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sexta-feira, 21 de maio de 2010

Bíblia: o mundo foi criado em 6 dias?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 026/1960)


«A fé ensina que realmente o mundo foi criado em seis dias de 24 hs., como se costuma afirmar em nome da Escritura Sagrada?

E como seria possível que já houvesse luz, dia e noite antes da criação do sol, da lua e das estrelas, como insinua a mesma Escritura?»



As questões acima causam a muitos leitores da Bíblia dúvidas que lhes parecem decisivas contra a autoridade dos livros sagrados. Na verdade, trata-se simplesmente de problema mal formulado ou mesmo irreal. As dificuldades levantadas no caso se resolvem em princípio mediante a observação seguinte: a Bíblia, embora seja um Livro divino, foi redigida por autores humanos (Moisés, Davi, Isaías...), que Deus se dignou, sim, utilizar, sem, porém, derrogar ao costumeiro modo de escrever desses homens; a Sagrada Escritura, por conseguinte, foi composta conforme as regras de estilo usuais no período que vai do séc. XIII a. C. (Moisés) até o fim do séc. I d. C. (S. João Evangelista). Torna-se então evidente que não se pode perceber o significado autêntico das páginas sagradas sem se apli­carem ao texto estudado os critérios de interpretação usuais na análise de qualquer documento da literatura humana; ora entre estes critérios se acham a consideração da mentalidade do autor respectivo, da época em que escreveu, a verificação das fontes que usou, do círculo de leitores que teve em mira... A exegese bíblica, por muito que isto surpreenda, não dispensa esses recursos usuais em qualquer exame literário; donde se vê que não basta simplesmente a piedade para se entender a Bíblia (embora a piedade tenha partes preponde­rantes, sem dúvida), mas requer-se um pouco de cultura humana.

Tendo em vista estas premissas, passemos ao tema da criação do mundo na Escritura Sagrada. Verificamos logo de início, que a Bíblia em mais de uma passagem apresenta a narrativa da criação; assim, em Gên l,l-2,4a ; 2,4b-3,24 ; Prov 8,25-31 ; Jó 38.4-35 ; SI 103. Contudo num só trecho, isto é, em Gên l, l-2,4a, descreve a ação de Deus dentro do esquema de «seis dias de trabalho e um de repouso» (donde o nome de «hexaémeron» que toca a essa passagem: em grego, hex = seis ; heméra = dia). Ora isto já chama a atenção do crítico, pois significa que o trecho de Gên l, l-2.4a é bloco literário independente das passagens que versam sobre o mesmo assunto; parece obedecer a regras de estilo e a fina­lidade próprias. Donde se segue que, para averiguarmos se a Bíblia realmente ensina a criação do mundo em seis dias, é necessário apliquemos nossa atenção à análise do chamado «hexaémeron». É o que vamos fazer, considerando primeira­mente o estilo da peça, para depois formular a sua genuína interpretação.

Justamente uma das falhas dos nossos manuais de História Sagrada consiste em que dão simplesmente como doutrina da Bíblia os dizeres de Gên l, l-2.4a. sem levarem em conta os textos bíblicos, paralelos referentes à criação do mundo nem as regras de estilo esquemático e simbolista do «hexaémeron».

1. O estilo da narrativa dos seis dias

1. Os estudiosos são unânimes em afirmar que o bloco de Gên l, l-2,4a, embora constitua a primeira página da Bíblia, foi redigido em época relativamente recente, ou seja, depois de muitas outras páginas bíblicas; e... redigido em estilo poético, não no estilo de um documento de ciências naturais.

Quais seriam as bases desta afirmação?

1) Já numa primeira aproximação chamam nossa aten­ção o ritmo muito burilado e o estilo polido da peça. O con­ceito de Deus que aí transparece, é assaz elevado ou filosó­fico: o Criador não é descrito antropomorficamente, à guisa de «Oleiro» nem de «Jardineiro», nem de «Cirurgião», nem de «Arquiteto», nem de «Alfaiate», como na passagem se­guinte (cf. Gên 2,7.8.21; 3.21). Ao contrário, o autor dá a ver que, unicamente pela expressão de sua vontade ou pela sua palavra, o Senhor Deus comunica existência a todos os seres. Ora tais características manifestam uma fase da men­talidade de Israel, humanamente falando, já bem amadurecida na escola do Senhor.

2) Toda a narrativa se dispõe dentro dos moldes de «sete dias», que parecem corresponder a sete estrofes de um poema. Essas estrofes, exceto apenas a sétima, repetem com certa variabilidade os sete seguintes elementos:

a) Ordem do Criador: «Disse Deus: Faça-se...».

b) Cumprimento da ordem; «E fez-se assim».

c) Execução (mais precisa descrição do efeito):

«E Deus fez o firmamento.... dois luzeiros... E a terra produziu a erva...».

d) Aprovação da obra: «Deus viu que era bom...».

e) Imposição do nome: «Deus chamou a luz Dia.... o firmamento Céu...

o Seco Terra...».

f» Bênção divina.

g) Indicação do dia (conclusão): «Houve tarde e manhã;

foi o 1°, 2°, 3° dia...».

3) O simbolismo dos números ou o emprego místico artificioso de certas cifras domina todo o texto do «hexaémeron».

Sabemos que, para os antigos, os números muitas vezes repre­sentavam não quantidades, mas qualidades; atribuídos a determinado sujeito, podiam indicar propriedades morais ou valores religiosos, não quantidades físicas nem valores matemáticos. Os números que gozavam de maior estimação, eram 3, 4, seus derivados 7 ( = 3 + 4), 12 ( = 3x4) e 10; cada um deles exprimia, do seu modo, a perfeição.

Eis como o emprego artificioso dos números se manifesta no «hexaémeron:

A distribuição de toda a narrativa em 6 + 1 dias (seis dias de trabalho e um de repouso) obedece a um proceder de estilo assaz usual nas antigas literaturas orientais. Significava que uma obra havia sido iniciada (6) e, por fim, consumada, rematada (+ 1); os escritores punham em relevo na série o número 7 ou a sétima unidade (símbolo da plenitude ou per­feição), para inculcar que a obra havia sido realmente levada a termo feliz, coisa que não sempre se dá nos empreendimentos humanos.

Eis apenas um exemplo da literatura não bíblica ilustrativo de tal proceder estilístico:

A narrativa babilônica do dilúvio apresenta a seguinte passagem:

«Junto ao monte de Nisir chega a nave,

O monte de Nisir deteve a nave, não mais a deixou mover-se;

Um dia, um segundo dia,

O monte de Nisir deteve a nave, não mais a deixou mover-se;

Um terceiro, um quarto dia,

O monte de Nisir deteve a nave, não mais a deixou mover-se;

Um quinto, um sexto dia,

O monte de Nisir deteve a nave, não mais a deixou mover-se;

Quando chegou o sétimo dia,

Fez sair uma pomba, deixou-a partir».

(Gilgamesh t. XI cc. 141-7).

Na literatura bíblica, veja-se o esquema 6 + 1 em Jó 5.19; Prov 6,16.

Além disto, os primeiros números são, no «hexaémeron», empregados e realçados de maneira que bem se mostra intencional:

1 — Um só Criador. Deus (da unidade procede a multiplicidade);

2 — notem-se os pares «céu e terra», «informe e vazia»,

«luz e trevas», «tarde e manhã», «terra e água», «águas inferiores e águas superiores», «luzeiro maior e luzeiro menor»;

3 — três regiões: céu, águas e terra;

três espécies de plantas: ervas, cereais, árvores frutíferas; três espécies de animais aquáticos: monstros marinhos, peixes, voláteis (estes eram julgados habitar entre as águas inferiores e as superiores);

três espécies de animais terrestres: domésticos, répteis, sel­vagens ;

três categorias de astros: sol, lua e estrelas, com um conjun­to de três funções;

três imposições de nome: 1,5.8.10;

três bênçãos: 1,22.28; 2,3;

6 — seis dias de trabalho;

7 — sete dias em toda a narrativa;

sete aprovações;

sete vezes «E assim se fez»;

sete fórmulas que se repetem em toda a narrativa;

10 — dez vezes «Deus disse...»;

12 — Doze são as ações atribuídas a Deus em toda a obra da

criação: criar, pairar, dizer, ver, separar, nomear, fazer,

colocar, abençoar, consumar, repousar-se, santificar;

doze vezes é mencionada a água (elemento importantíssimo em Gên 1!).

4) Confirma-se a conclusão decorrente dos itens acima, caso se compare o «hexaémeron» com os outros textos da Sagrada Escritura que narram, também eles, a criação do mundo. Embora aludam aos mesmos elementos mencionados pelo «hexaémeron» (caos inicial, estrelas, águas e terra, ani­mais irracionais e homem), de modo nenhum referem o es­quema de seis dias e a ordem de aparecimento das criaturas que ocorrem no texto de Gên 1. Ora, se esse esquema e essa ordem fossem realmente históricos, é de pressupor que os outros textos os apresentassem ou ao menos insinuassem; já, porém, que isto não se dá, conclui-se que a moldura dos seis dias e a sucessão de obras que eles enquadram, são mero ar­tifício do autor do «hexaémeron».

2. A intenção do autor sagrado

1. O exame literário do texto de Gên l,l-2,4a acaba de evidenciar que o escritor não tinha em vista redigir um do­cumento de índole científica para nos instruir sobre as fases pelas quais passou o mundo na sua formação. Não; o setor das ciências naturais ou a «Física» ficava fora das preocupa­ções do autor; o que lhe interessava, era apresentar a «Meta­física» ou o aspecto transcendente, religioso, do mundo e do homem. Para realizar essa tarefa, é claro que o escritor tinha que aludir às criaturas, mencionando as principais categorias destas, a fim de as relacionar com Deus. Em sua maneira de aludir, teria podido servir-se (se o Espírito Santo o tivesse iluminado especialmente) da nomenclatura usual no século XX: haveria então falado da Via Látea e das galáxias esparsas pelos espaços cósmicos, haveria mencionado as eras geológicas que conhecemos, a energia nuclear, a estrutura da matéria com seus eletrônios. . . Contudo, o Senhor não quis revelar tais noções ao antigo escritor judeu, pois as ciências naturais não são propriamente o objeto visado pela Bíblia; para obter o seu fim, bastava que o autor usasse da linguagem de sua época antiga; foi o que de fato se deu. Donde se vê quão importante se torna tomarmos consciência das concepções e da nomenclatura de cosmologia dos antigos judeus, para en­tendermos devidamente o «hexaémeron».

2. Quais eram, pois, essas concepções?

Os orientais costumavam dividir o universo em três re­giões circulares e concêntricas: a de cima seria a dos ares; a do meio, a das águas, enquanto o globo central seria a re­gião da terra. Pois bem; para dizer que essas três regiões com tudo que elas contêm, são obra de Deus, o autor israelita apresentou a atividade do Criador distribuída por duas séries de três dias de trabalho: na primeira série ou nos três primeiros dias ele quis descrever o Senhor a constituir as regiões ou os compartimentos como tais ; a seguir, na segunda série ou nos três últimos dias, mostrou o Senhor a colocar os habi­tantes nas respectivas regiões.

Antes, porém, de mencionar a constituição dos habitáculos, ou seja, antes da primeira série de três dias, o autor sagrado referiu a criação da matéria em seu estado primordial, caótico: essa matéria, diz ele, constava de uma massa de terra («a terra informe e vazia»; 1,2), envolvida de águas («abismo», «águas», 1,2), sendo isso tudo cercado de trevas (1.2). — Do outro lado, ao terminar a série dos seis dias, o escritor quis apresentar o Senhor Deus à guisa de operário que entra no merecido repouso após encerrada a sua tarefa; donde o sétimo dia da série (2,1-3).

Desses dados resulta o esquema seguinte:

I. Criação da matéria caótica

(terra, águas, trevas): 1,1-2

II. Distinção das três regiões do universo

Dia Constitui-se a

1° Região do Céu... 1,3-5

2° Região das Águas 1,6-8

3° Região da Terra 1,9-13

III. Produção dos habitantes das regiões

São produzidos os habitantes Dia

1.14-19 Astros....................4°

1,20-23 Peixes, voláteis ___ 5°

1,24-31 Animais terrestres,

----------------homem .......... 6°

IV. Repouso, bênção final

7° dia — 2.1-3

3. Como se vê, foram em parte os pressupostos contin­gentes da cosmologia judaica que levaram o autor sagrado a apresentar a criação dentro do esquema de seis dias de tra­balho e um de repouso. O escritor tinha necessariamente que recorrer a esses pressupostos, porque precisava de mencionar as diversas criaturas visíveis; não intencionava, porém, dar a autoridade de dogmas a tais informações cosmológicas. Sendo assim, está claro que hoje em dia, uma vez ultrapassadas as concepções de ciência dos judeus, ninguém se deve julgar obrigado (melhor ainda: ninguém se pode julgar habilitado) a ensinar em nome da S. Escritura que o mundo foi feito den­tro da moldura de 3 + 3 dias.

Mais dois outros motivos (importantes, na mente do hagiógrafo) devem ter concorrido para a descrição da criação em seis dias de trabalho e um de repouso. Seriam:

a) o simbolismo do número 7, principalmente quando disposto segundo o esquema 6 + 1 (tenha-se em vista o que atrás dissemos neste particular);

b) o intuito de inculcar a lei do repouso semanal. Em toda e qualquer fase da história, é necessário que o homem periodicamente se distancie de seus afazeres terrestres e, de­simpedido, eleve o espírito a Deus; ora o próprio curso da natureza sugere que tal distanciamento se dê de sete em sete dias, pois cada semana representa uma fase nova da Lua, fase que não raro provoca mudança no ritmo da vida terrestre. Consciente, pois, da vantagem de que o povo de Deus obser­vasse o descanso semanal, consagrando-o ao Senhor, Moisés o formulou expressamente entre os preceitos da Lei; mais tarde, visando dar o máximo de autoridade a tal mandamento, um escritor sagrado de Israel, representando talvez a menta­lidade dos levitas e sacerdotes, houve por bem (sob a moção do Espírito Santo) apresentar em Gên l, l-2,4a o próprio Deus à semelhança de Operário Modelo,. . . Operário Modelo que enquadra sua atividade dentro da moldura de seis dias de fadiga seguidos por um sétimo de descanso. Por conseguinte retenha-se que o esquema de seis dias de trabalho e um de repouso, em Gên l, l-2,4a, foi influenciado pela lei do sábado já anteriormente vigente em Israel ; não se julgue que, ao contrário, o mundo foi primeiramente criado em seis dias e que, por causa disto, Moisés instituiu o repouso do sétimo dia.

Estas considerações nos permitem proferir um juízo sobre a tese (dita «concordista») que equipara os seis dias da criação de Gên 1 a seis eras de formação do mundo descritas pelos geólogos. — Os fatores de tal sentença supõem que o escritor sagrado tenha nutrido a mesma intenção que o geólogo: a intenção de ensinar ciências naturais; em conseqüência, julgam-se obrigados a desco­brir nas páginas bíblicas os mesmos ensinamentos (de ordem cien­tífica e profana) que se lêem nos compêndios de ciências naturais. O pressuposto, porém, é falso; por conseguinte, errônea também é a equiparação dos seis dias do «hexaémeron» a seis eras geoló­gicas. Ademais a mencionada sentença não leva em conta a intenção (suficientemente patenteada pelo hagiógrafo) de adaptar a sublime atividade do Criador ao esquema de atividade previamente concebido para o povo escolhido, esquema de seis dias de 24 horas, em que há manhã e tarde...; note-se bem como o hagiógrafo insistentemente repete que cada dia da criação teve sua manhã e sua tarde... A respeito do «concordismo», veja «P. R.» 23/1959, qu. 3.

Recapitulando, verificamos que o esquema de seis dias de trabalho e um de repouso, sem pretender incutir alguma tese de ciências naturais, se explica pelos três seguintes motivos:

1) o autor sagrado, visando ensinar qual o sentido que este mundo tem aos olhos de Deus, teve que se servir da linguagem que os antigos israelitas usavam quando se referiam ao mundo;

b) igual dignidade convém ao varão e à mulher, pois ambos foram feitos à imagem e semelhança de Deus;

c) o matrimônio é algo de santo, instituído e abençoado pelo próprio Deus, não simplesmente para que o homem sa­tisfaça a si, mas a fim de que cumpra um desígnio divino.

Eis as verdades perenes que o texto sagrado, sob vestes literárias anteriores à era cristã, tem a dizer ao homem do século XX! Nessa escola, sem dúvida, muitos estudiosos con­temporâneos terão algo que aprender.

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