, com a cabeça pousada sobre uma pedra; sobre o cadáver lançava pó de ocre, que tem a cor da vida (pardo, amarelo, vermelho, castanho...); junto ao defunto colocava alimentos, armas, instrumentos diversos e figuras ornamentais, que lhe serviriam na viagem para o além... O homem de Cromagnon também adotava tais costumes. Estes atestam a fé numa vida póstuma ou numa realidade transcendente.

Chamam outrossim a atenção dos estudiosos as pinturas encontradas nas cavernas da pré-história: representam motivos da caça ou da magia. Ora todo cultivo da arte está originariamente associado à Religião: esta sempre inspirou os pintores, os poetas, os músicos...

Ora a Religião, voltada para os valores transcendentais, é certamente uma carac­terística do espírito; ela é tão antiga quanto o homem, pois se manifesta desde a pré-história até hoje, e nunca foi cultivada pelo animal irracional. A existência, no homem, de sentimento religioso e de expressões correspondentes abre um hiato entre o ser humano e o macaco, hiato este que não foi superado ou transposto até hoje. Nem há possibilidade de superação, visto que a Religião supõe, no ser humano, a realidade do espírito ou da alma espiritual, ao passo que o princípio vital dos irracionais é meramente material. É a alma espiritual ou não material que faculta ao homem ter expressões de si que transcendem os dados concretos, materiais, a que está confinado o ser irracional. Pela religião, o homem se eleva aos valores invisíveis e ao Infinito, procurando assim a resposta às suas aspirações mais espontâneas que são aspirações à Verdade, ao Amor, à Justiça, à Vida, à Felicidade sem limites. É tão somente através do caminho da Religião e da Mística que o homem encontra os verdadeiros bens para os quais foi feito e dos quais o animal irracional não tem a mais pálida noção.

A Religião é inspirada pela necessidade que o homem experimenta, de dar sentido à sua vida ou de justificar, perante a sua consciência, a sua luta, o seu trabalho, o seu sofrimento e a sua morte. Na verdade, se não existem valores transcendentais que respondam às aspirações congênitas de todo homem, a presente realidade é vazia e frustrativa; o homem se torna um absurdo, perdido em meio às coisas passageiras que o cercam. E o homem-absurdo seria uma exceção no conjunto do universo, visto que este reflete ordem e harmonia — expressões de uma Inteligência Suprema.

Em nossos dias, a Religião continua sendo um fator típico da inteligência humana. Mesmo os que se dizem ateus, cultivam o Absoluto sob formas leigas ou secularizadas; é o caso do comunismo, ao qual o judeu Karl Marx deu a estrutura de um messianismo sem Deus; o proletariado sacrificado na luta de classes seria o Messias, que, morrendo, prepararia o surto de um homem novo, morigerado e pacífico. As categorias religiosas do judaísmo foram transpostas por Karl Marx para o plano da sociologia e da política; sobrevivem, porém, no esquema de pensamento marxista. — O marxismo cultua religio­samente certos valores meramente humanos ou profanos; este esquema caricatural já não satisfaz a muitos cidadãos, que hoje em dia se afastam do marxismo e das suas pantomimas para procurar a verdadeira fé e autênticas expressões religiosas. O senso religioso, inato em todo homem, vem de novo à tona apesar das tentativas de erradicação a que o marxismo o submeteu. Este fenômeno bem evidencia quanto o senso religioso é característico do ser humano. São sempre válidas as palavras de S. Agostinho (f 430): "Senhor, Tu nos fizeste para Ti, e inquieto é o nosso coração enquanto não repousa em Ti" (Confissões I 1).

Atraído irresistivelmente pelo Senhor Deus, o homem "ateu" de nossos dias cria suas místicas, seus "absolutos", seus deuses, suas superstições, que inadequadamente lhe fazem as vezes do único Deus.

* * *

[1]Ver Módulo 20 deste Curso.


[2]** A consciência moral é a faculdade que temos, de julgar o que convém ou não convém fazer em vista da consecução do nosso fim supremo; a consciência manda, a consciência aprova, a consciência censura nossos atos morais.

Alma Humana: Imortalidade

ESCOLA "MATER ECCLESIAE"



CURSO DE FILOSOFIA POR CORRESPONDÊNCIA

IV. PSICOLOGIA FILOSÓFICA


MÓDULO 23: A ALMA HUMANA — IMORTALIDADE

A alma humana, além de espiritual, é também imortal por sua própria essência. É o que passamos a estudar.

Lição 1: O Problema

Sabe-se que a morte não põe fim, por completo, à pessoa humana, pois os feitos desta continuam presentes aos pósteros; principalmente aquelas pessoas que contribuem mais eficazmente para a construção ou a destruição da humanidade, permanecem, de certo modo, atuando junto às gerações posteriores. É este o tipo de imortalidade que, por exemplo, o marxismo propõe ao ser humano a partir de suas premissas materialistas; a escola de Marx tenta reconfortar seus discípulos dizendo-lhes que a grandeza imortal do homem consiste em ser o carvão lançado na grande locomotiva da história da humanida­de; destrua-se, contanto que faça avançar o comboio, em cuja marcha cada um se imortaliza.

Outras correntes de pensamento admitem a sobrevivência da alma humana; sus­tentam, porém, a tese de que esta perde a sua individualidade e se integra num grande todo que leva uma vida impessoal. É o que professa o hinduísmo em geral.

Há, porém, quem afirme que a alma humana é por si mesma imortal, de tal modo que, quando o corpo já não lhe oferece condições de exercer suas atividades psicosso­máticas, a alma se separa do mesmo e subsiste em sua realidade individual e pessoal, exercendo os atos próprios da sua vida espiritual. É esta a tese clássica nas escolas de filosofia cristãs. Ultimamente, porém, alguns pensadores católicos, negando a distinção real de corpo e alma, asseveram que a morte extingue por completo o ser humano, mas Deus o ressuscita imediatamente após a morte!

Esta última tese não se sustenta desde que se admita, como se deve admitir, a distinção real de corpo e alma. Nos Módulos 19, 20 e 21 ficou comprovado que a alma humana é espiritual e o corpo material; a recusa desta afirmativa implica, ao menos implicitamente, profissão de materialismo.

Vejamos agora os argumentos em prol da imortalidade natural da alma humana, que é um ser distinto do respectivo corpo.

Lição 2: Imortal, porque espiritual

A morte é a dissolução do ser vivo.

Um ser pode dissolver-se de duas maneiras: por si mesmo ou em razão de outrem. No primeiro caso dissolve-se diretamente; no segundo caso, a dissolução ocorre em virtude da dependência em que tal ser se encontra em relação a outro, que se dissolve.

Ora a alma humana não pode dissolver-se por si, porque não é composta de partes, mas é simples, como todo espírito é simples ou isento de composição. A quantidade e a extensão são propriedades dos corpos; um espírito não consta de partes justapostas.

A alma humana não pode dissolver-se em razão de sua dependência de outrem, ou, no caso, do corpo, porque ela não depende do corpo para existir; sendo espírito, é diretamente criada por Deus e pode subsistir sem o corpo, embora exista para se unir à matéria e constituir com esta urn todo substancial que é o composto humano.

Objeta-se, porém: dado que a alma humana não existe necessária, mas contingen­temente, não poderia ela deixar de existir ou ser aniquilada? Em outras palavras: Deus, que criou a alma humana, tirando-a do nada, não a poderia reduzir ao nada? Neste caso, a alma humana não se decomporia nem se dissolveria, mas simplesmente perderia a existência.

Eis a resposta adequada: Deus, que criou, pode certamente aniquilar qualquer criatura, pois seu ato criador é livre; Ele não é obrigado a conservar na existência qualquer criatura que seja. Se, porém, consideramos a Onipotência Divina não como atributo de Deus isolado, mas em relação aos outros atributos divinos, verificamos que a aniquilação de uma alma humana contrariaria à sabedoria e à justiça de Deus. Com efeito, seria uma espécie de contradição, pois Deus retiraria o ser de uma criatura depois de lhe ter dado uma natureza imortal; além disto, a aniquilação seria algo de injusto, pois tornaria impossível a aplicação das sanções merecidas pelo ser humano nesta vida.

Note-se, aliás, que esta última é a única razão que Kant (f 1804) aceita para afirmar a imortalidade da. alma. A sobrevivência da pessoa humana, diz este filósofo, é uma exigência da consciência moral, pois é evidente que a justiça não reina neste mundo: a virtude não costuma ser devidamente recompensada, nem o vício adequadamente punido. Antes, o contrário ocorre com freqüência: o justo é perseguido, enquanto os maus prosperam. Ulteriores ponderações sobre este assunto seguir-se-ão na Lição 4 deste Módulo.

Lição 3: O Desejo Natural

Todo ser tende a se conservar e a perseverar na existência. Nos seres que usufruem de conhecimento, esse desejo é condicionado pelo conhecimento. O animal irracional conhece apenas a existência presente e não deseja outra realidade; não teme a morte porque não a conhece. O homem, porém, conhece o ser de modo absoluto, abstraindo do tempo. Deseja, em conseqüência, existir sem tempo ou, positivamente, conforme toda a duração possível do tempo — o que é existir sem limites de duração.

Ora o desejo natural de uma vida sem fim se deriva da própria natureza do homem; não é algo de convencional ou dependente de alguma forma de cultura. Tal desejo não pode ser frustrado ou vão; se o fosse, a natureza humana seria contraditória e absurda. Mais: ela suporia o Absurdo na sua origem, pois teria sido feita para a vida e a vida sem fim, mas não teria a capacidade de usufruir da imortalidade. Por conseguinte, a alma humana há de ser imortal, a fim de poder fruir da plenitude de vida à qual ela naturalmente aspira.

Dir-se-á, porém: se tal argumento é válido para a alma, há de ser válido também para o corpo, ou melhor, para o homem todo (composto de corpo e alma). Com efeito, o ser humano como tal deseja viver sempre e tem espontâneo horror à morte.

Em resposta, consideremos o seguinte:

O desejo de imortalidade do homem (ou do composto de corpo e alma), embora seja natural, não é senão uma veleidade ou uma aspiração ineficaz, pois o composto humano tende naturalmente a desgastar-se; os órgãos corpóreos se vão extenuando e tornando ineptos para a vida; no momento em que estão totalmente deteriorados, a vida nesse organismo se torna impossível e a alma humana se separa do mesmo.

Ao contrário, o desejo de imortalidade da alma humana pode ser eficaz, visto que a alma, não sendo composta, não se dissolve; além do mais, tem condições de sobreviver separada do corpo.

Há, pois, uma diferença entre o desejo natural de imortalidade do composto humano e o desejo natural de imortalidade da alma humana. Em conseqüência, diz a filosofia, o primeiro não tem conseqüências práticas, ao passo que o segundo as tem.

Estas afirmações hão de ser completadas pelos dados da fé. Esta ensina que o Senhor Deus, atendendo gratuitamente ao desejo natural de imortalidade do composto humano, instituiu a ressurreição física dos mortos. Jesus Cristo, Deus feito homem, tendo assumido a carne humana, quis padecer a morte do homem, a fim de vencê-la e ressuscitar como primícias de uma nova humanidade (cf. 1Cor 15,20). A ressurreição de Cristo é o penhor da ressurreição de todos os homens, a qual ocorrerá na consumação dos tempos, quando o Senhor vier em sua glória para dizer a última palavra da história.

Assim a fé ensina que o composto humano terá duração sem fim, pois, embora morra, o Senhor Deus lhe quer dar a vitória sobre a morte e conceder a plenitude da vida.

Lição 4: A Sanção da Justiça

O ser humano foi feito para a justiça, à qual aspira com toda a veemência. Contudo a justiça na vida presente é precária. Frequentemente as pessoas retas e dignas são materialmente prejudicadas por praticarem o bem, ao passo que os criminosos e iníquos são materialmente beneficiados pela perversão; a justiça humana e o curso da história não raro "premiam" os maus e "castigam" os bons.

Ora, se a alma humana não fosse apta a sobreviver após a existência presente a fim de receber a sanção de seus atos, a justiça ficaria definitivamente violada e conculcada no caso de muitos homens. A história da humanidade terminaria com o triunfo (ao menos, parcial) da injustiça e da desordem sobre a justiça e o bem. A prática da virtude não seria reconhecida como tal, mas, antes, colocada em plano de desprezo e rejeição. Ora tais conseqüências suporiam um mundo absurdo, e, na origem deste mundo, um princípio de contradição e absurdo, conseqüências estas que não condizem com a ordem e a harmonia que se verificam em geral no universo. Daí afirmar-se que a alma humana é, por si, imortal e, por conseguinte, apta a receber na vida póstuma a justa sanção, que muitas vezes na vida presente lhe é negada.

Se nada houvesse que correspondesse às aspirações inatas à vida, à justiça, à verdade, ao amor... que todo homem traz naturalmente em si, teriam plena razão os que, mediante entorpecentes e psicotrópicos, procuram "paraísos artificiais", ou aqueles que põem fim a si mesmos no suicídio. Diz sabiamente Gabriel Mareei:

"Se a morte é a realidade última, todo valor se aniquila no escândalo puro; a realidade está como que ferida em seu coração".

O que acaba de ser dito, pode ser ilustrado pela verificação de certos fenômenos ocorrentes na natureza. Esta parece excluir a frustração e o absurdo; com efeito,

se tenho olhos, é porque existe a luz para a qual o olho é feito;

se tenho ouvidos, é porque existem sons e melodias;

se tenho pulmões, existe o ar que lhes corresponde;

se tenho fome e sede, existem os alimentos de que preciso;

se a mulher tem o senso da maternidade e aspira a ser mãe, existe para ela a maternidade ou o poder tornar-se mãe.

Mais ainda:

se as águas do mar sobem por ocasião das marés, tornando-se agitadas e inquie­tas, sei que essa agitação não é casual, mas se deve ao atrativo sobre elas exercido pela Lua;

se a agulha magnética se agita dentro da bússola, posso estar certo de que existe um pólo Norte (invisível, sim, mas muito real) que a atrai e só permite que repouse quando devidamente voltada para o seu Norte.

Assim analogamente, se verifico em mim (anteriormente a qualquer reflexão filosó­fica ou religiosa) a sede de certos valores ou mesmo do Infinito, posso estar certo de que tais valores e o Bem Infinito existem no Além, em correspondência a tais aspirações.

Simone de Beauvoir, imbuída de existencialismo, escreveu muito acertadamente:

"Uma vida, para que seja interessante, deve assemelhar-se a uma ascensão: galga-se um patamar e, depois, outro..., cada patamar não existe senão em vista do patamar seguinte... Se essa subida, chegando ao auge, retrocede, ela se torna absurda desde o seu ponto de partida" ("Le sang des autres").

Aprofundando um pouco mais estas reflexões, observamos: o universo se apresen­ta marcado por nota de profunda harmonia; é o que declaram os estudiosos de qualquer dos reinos naturais: mineral, vegetal e animal (irracional). Einstein experimentava admi­ração extática ao considerar a ordem do infinitamente grande. Aliás, as ciências naturais não seriam possíveis se o universo e a natureza não fossem inteligíveis ou não fossem o produto de uma Inteligência Suprema que concebeu cada uma das criaturas (grandes e pequenas) e seu maravilhoso interrelacionamento. Pergunta-se, pois: somente o homem e sua existência sobre a terra seriam algo de absurdo ou destituído de explicação e razão de ser?

Vê-se que o absurdo consistiria, antes, em se admitir que somente o ser humano seja marcado pela nota do absurdo no conjunto das criaturas; parece desarrazoado que, colocado no todo harmonioso do universo, o homem, e somente o homem, não se beneficie da ordem que se exprime no conjunto e em cada um dos seus outros setores.

Em conclusão: certas interrogações e aspirações espontâneas em todo homem exigem respostas. Ora, já que tal resposta não é dada na vida presente por alguma das finitas criaturas que nos cercam, há uma vida póstuma, em que encontramos, sem disputa nem contestação, a resposta aos mais genuínos anseios do ser humano (resposta que é indissociável da fruição do Bem Infinito ou do Criador).

terça-feira, 25 de maio de 2010

Controle de Natalidade: lícita a ligação das trompas?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 004/1958)


“Dada a incidência de distócias (partos difíceis) nas gestações sucessivas de uma mesma mulher, depois de quan­tas estará indicada a salpingectomia (ligação ou mesmo extirpação da trompa)?”

Em caso nenhum, nem mesmo após repetidos perigos no parto, será lícito extrair ou ligar as trompas que em si não estejam doentes. Tal operação equivaleria a mutilar a natu­reza e fazer que as funções sexuais fiquem destituídas da sua finalidade primária (procriação da prole) para a qual o Criador as instituiu. Por conseguinte, a paciente que sofra de distócias, procurará desvencilhar-se das consequências destas por outro meio que não a mutilação de um órgão em si sadio.

Caso, porém, as trompas estejam diretamente afetadas por moléstia ou defeito, não há dúvida de que é permitido extraí-las, se este é realmente o único meio indicado para salvaguardar a vida da paciente. O médico deverá julgar em consciência as indicações e contra-indicações cirúrgicas e clínicas de cada caso. Extirpando as trompas doentes (cancerosas, por exemplo), ele estará eliminando o foco direto e certo de um perigo mortal para a paciente, ao passo que, eliminando as trompas sadias, estaria realizando antes de tudo uma operação esterilizadora, não absolutamente ne­cessária à conservação da vida da mulher (operação em si ilícita; cf. "Pergunte e Responderemos" fase. 6 1957, pág. 26-28; fase. 8 1957, pág. 36s) . É isto que modifica a mo­ralidade das duas operações.

Ciência e Fé: Einstein e Deus

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 026/1960)



«Seria possível averiguar exatamente qual o pensa­mento de Einstein a respeito de Deus? Einstein teve fé ou não?»

A questão é interessante, pois, sendo o físico e matemático Alberto Einstein considerado como um dos gênios dos últimos tempos, a sua posição perante o problema de Deus não deixa de ter significado. Verdade é que, para aderir a Deus, não basta ao homem possuir uma inteligência; muitas vezes o julgamento desta se desvia da verdade por causa de dificuldades de ordem moral ou por causa das conse­qüências práticas que a afirmação da verdade acarretaria consigo. Como quer que seja, será sempre útil o conhecimento das afirmações de homens inteligentes.


Proporemos abaixo, portanto, um esboço biográfico de Einstein, ao qual se seguirá breve análise do pensamento filosófico-religioso desse cientista.

1. Esboço biográfico

Alberto Einstein nasceu de pais israelitas na cidade de Ulm (Alemanha) aos 14 de março de 1879. Passou a juven­tude em Munique, onde seu pai trabalhava em eletro técnica. Em 1896 matriculou-se na Escola Politécnica de Zurich (Suíça), doutorando-se em 1905.

Os inícios dos estudos de Einstein em Zurich não foram alvis­sareiros, pois o jovem candidato se viu reprovado no exame de admissão à Escola Técnica Superior da cidade. O pequeno revés se devia ao fato de que, embora muito preparado em Física e Matemá­tica, Einstein não possuía bem as línguas modernas nem tampouco a Botânica e a Zoologia.

A partir de 1901 o sábio já publicava artigos sobre eletrodinâmica em revistas alemãs, o que lhe granjeou fama cres­cente. Em 1905 editou pequeno opúsculo sobre a «eletrodinâmica dos corpos em movimento», opúsculo que continha em gérmen a teoria da relatividade.

Em 1909 tornou-se catedrático de Física na Universidade de Zurich, ficando em exercício até 1913. Tendo-se aumentado o prestígio de Einstein, o Imperador Guilherme II da Alemanha nessa data convidou-o para a cátedra de Física na Academia de Ciências da Prússia; no ano seguinte (1914) o mestre su­cedeu a Jakob Van't Hoff na direção do Instituto de Física de Berlim. Foi-se tornando membro eleito das grandes Aca­demias de Ciências do mundo inteiro, enquanto as Universi­dades lhe iam conferindo o título de doutor «honoris causa». Em 1921, Einstein foi condecorado com o prêmio Nobel de Física. Exonerado de obrigações acadêmicas, o sábio dedicava seu tempo ao estudo, a conferências e debates em diversas nações sobre a teoria da relatividade. Apregoava ao mesmo tempo a filantropia, o pacifismo, mostrando-se adversário de todo imperialismo e grande fator do movimento sionista ou dos interesses do povo de Israel.

Em 1933 Einstein, que já vivia na Inglaterra ou nos Es­tados Unidos da América, rompeu com o regime nacional-socialista, pedindo sua demissão às Academias de Ciências da Prússia e da Baviera; não perdeu a ocasião de censurar então as sociedades de cientistas alemães por condescenderem com um governo que arbitrariamente denegava a muitos es­tudiosos os meios de viverem e trabalharem na Alemanha: «Eu não poderia pertencer, dizia ele, a uma comunidade que adota tal atitude, embora esta seja extorquida por pressão».

Na mesma época (1933) Einstein aceitou o cargo de Reitor da Universidade de Jerusalém; passou, porém, a residir nos Estados Unidos, na qualidade de professor da Universidade de Princeton. Após uma carreira de estudos cada vez mais brilhante, foi nesta cidade que o cientista entregou a alma ao Criador aos 18 de abril de 1955.

Interessa-nos agora reconstituir o perfil filosófico-religioso do grande varão. Para tanto, beneficiar-nos-emos dos estudos recente­mente publicados por Karlheinz Schauder, nos «Frankfurter Hefte», e G. Jasper, no «Deutsches Pfarrerblatt»; estes dois autores, trazendo à tona novos fatos e ditos concernentes a Einstein, possibilitaram-nos um conhecimento mais fiel da mentalidade do cientista alemão.

2. Einstein e o problema de Deus

1. Não seria inútil notar aqui, em primeiro lugar, o traço marcante da personalidade de Einstein, a saber: a sua independência de caráter. Esta se manifestava principalmente pelo desejo de se emancipar das convenções e dos hábitos, por vezes avassaladores, da vida social. Diz-se que o sábio não se intimidava por andar de sandálias, sem meias, com a cabeleira em desordem, prestes a mostrar a língua a um fotógrafo indiscreto; chegou a declarar: «Nunca pertenci de todo o coração a algum pais ou Estado, nem a um círculo de amigos, nem mesmo à minha própria família». —

Casou-se com antiga colega sua na Escola Politécnica de Zurich, tornando-se pai de dois filhos, que ele muito amava; divorciou-se, porém, e em conseqüência separou-se também dos filhos, contraindo novas núpcias com sua prima Elza. Este foi o episódio mais doloroso da vida de Einstein.

2. A tal independência de caráter associou-se outro fator importante para a configuração do pensamento do estudioso israelita. Filho de pai que zombava da Religião, Alberto re­cebeu sua primeira formação numa época em que mestres e livros costumavam apregoar oposição frontal entre um evolucionismo exagerado, de tendências monistas, e a tradicional fé em Deus; ainda ressoava nos ouvidos de muitos a sátira de Haeckel, que afirmara ter conseguido transformar o Deus dos cristãos em um «vertebrado gasoso». — Influenciado pela mentalidade da época, o jovem Einstein desde cedo abandonou a sinagoga; não se tornou ateu, mas passou a professar uma religião «cósmica», de caráter panteísta e vago; como ele mesmo dizia, acreditava na «existência de uma força pensante superior que se manifesta pelo insondável universo».

Significativo é o episódio seguinte: em 1919 ou 1920, tendo o Cardeal de Boston assinalado Einstein entre os ateus da época, um rabino de Nova Iorque telegrafou ao cientista nos seguintes termos: «Crê V. S. em Deus? Resposta paga, 50 palavras». Ao que Einstein respondeu: «Creio no Deus de Spinoza, que se manifesta na harmonia dos seres... Não em um Deus que se importe com as sortes e as ações dos homens».

De passagem diga-se que Baruque de Spinoza foi um filósofo judeu do séc. XVII (†1677), o qual professou o panteísmo ou a identificação de Deus com o mundo.

A ideologia de Einstein, como a de Spinoza, negava a liberdade de arbítrio do homem, como se este fosse habitual­mente impelido a agir por uma necessidade interior. — Ne­gando que a Divindade se importe com o destino e os atos do homem, Einstein estava naturalmente bem longe do conceito de Deus revelado pelas Escrituras de Israel, as quais descre­vem a Providência Divina a zelar carinhosamente pela sorte das criaturas.

3. Contudo o pensamento de Einstein não se fixou defi­nitivamente em tão pálidas noções religiosas. Em 1950, numa entrevista à imprensa, declarava :

«A opinião comum de que sou ateu, repousa sobre grave erro. Quem a pretende deduzir de minhas teorias científicas, não as entendeu... Creio num Deus pessoal, e posso dizer com sinceridade que nunca em minha vida cedi a uma ideologia ateia».

Na mesma entrevista, Einstein fazia observar, outrossim, que os homens de ciência concordam em afirmar que não há oposição entre Ciência e Religião; reconheceu contudo haver cientistas que ainda em nossos dias abraçam os pontos de vista de seus predecessores em 1880. E, para firmar bem sua oposição radical ao ateísmo, Einstein em 1950 não hesitava em asseverar que já aos 18 anos «considerava as teorias evolucionistas de Darwin, Haeckel e Huxley como teorias irreme­diavelmente antiquadas».

Entre parênteses seja lícito notar: não é o evolucionismo como tal que se opõe à crença em Deus, mas é o evolucionismo mecanicista ou casualista, que abstrai da ação de um Deus Criador e Providente.


O evolucionismo pode-se conciliar com a fé cristã; cf. «P. R.» 4/1957, qu. 1.

4. A verificação desse roteiro espiritual suscita espon­taneamente a questão: poder-se-iam indicar os fatores que levaram Einstein a trocar o panteísmo pela profissão de fé num Deus pessoal, distinto do mundo?

Schauder, nos estudos citados, assinala dois elementos que terão feito amadurecer de tal modo o pensamento do mestre:

a) a percepção adquirida nos últimos anos por Einstein e pelos cientistas em geral, percepção de que no interior do átomo não reinam a harmonia e a regularidade que os estu­diosos costumavam pressupor. Com efeito, no átomo apenas se depreendem leis prováveis, formuladas na base de esta­tísticas. Ora essa indeterminação ou essas lacunas no plano da matéria abrem lugar à intervenção de uma causa extrínseca, diferente da matéria, causa que equilibra e harmoniza as reações dissemelhantes ou contraditórias da matéria. Assim Einstein terá considerado as lacunas da ordem dentro da matéria como o ponto de encontro do finito com o Infinito, da criatura com o Criador, sendo Este essencialmente distinto daquela.

b) A bomba atômica também concorreu poderosamente para abalar o pensamento de Einstein. Tendo colaborado para a fabricação dessa arma, o grande cientista impressionou-se profundamente com as conseqüências da mesma. Avivou-se nele o senso da responsabilidade moral. Schauder julga mesmo que nos dizeres do velho Einstein se encontram esparsos os indícios de consciência do pecado e de atitude de oração. A idéia de Deus, em conseqüência, deixou de ser pálida e vaga na mente de Einstein, como fora outrora, para tornar-se muito viva. Ele reconheceu que, junto ao mistério do mundo (que, aliás, Einstein sempre respeitou), existe o mistério de Deus, mistério que requer fé da parte do homem.

São, sem dúvida, palavras do sábio consignadas em carta à sua irmã: «O fundamento de todos os valores humanos é a moralidade».


Em outra missiva, dirigida a Max Born, detentor do prêmio Nobel, escrevia Einstein:


«O que cada indivíduo pode fazer, é dar o exemplo da retidão de vida, e conceber a coragem de sustentar seriamente as suas convicções éticas em meio a uma sociedade de cínicos. Há muito tempo que, com sucesso desigual, procuro comportar-me desse modo».


Ora não resta dúvida de que o fundamento de toda a moralidade, tão vivamente apregoada por Einstein, é Deus, e Deus distinto do homem, Providente e Solícito para com a sua criatura.

5. Quanto a Jesus Cristo em particular, perguntaram certa vez ao sábio se acreditava na existência d'Ele. Ao que respondeu:

«Sem dúvida. Ninguém se pode iludir a respeito desses fatos: Jesus viveu, e suas palavras são admiráveis. Ainda que um ou outro pensador da antigüidade se tenha manifestado de maneira semelhante à de Jesus, nenhum deles se exprimiu de modo tão divino».


«Ninguém pode ler os Evangelhos sem tomar consciência da realidade de Jesus. A sua personalidade vibra em cada uma das suas palavras. Fábula nenhuma se apresentaria tão penetrada de vida. Muito diferente é a impressão que colhemos das narrativas de heróis legendários de tempos remotos, como, por exemplo, Teseu; todos esses carecem do fidedigno dinamismo de Jesus».


«Sou judeu. Contudo a figura brilhante do Nazareno exerceu extraordinária influência sobre mim».


Fato notável: quarenta anos antes de se exprimir de tal modo, Einstein costumava colocar Jesus no mesmo plano que Kant e Goethe!

6. A respeito da Igreja Católica, apraz ainda consignar a seguinte observação de Einstein:

«A Igreja Católica foi a única a levantar a voz contra o assalto dirigido por Hitler contra a liberdade. Até aquela época a Igreja jamais detivera a minha atenção. Hoje, porém, exprimo minha grande admiração e meu profundo apego a essa Igreja que, a sós, teve a inabalável coragem de lutar em prol da liberdade espiritual e moral».

Assim Einstein, do seu modo, professava o caráter único (diría­mos: sobrenatural) da Santa Igreja Católica.

Em conclusão: é de crer que o Senhor em seu justo juízo não terá desprezado tudo quanto de belo e nobre Ele mesmo colocou na alma de quem tão certeiramente soube elevar-se da matéria visível à Realidade invisível.

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Ciência e Fé: Darwin e a Religião

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 029/1960)



«Que pensar de Darwin e da sua teoria evolucionista?


Se o homem provém de viventes inferiores, que resta da doutrina bíblica segundo a qual terá sido criado por Deus?»

A questão levanta o problema complexo da origem do homem, problema que muitas vezes é formulado no seguinte dilema: «Criação ou Evolução?». Ora a questão assim ex­pressa está mal concebida. As dificuldades em grande parte se esvanecem desde que as formulemos em termos exatos. É o que tentaremos fazer abaixo, ao explanarmos a vida e a doutrina de Charles Darwin.

1. Biografia e pensamento de Darwin

1. Charles Robert Darwin nasceu em Shrewbury aos 12 de fevereiro de 1809. Desde cedo revelou grande interesse pela natureza; seus passa-tempos prediletos eram os de colecionar minerais, observar flores, capturar insetos e pássaros, e caçar em geral; nos anos de Ginásio, mostrou não ter memória para os versos de Homero e Virgílio, mas, sim, um pendão positivo para a Geometria e a Química, o que lhe valeu, como referem os biógrafos, a alcunha de «Gás»

Começou estudos de medicina em Edimburgo (1825-27). O genitor de Charles, porém, desejando que este se tornasse ministro da Igreja Anglicana, encaminhou-o para o Christ’s College de Cambridge; con­tudo o jovem não perseverou nos estudos eclesiásticos; voltou, ao contrário, a dedicar-se à História Natural e à Geologia, levando sempre conduta de vida assaz libertina.

De 1831 a 1836 realizou sobre a nave «Beagle» uma via­gem ao longo do litoral da América do Sul e através do Oceano Índico, viagem que havia de marcar decisivamente o resto de sua vida, pois Darwin então observou e colheu os muitos e variados dados de flora e fauna necessários para arquitetar suas futuras teorias. De volta à Inglaterra, publicou o diário desse roteiro com o título «Journal of Researches into the Natural History and Geology of the Countries visited during the voyage of H.M.S. Beagle» (Londres 1839).

Em 1842 recolheu-se à aldeia de Donn, onde prosseguiu incansavelmente até a morte (19 de abril de 1882) os seus estudos teóricos e práticos; publicou várias obras, das quais a mais famosa ficou sendo «On the Origin of Species by mean of Natural Selection» (Londres 1859; 6a. ed. em 1882).

Os 1250 exemplares da primeira edição desse livro venderam-se todos num só dia (24 de novembro de 1859). Ouviram-se natural­mente «prós» e «contras»: Adam Sedgwick, por exemplo, antigo professor de Darwin, julgou encontrar na obra «partes totalmente falsas e dolorosamente maliciosas»; Sir John Herschel, cientista e filósofo, qualificou-a de «Lei da Confusão». Outros grandes vultos, porém, como os de Hooker, Lyell e Wallace, deram pleno apoio à argu­mentação de Darwin.

2. A teoria do transformismo já fora lançada em 1809 pelo cientista francês Lamarck, o qual admitia o aparecimento da vida por geração espontânea e o aperfeiçoamento dos seres vivos por efeito tanto de um poder evolutivo intrínseco como por influência do ambiente. Darwin, após a sua viagem, já não alimentava dúvidas sobre o fato da evolução; a sua aten­ção voltava-se principalmente para o modo como as espécies se transformam. A explicação lhe foi sugerida pelo processo de seleção praticada pelos criadores de animais domésticos (pombos, bois, cães, cavalos...) para obter tipos ou raças cada vez mais úteis ao homem: Darwin julgou que a natureza, por sua vez, empreende gigantesco processo de seleção, extensivo a todos os viventes. Levando em conta outrossim a recém--formulada lei de Malthus (1798) segundo a qual os meios de subsistência não crescem na proporção do aumento das populações, Darwin admitiu a luta de todos os seres em prol da sua subsistência; nessa luta devem perecer multidões nume­rosas, a fim de não se esgotarem os recursos da terra. Pois bem; perecem naturalmente os indivíduos mais fracos, fi­cando apenas aqueles que estejam adaptados às árduas cir­cunstâncias do ambiente de vida; a necessidade de se adaptar terá aprimorado, nos animais e vegetais primitivos, as formas variantes mais adequadas, formas variantes que produziram não somente novas raças, mas também novas espécies de vi­ventes. Na obra «The Descent of Man», Darwin considerava até mesmo o gênero humano como resultante do desenvolvi­mento de animais inferiores: as faculdades intelectuais, a linguagem, o senso moral e as disposições religiosas do tipo humano não seriam senão modalidades biológicas de um vivente primitivo, modalidades que, em virtude de sua utili­dade, se foram conservando até hoje! A existência, no homem, do que se chama «o espírito», não seria senão um fenômeno biológico ou o resultado do processo de adaptação ao ambiente. O cientista inglês não negava que as espécies nos parecem hoje em dia estáveis e subtraídas à evolução, embora ainda se imponha a luta pela vida; explicava, porém, que tal aparência é ilusória, devendo-se exclusivamente à lentidão das transfor­mações, que de fato continuam a se dar.

O princípio segundo o qual a necessidade de sobreviver provoca a formação de órgãos adequados levava Darwin a explicar por esse modo o aparecimento mesmo dos órgãos mais complexos do corpo humano. A respeito do olho, porém, o cientista inglês experimentou certa hesitação, que ele conseguiu finalmente vencer; eis o que se lê em uma de suas cartas: «Até agora o olho provoca-me arrepios; mas, ao pensar nas belas gradações conhecidas, minha razão me diz que é preciso dominar o espanto» (Vida e correspondência t. II pág. 124).


Em outro episódio de sua correspondência, Darwin reconhecia que a lei da seleção natural, fundamento de toda a sua teoria, não passava de mera hipótese de trabalho, visto carecer de provas devi­damente claras:

«A crença na seleção natural deve hoje fundar-se inteiramente sobre considerações de ordem geral. Quando descemos a particulares, podemos provar que nenhuma espécie mudou ou (com outras palavras) não podemos provar que uma só espécie tenha mudado; também não podemos provar que as mudanças pressupostas sejam úteis, tese que constitui o fundamento da teoria» (carta a Bentham, 22 de maio de 1863).

3. É esta, em suma, a teoria evolucionista de Darwin. Como se vê, caracteriza-se por sua índole mecanicista ou alheia a todo finalismo. O famoso naturalista não deu lugar em suas elucubrações à ação de uma Providência Divina que dirija soberanamente todos os seres, fazendo que as mudanças entre as criaturas tenham seu sentido e convirjam para a realização de um plano sábio e grandioso. Conseqüentemente, o autor de «The Descent of Man» reconhecia: «Não ignoro que muitos rejeitarão como altamente irreligiosas as conclusões a que chegamos nesta obra» (trad. franc. Paris 645).

Na verdade, Darwin foi aos poucos perdendo o senso re­ligioso de sua juventude, chegando no fim da vida a flutuar entre o deísmo (reconhecimento de um Deus que não interfere senão vagamente no curso deste mundo) e o agnosticismo. Na edição definitiva da obra sobre «A origem das espécies» (1882) ele ainda falava do «Criador»; afirmava outros­sim: «Julgo que minhas concepções não são necessariamente atéias» (Vida e correspondência, t. II pág. 175). Reconhecia ademais que o acaso não explica este mundo. O fato, porém, é que qualquer afirmação da existência de Deus, logicamente exigida pela observação da natureza, nele era minada pela dúvida fundamental: Será que as convicções da inteligência humana, oriunda do psiquismo dos animais inferiores, têm algum valor e atingem a realidade objetiva?

Assim, por exemplo, escrevia Darwin a um amigo em 1881: «Exprimiste minha convicção intima, ... a saber: o universo não é o resultado do acaso. Mas a dúvida me assalta sempre, e pergunto--me se as convicções do homem, que se desenvolveu do espírito de animais inferiores, têm algum valor, de sorte que nelas possamos de algum modo confiar» (Vida e correspondência, t. I 368).


Apenas de passagem, antecipando o que mais adiante se frisará melhor, note-se que a sã Filosofia rejeita a expressão «espírito de animais inferiores». Nos irracionais não há espírito; cf. «P. R.» 5/1958, qu 1.


Em sua autobiografia, redigida em 1876. Darwin se pronunciava de modo análogo, após haver criticado o argumento em favor da existência de Deus derivado da convicção íntima da maioria dos homens:

«Impressiona-me por seu peso... ainda outro motivo de crer na existência de Deus. Tal motivo é a extrema dificuldade ou, antes, a impossibilidade de conceber o universo prodigioso e imenso, em particular o homem, com sua faculdade de se referir ao passado e de considerar o futuro, como o resultado de um destino ou de uma cega necessidade. Refletindo, sinto-me levado a admitir uma Causa primeira, dotada de espírito inteligente, análogo sob certos aspectos ao espírito do homem; mereço então ser chamado deísta. — Tal conclusão, aliás, estava fortemente arraigada em meu espírito, enquan­to me posso lembrar, na época em que escrevi 'A origem das espécies'; foi depois desse período que tal convicção se debilitou muito gradativamente, e com várias hesitações. Uma dúvida, porém, surge em mim: o espírito do homem, que, segundo me parece, não era a principio mais desenvolvido do que o espírito de animais inferiores, merecerá confiança quando ele deduz tão importantes conclusões?» (Vida e correspondência, t. I 363s).

Enfim, parece que,solapado por sua própria teoria evolucionista. Darwin perdeu cada


vez mais a noção de um Deus Bom e Providente, para cair no quase completo agnosticismo:


«Nas minhas mais graves oscilações, jamais cheguei ao ateísmo no sentido próprio da palavra, isto é, nunca neguei a existência de Deus. Creio que de modo geral, na medida em que vou envelhecendo, a descrição mais exata do meu estado de ânimo é a do agnóstico» (Correspondência, trad. franc. Paris 1888, pág. 354).

4. O varão cujo pensamento fica assim delineado, tor­nou-se no setor da biologia empírica um dos maiores vultos do século passado: chamando a atenção para o fator «evolu­ção», inegavelmente abriu novos horizontes para muitas pes­quisas científicas (no setor da etnologia, da sociologia, da economia, etc.). A figura do naturalista inglês foi realçada em 1959, quando se celebrou o primeiro centenário da publi­cação da obra «Sobre a origem das espécies». Fica, porém, no espírito de muitos observadores uma dúvida assim conce­bida: pode alguém ser evolucionista sem cair, como Darwin, no agnosticismo ou mesmo no materialismo puro? Se a for­mação das espécies se explica por evolução, onde fica a idéia de um Deus Criados de todas as coisas, visíveis e invisíveis? Não terão razão os que propõem o dilema: «Ou Criação e crença em Deus ou Evolução e renegação de Deus?».

É a tais questões que vamos dedicar o parágrafo seguinte.

2. Criação ou evolução?

1. O dilema acima formulado é inconsistente, pois os dois termos não se excluem mutuamente.

Com efeito. Que se entende por «criação»? — Criação é o ato de dar existência a um ser a partir do nada.

E que se entende por «evolução»? — Evolução não é senão o desenvolvimento de matéria preexistente que tende a formas de existência cada vez mais perfeitas.

Ora o fato de que criação e evolução não se excluem re­ciprocamente se prova pela observação seguinte: quem fala de matéria em evolução, tem que explicar donde provém essa matéria.

Se diz que está eternamente, ou sem princípio, em evo­lução, afirma algo de impossível ou, mais precisamente, algo que a ciência da termodinâmica rejeita: esta ensina, sim, que o movimento do universo tende a um estado de equilíbrio ou de repouso; ora, se tende ao repouso, começou a partir do repouso; o movimento, portanto, teve princípio e terá fim; o nosso universo, se não tivesse começado a se mover em época relativamente recente, estaria agora em estado de equilíbrio ou de imobilidade. Donde se vê que a matéria em evolução não se explica por si mesma; ao contrário, ela supõe um Ser absoluto que lhe tenha dado a existência a partir do nada e o seu respectivo movimento. Esse Ser absoluto é o Criador, Deus, sem dúvida alguma diverso da matéria. Cf. «P.R.» 6 1957, qu. 1.

Em última análise, pois, criação e evolução não se ex­cluem. Quem é criacionista, pode ser também evolucionista, e vice-versa.

2. Faz-se mister, porém, examinarmos de mais perto em que termos se dá a conciliação das duas posições.

Para explicar o mundo presente, requerem-se natural­mente tantos atos criadores de Deus ou tantas produções a partir do nada quantos são os tipos de criaturas irredutíveis um ao outro. Ora, na verdade dois são os tipos de criaturas dos quais um não se pode derivar do outro: a matéria e o espírito. — A matéria pode ser inanimada ou animada, animada por vida vegetativa apenas ou por vida vegetativa e sen­sitiva. Quanto ao espírito, ele é sempre animado, e animado por vida intelectiva. Cf. «P.R.» 7 1958, qu. 1.

É o que em esquema assim se pode reproduzir:


MATÉRIA:


INANIMADA: mineral


ANIMADA:


Animada vegetal, e


Animada sensitiva(animal racional)

ESPÍRITO: animado por vida intelectiva

Por conseguinte, as grandes etapas da origem do mundo e do homem assim se poderiam, a rigor, reconstituir:

Deus, por um ato criador (isto é, produzindo a partir do nada), terá dado existência à matéria primitiva (informe, em estado de nebulosa ou como a ciência julgar mais verossímil). A essa matéria inicial o Criador haverá comunicado as leis de seu sucessivo aperfeiçoamento (ou de sua evolução): a matéria então, sob o regime da Providência Divina, terá pas­sado lentamente pelas transformações que os astrônomos e geólogos apontam, de modo a constituir o nosso sistema pla­netário e, dentro deste, o globo terrestre com suas rochas e seus minérios. A vida vegetativa e a vida sensitiva, sendo ambas derivadas de um princípio material (que, conforme ensinam os filósofos, é eduzido da matéria e reabsorvido por esta), podem ter aparecido por evolução da matéria, sem que, a rigor, tenham sido diretamente criadas a partir do nada. A matéria animada (o reino animal) se terá desenvolvido até chegar ao grau de complexidade e perfeição necessário para ser sede da vida espiritual ou intelectiva. Então, após tão longa fase de evolução, necessariamente Deus terá intervindo de novo mediante um ato criador (a rigor, poderia ser o segundo ato criador) para produzir a alma humana. . . Esta, em abso­luto, não pode provir da matéria, pois, como foi demonstrado em «P. R.» 5 1958, qu. 1, ela é espiritual, e o espírito se dis­tingue essencialmente do corpo.

Em poucas linhas, todo o plano se poderia assim resumir
Ato Criador: Produção da Matéria Primitiva

EVOLUÇÃO REGIDA PELA PROVIDÊNCIA:

   Aparecimento dos Minerais.


   Aparecimento dos Vegetais.


   Aparecimento dos Animais Irracionais.

Ato Criador: Produção da Alma Humana


Tornam-se oportunas algumas observações ao esquema acima:

1) Não há dúvida, toda e qualquer alma humana, no decorrer dos séculos, tem a mesma origem, ou seja, é direta­mente criada por Deus.

2) Entre os dois atos criadores acima notados, é claro que Deus pode ter efetuado outros atos criadores. Não poucos estudiosos julgam que a vida, mesmo em seu grau ínfimo (que é o grau vegetativo), não se pode explicar por simples pro­cesso evolutivo da matéria (a vida vegetativa não poderia estar contida dentro da potencialidade da matéria, embora o seu princípio vital seja material); em tal caso, tornar-se-ia evi­dente que Deus interveio no mundo para criar os primeiros seres vivos. Há também quem julgue impossível a transição de uma espécie para outra nos reinos vegetativo e sensitivo; Deus então terá interferido com sua potência criadora tantas vezes quantas sejam necessárias para explicar as diversas espécies de viventes (note-se, porém, que é difícil delimitar as espécies e que as intervenções criadoras de Deus não são perceptíveis ao cientista, pois não deixam vestígios diretos nas camadas da terra).

Ao confeccionar o esquema acima, o que nos interessava era unicamente mostrar o que, no mínimo, se deve admitir no tocante aos atos criadores de Deus; as duas intervenções apontadas bastam, a rigor, tanto aos olhos da Filosofia como aos da Revelação cristã, para explicar o mundo presente.

3) A quem pergunta se «o homem foi criado por Deus ou é proveniente do macaco» (é assim que popularmente se costuma formular a questão), dever-se-á necessariamente res­ponder mediante uma distinção:

a alma humana, em toda e qualquer época, é criada por Deus;

o corpo humano pode-se ter originado por evolução de corpo já animado; quem deve decidir e explicar a questão são os homens de ciência, pois a Revelação não tem doutrina pró­pria sobre o assunto. Hoje em dia os estudiosos diriam que o corpo humano, caso seja produto de evolução, descende não dos macacos atuais, mas de um vivente mais primitivo, do qual tanto o homem como os símios modernos são oriundos.

3. Mais uma vez Darwin. . .

De quanto acaba de ser dito, percebe-se que o que a sã razão e a Religião têm a objetar a Darvvin não é, de modo algum, o fato de ter ele apelado para a evolução a fim de explicar a origem das espécies. Duas outras são as dificuldades que o filósofo e o teólogo formulam contra o darwinismo:

1) a índole mecanicista da evolução apregoada pelo cientista inglês. Não levando em conta o finalismo do universo (inanimado e animado), Darwin entrou em conflito com a noção de Deus sábio e providente. Este se compraz, sim, em utilizar as criaturas e sua potência evolutiva para atingir fins grandiosos, mas nunca teria abandonado as criaturas a uma luta cega e mecânica em prol da própria subsistência.

O finalismo dos diversos processos evolutivos é hoje em dia geralmente admitido; quanto mais os estudiosos conhecem os seres vivos, tanto mais neles percebem a tendência a conservar sua estrutura característica, ao mesmo tempo que se adaptam às necessidades da luta pela vida; tenha-se em vista, por exemplo, o mimetismo de muitos organismos, que tomam colorido e formas acomodadas ao ambiente onde se acham (sabem até mesmo «imitar o morto»...);... os olhos com lentes bifocais no peixe tetroftalmo, que, vivendo à tona da água, precisa de ver tanto debaixo da água como fora desta;... as várias simbioses, como a da alga e do cogumelo;... a vasta escala de instintos nos animais, alguns dos quais visam acontecimentos posteriores à própria morte dos agentes (assim há borboletas que põem seus ovos dentro da planta necessária para alimentar a futura larva após o desaparecimento da borboleta mãe...);... a distribuição das folhas nos ramos de modo a se ofe­recerem à luz...

Verificando tais e outros fatos, muitos estudiosos modernos (ca­tólicos e não-católicos) professam o evolucionismo, evolucionismo, porém, finalista (orientado por uma Inteligência suprema, que parece ter deixado um vestígio de Si em cada ser vivo).

2) O sistema de Darwin é falho outrossim por não re­conhecer a diferença entre espírito e matéria. Darwin mesmo foi vítima dessa posição, pois julgava conseqüentemente não poder atribuir grande valor às suas faculdades intelectivas, visto que as considerava quais meras excrescências do psiquismo do animal bruto ou irracional.

Em termos positivos, a distinção entre espírito e matéria já foi explanada em «P. R.> 5/1958. qu. 1.

Em conclusão: o que no século passado tornou o darwinismo infenso às escolas católicas, foram as idéias filosóficas com as quais o naturalista inglês e seus discípulos associaram as teses evolucionistas. Com o decorrer dos tempos, verificou-se que tal associação não é em absoluto necessária. Há distinção nítida entre darwinismo e evolucionismo, como foi evidenciado atrás; salva-se a doutrina da evolução biológica, sem que se renegue a Providência de Deus, que criou a matéria e o es­pírito e que tudo governa.

Não se poderia encerrar a presente resposta sem uma referência aos fascículos de «P. R.» nos quais são elucidadas as páginas da S. Escritura atinentes à origem do mundo e do homem. Veja-se:


«P. R.» 26/1960, qu. 4 (criação do mundo em seis dias?);


cP. R.» 7/1958, qu. 1 (origem da vida);


«P. R.» 4/1957, qu. 1 (origem do primeiro homem e da primeira mulher);


eP. R.» 7/1957, qu. 2 (origem das raças humanas);


«P. R.s» 9/1958, qu. 1 (teoria de Teilhard de Chardin);


«P. R.» 20/1959, qu. 4 (monogenismo ou poligenismo? Um ou vá­rios casais na origem do gênero humano?).