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sábado, 22 de maio de 2010

Bíblia: como saber se um Livro é inspirado?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 005/1958)


"Quais os critérios para se discernir se um livro é ins­pirado por Deus ou não?"

1. Diversos têm sido, nos últimos séculos, os critérios propostos para se resolver tal questão. Eis os mais invocados:

a) a índole mesma do livro examinado, ou seja, a sublimidade de sua doutrina, o encanto singular de seu estilo a sua aptidão a suscitar sentimentos piedosos;

b) a experiência do respectivo leitor, o qual durante a lei­tura da Bíblia sentiria alegria e deleite, ou seria movido à compunção ou (como queria principalmente Calvino) perceberia o testemunho interno do Espírito Santo;

c) o fato de ter sido o seu autor Profeta. Apóstolo ou dis­cípulo de Profeta ou Apóstolo.

d) o testemunho de homens eruditos e a constância dos mártires ao confessarem a índole inspirada de determinado livro;

e) o estudo da história do cânon (ou catálogo) bíblico.

Todavia estes critérios são sem exceção, assaz falhos:

a e b) a sublimidade da doutrina e do estilo, assim como as experiências íntimas do leitor, estão sujeitas à apreciação pessoal de cada um, podendo ser diversamente estimadas; além disto, tais características podem convir a qualquer livro reli­gioso (ate mesmo ao Corã maometano, na medida em que este corresponde à índole mística da natureza humana). Consti­tuem, por isto, insuficiente indício de que Deus é o Autor do respectivo texto.

c) Quanto à dignidade de Apóstolo, Profeta ou discí­pulo... ela não se identifica por si com a de escritor inspirado; Deus pode dar a alguém o carisma para pregar sem lhe dar luz especial para escrever ou para se tornar autor de um livro bí­blico. Ademais há partes da S. Escritura das quais não se sabe indicar com segurança o respectivo autor (por exemplo, muitos dos axiomas do livro dos Provérbios se devem a anciãos anôni­mos da corte de Israel; pergunta-se qual o autor da epístola aos Hebreus, de Jo 7,53-8,11, de Mc 14,9-20). Doutro lado, sa­be-se que há genuínos escritos dos Apóstolos que se perderam (por exemplo, as cartas de Paulo mencionadas em 1 Cor 5,9; Col 4,16). Ademais, alguns escritos na antigüidade eram expli­citamente atribuídos a Apóstolos ou discípulos de Apóstolos. sem que fossem tidos como inspirados; tal é o caso da carta dita "de Barnabé". que Tertuliano e S. Jerônimo asseveravam haver sido escrita por Barnabé. "Apóstolo dos gentios" mas não pertencer ao cânon dos livros sagrados (cf. Tertuliano, De pudicitia 20; S. Jerônimo, De viris illustribus 6). — Apesar des­tas considerações, alguns exegetas julgam que todos os Apósto­los e discípulos de Apóstolos gozavam do carisma da inspiração bíblica sempre que escreviam; pode-se aceitar esta senten­ça, contanto que se admita outro critério, mais amplo e seguro, para se afirmar a índole inspirada de determinado livro.

d) Não se poderia dar valor absoluto ao testemunho de ho­mens eruditos e dos mártires. Embora muito valiosas, nada nos garante que tais asserções gozem de autoridade superior à falível autoridade de homens.

e) O estudo da formação do cânon bíblico mostra ao his­toriador o que se deu no decorrer dos séculos, mas não dá a ver com que direito isso se deu. Feita a averiguação do que acon­teceu, seria preciso ainda discutir a autoridade dos diversos ele­mentos que influíram na formação do cânon; em outros termos: seria preciso discutir a autoridade dos bispos, escritores e concílios que, de um modo ou de outro, concorreram para a estipulação do catálogo sagrado. Donde se vê que o simples estu­do da história do cânon não basta; requer-se um critério, dedu­zido de outra fonte, que indique quem tinha e quem não tinha autoridade para falar no assunto. — Em conseqüência, muitos protestantes reconhecem que a história do cânon não fornece solução plenamente segura para o problema (cf. R. Knopf. Einfuchrung in das Neue Testament. Bonn 1919. 142; F. Watsom Inspiration 1906. 178).

Como se entende, vão seria apelar para a Bíblia mesma em vista de uma solução pois nela não se encontra o catálogo dos livros inspirados.

2. Vista a precariedade dos diversos critérios acima assi­nalados, verifica-se que não há outro capaz de resolver a ques­tão senão o testemunho da tradição oral, que sempre acompa­nhou os livros sagrados. Esta constitui a atmosfera dentro da qual os hagiógrafos viveram e da qual quiseram consignar uma ou algumas facetas apenas, nos escritos bíblicos. A tradição oral, sendo anterior à Bíblia, é o único critério para se elucida­rem questões atinentes à Bíblia, a começar pela questão capi­tal: "Quem me garante o que pressuponho no estudo da Escri­tura, isto é, que tais, e somente tais, livros têm autoridade di­vina?" Naturalmente não qualquer voz da tradição merecerá crédito, mas, sim, aquele testemunho constante e unânime que, tendo atravessado ininterruptamente os séculos, hoje se reflete no magistério da Igreja. Será preciso, portanto, reconhecer o seguinte: desde os primórdios do Cristianismo, o Espírito Santo foi assistindo aos Apóstolos e aos seus sucessores, os bispos, a fim de que distinguissem livros inspirados e não-inspirados; as dúvidas que surgiram nos quatro primeiros séculos a respeito de um ou outro escrito foram finalmente resolvidas de modo au­têntico pelos concílios que desde 393 (concilio de Hipona) de­finiram o cânon bíblico tal como ele ainda hoje é reconhecido na Igreja Católica (os concílios reunidos em Cartago nos anos de 397 e 419 repetiram tal catálogo; o mesmo foi feito pelo Papa Inocêncio I, que em 405 mandou a Exupério, bispo de Tolosa. o elenco dos livros sagrados; o Concilio de Florença em 1441 o reafirmou, assim como os concílios de Trento. em 1546 e do Vaticano em 1870).

Observe-se, de resto, que a própria Escritura apela para a tradição oral como para o tesouro onde se deve procurar a so­lução dos pontos obscuros que a Bíblia mesma não resolve. Assim, por exemplo. Paulo admoesta Timóteo a ler as Sagradas Escrituras, cujo sentido o Apóstolo lhe elucidou por via oral; com outras palavras: recomenda a leitura das Escrituras à luz daquela tradição oral que Timóteo por sua vez deverá trans­mitir a seus discípulos:

"Tu permanece naquilo que aprendeste e de que foste inteirado, sabendo de quem o tens aprendido e que desde a tua meninice sabes as sagradas letras, que podem fazer-te sábio para a tua salvação...

E, o que de mim entre muitas testemunhas ouviste, confia-o a homens fiéis, que sejam idôneos para também ensinarem os outros" (2 Tim 3.14s; 2.2; trad. de Ferreira de Almeida».

São Pedro, por sua vez. acautela os cristãos contra qual­quer interpretação subjetiva da Escritura, recomendando de novo fidelidade ao ensinamento comum oral que sempre acom­panha e ilumina a Bíblia:

“...sabendo primeiramente isto: que nenhuma profecia da Es­critura é de particular interpretação... E tende por salvação a longanimidade de Nosso Senhor, como também o nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada; falando disto, como em todas as suas epístolas, entre as quais há pontos di­fíceis de entender, que os indoutos e inconstantes torcem, e igual­mente as outras Escrituras, para sua própria perdição" (2 Pdr 1,20; 3.15s)

Em seu bom senso, o eunuco da rainha dos etíopes julgou que era incapaz de interpretar por si. sem magistério oral, o texto da Escritura: "Como poderei entender se alguém me não ensinar?" (At 8.30).

3. Tão íntimo é o nexo vigente entre a Bíblia e a tradi­ção oral que quem nega o valor desta se priva da única fonte donde se pode depreender com certeza a índole e a autoridade dos livros sagrados. Negada a tradição oral, a autoridade da Sagrada Escritura é fundada sobre o sentimento ou os conceitos subjetivos do leitor, e cedo ou tarde vem a ser minada ou mes­mo removida; os mais adiantados mestres modernos do Protestantismo já chegaram a considerar as Escrituras como simples testemunho da consciência religiosa dos antigos cristãos, teste­munho que não difere essencialmente do dos demais livros da cristandadc primitiva. Ou o cristão guarda a Bíblia e a Tradi­ção oral inteira ou acaba nada mais guardando do depósito re­velado.

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