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sábado, 14 de abril de 2007

Evangelhos: e a credibilidade dos evangelhos?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 318/1988)


Em síntese: Os mais recentes estudos sobre a origem dos Evangelhos permitem dizer que o texto escrito de Mateus, Marcos, Lucas e João remon­ta até Jesus, sua fonte,... mediante três etapas. Com efeito; a mensagem pas­sou do Senhor aos Apóstolos; estes a transmitira às antigas comunidades cristãs por eles fundadas (Tessalônica, Corinto, Filipos, Roma...) e, final­mente, estas (ou a Igreja) a entregaram aos Evangelistas. O

texto sagrado da­ta da segunda metade do século I, mas sem hiato entre Jesus e Mateus, Mar­cos, Lucas e João; ao contrário, a pregação oral da Boa-Nova começou com Jesus, continuou com os Apóstolos e discípulos até chegar aos Evangelis­tas. Essa tramitação permitiu um desdobramento homogêneo da mensagem apregoada por Jesus sob forma seminal; o Espírito prometido pelo Senhor (cf. Jo 14,26; 16,12s) assegurou a fidelidade do desenvolvimento da Boa-­Nova. Além disto, verifica-se que os Apóstolos eram ciosos de guardar a ver­dade dos fatos ocorridos com Jesus, distinguindo nitidamente entre mythos (mito, fábula) e logos (palavra da verdade ou da fé). As tentativas de detur­par o Evangelho ou "inventar" mensagens ocorreram, sem dúvida, como é compreensível, mas foram relegadas para a literatura apócrifa, cujo estilo é evidentemente fantasioso e diverso do estilo sóbrio dos Evangelhos canôni­cos. Os Apóstolos, longe de criar suas proposições de fé, não queriam ser senão testemunhas, como provam numerosas citações do corpo deste artigo.

São estas algumas ponderações que podem ser feitas frente a artigos da imprensa profana que negam a veracidade dos Evangelhos.

***

Os debates sobre o filme "A Última Tentação de Cristo" levantaram a questão da credibilidade dos Evangelhos... Em mais de um órgão da impren­sa foi divulgada a tese de que não são narrações históricas, mas, antes, a expressão da criatividade das primeiras gerações cristãs, que imaginaram o Jesus descrito por Mateus, Marcos, Lucas e João. Ora, a bem da verdade, tais afirmações sugerem um atento exame da questão. Consideraremos os dados do problema, e lhes acrescentaremos as ponderações da crítica objetiva e fundamentada.

1. O problema

Eis, por exemplo, o que se lê sob a pena de Richard Outling na pági­na 80 de Manchete n° 899,10/09188:

“Do ponto de vista de muitos acadêmicos, os autores anônimos dos quatro Evangelhos (mais tarde, convencionalmente chamados de Mateus, Marcos, Lucas e João) trabalhavam com material de segunda e terceira mãos, transmitido verbalmente durante algumas décadas antes de ser registrado por escrito.

Conseqüentemente, os Evangelhos não podem ser aceitos como ver­dade pura; isto é, não podem, em todos os casos, ser considerados como a descrição de acontecimentos indiscutíveis '0 Novo Testamento é o teste­munho de homens crentes’, disse o teólogo católico liberal Edward Schille­beeckx, da Holanda, '0 que dizem não é a história, mas expressões de sua fé em Jesus como Cristo'.

A tentativa dos estudiosos modernos de descobrir o Nazareno real e histórico dos relatos supostamente enfeitados da Bíblia - um processo co­nhecido como o método histórico-critico ou 'alta crítica'- produziu alguns resultados não ortodoxos. Alguns exemplos:

- Jesus não afirmou ser o Messias. Essas declarações representam a crença posterior da Igreja, que os autores dos Evangelhos inseriram mais tar­de na vida de Cristo.

- Quando Jesus disse que era 'filho de Deus’, não quis ser entendido ao pé da letra. A linguagem dessa natureza no Novo Testamento - referir-se a Jesus como o 'Cordeiro' ou o 'Verbo' de Deus - é metafórica”

No "Jornal do Brasil", caderno B, p. 2, de 8/8/88, lê-se o comentário de John Dart:

“Quando um trabalho de ficção se afasta dos relatos dos Evangelhos, muitos cristãos alegam que desviar-se do 'registro histórico' sobre a vida de Cristo é uma ofensa e, pior, uma blasfêmia. Mas o fato é que o consenso en­tre os especialistas - aqueles que aplicam os métodos críticos e históricos contemporâneos ao estudo do Bíblia - é de que os textos de Marcos, Ma­teus, Lucas e João não são registros históricos na acepção moderna da pala­vra, muito menos testemunhos oculares. Os Evangelhos, segundo eles, são o produto de mentes criativas no terço final do século I - bem depois da mor­te de Jesus por volta do ano 30...

Elaborações criativas sobre a história bíblica de Jesus fazem parte, há muito tempo, da tradição cultural do Ocidente. As Igrejas dos primeiros tempos da era cristã produziram muitos textos apócrifos como o Evangelho da Infância de Tomé, que conta os milagres feitos pelo Menino Jesus. Espe­cular sobre os laços afetivos entre Cristo e Maria Madalena não é exclusividade A última Tentação. O Evangelho de Maria, um texto agnóstico cristão do século II, e o Evangelho de Felipe, de origem semelhante, possivelmente do século III, estão cheios de especulações a respeito".

Um leitor não iniciado em tais assuntos poderá, na verdade, julgar que se acha diante de conclusões seguras e bem arquitetadas da pesquisa bíblica, sem desconfiar de leviandade ou superficialidade do noticiário. Eis por que passamos a expor o que a crítica séria e fidedigna hoje em dia propõe sobre a origem dos Evangelhos.

2. Origem e historicidade dos Evangelhos

Os estudos modernos recorrem ao chamado Método da História das Formas, citado pela imprensa como "método histórico crítico" ou "alta crí­tica" (ver. p. 490 deste fascículo). Em que consiste?

2.1. O Método da História das Formas

Jesus nada deixou escrito nem mandou que seus Apóstolos escreves­sem, visto que a escrita era difícil e rara na antigüidade. Por isto o Evangelho foi sendo pregado de viva voz na Palestina e fora desta. Aos poucos, porém, para facilitar o uso da memória, os pregadores foram redigindo seções avul­sas (uma série de parábolas que ilustrassem o Reino de Deus, a misericórdia do Pai, . . . uma série de milagres de Jesus, ou de altercações com os fari­seus...). Essas pequenas unidades (folhas volantes) foram sendo coleciona­das, de modo a dar uma síntese dos ensinamentos e dos principais feitos de Jesus. Quatro dessas sínteses foram reconhecidas pela Igreja como canônicas ou autêntica Palavra de Deus; tais são os Evangelhos segundo Mateus, Mar­cos, Lucas e João.

A compilação e a redação finais devem ter ocorrido entre os anos de 60 e 100. Todavia é de notar que foram feitas em continuidade com a pre­gação anterior, que procedia do próprio Jesus; não houve hiato entre Jesus e os evangelistas ou entre o ano 30 (Ascensão do Senhor) e as últimas déca­das do século I: a palavra do Senhor foi sendo transmitida ininterruptamen­te. Ora o Método da História das Formas estuda esse intervalo entre Jesus e os Evangelistas (ou estuda a pré-história do texto escrito definitivo), pro­curando reconstituir o ambiente e os fatores que podem ter influído na re­dação oral e escrita da pregação dos Apóstolos.

A Igreja Católica reconheceu a validade desse estudo mediante a Ins­trução Sancta Mater Ecclesia da Pontifícia Comissão Bíblica, de 21/04/1964. Tal documento apresenta três fases na confecção do texto escrito do Evan­gelho:

1) A pregação de Jesus aos Apóstolos. Jesus, portanto, está na ori­gem do texto que hoje circula (e não apenas a fé dos cristãos do fim do sé­culo I, como disse Edward Schillebeeckx). A palavra do Senhor foi entendi­da com dificuldade pelos Apóstolos antes da Páscoa (pois ainda estavam impregnados de conceitos nacionalistas (cf. Mc 4,13; 6,51s; 8,16-20; 9,10...). - Todavia depois da Páscoa e Pentecostes os Apóstolos compreenderam o sentido dos dizeres e feitos do Mestre; entenderam que o Jesus, companhei­ro de viagens pelas estradas da Palestina, é o Kyrios, o Senhor Ressuscitado, o Messias ou o Cristo (ver Jo 2,22; 12,16...); aliás, o próprio Senhor lhes havia prometido que o Espírito Santo lhes recordaria tudo o que Ele lhes dissera e os levaria à plenitude da verdade (cf. Jo 14,26; 16,12-14; 7,37-39).

Assim a imagem de Jesus cresceu na mente dos Apóstolos; foi apro­fundada e meditada homogeneamente sob a guia do Espírito Santo. O "Je­sus da história" tornou-se o "Jesus da fé"; é o mesmo Jesus, outrora perce­bido com hesitações e mal-entendidos, mas finalmente penetrado autenti­camente pela fé e pela experiência dos seus primeiros seguidores.

Ainda se têm nos Evangelhos vestígios ou ecos diretos da pregação de Cristo ou ipsissima verba Christi (as mesmíssimas palavras de Cristo); vejam-se por exemplo,

- a secção de Mt 16,16-19, em que se encontram numerosos aramaís­mos, inclusive o trocadilho "Pedro-Pedra", que só poderia ocorrer em ara­maico com a palavra Kepha, e não em grego (Petros-Petra);

- as disputas de Jesus com os fariseus a respeito de textos bíblicos utilizados segundo o método (pesher) dos rabinos antigos: Mt 22,34-40. 41-46; Lc 11,29-32;

- as disputas com os saduceus, que também versavam sobre textos bíblicos interpretados segundo as escolas dos mestres de Israel: Mt 22,23-33...

2) Dos Apóstolos às primeiras comunidades cristãs. Tendo recebido a ordem de pregar ao mundo inteiro (cf. Mt 28,18-20), os Apóstolos disse­minaram a Boa-Nova.

O primeiro tema da pregação dos Apóstolos devia ser a Páscoa, ou se­ja, a Paixão, a Morte e o triunfo final do Senhor Jesus. Quem aceitasse esse primeiro anúncio (querigma), era levado à catequese ou ao estudo da doutri­na e dos feitos de Jesus que durante a vida pública haviam provocado a condenação do Senhor. A pregação dos Apóstolos podia limitar-se a esses dois momentos; compreendia as ocorrências entre o Batismo e a Ascensão do Senhor, sem retroceder até a infância e a vida de Jesus na casa de Na­zaré; cf. At 1,21.[1] Foi precisamente o que fez São Marcos no seu Evangelho; São Mateus e São Lucas acrescentaram episódios avulsos da infância de Je­sus (cf. Mt 1-2; Lc 1-2) sem ter a intenção de fazer uma biografia ou uma narrativa completa da vida do Senhor.[2]

Ao transmitir a Boa-Nova, os Apóstolos e discípulos tinham sempre em vista as circunstâncias e particularidades características dos seus ouvin­tes.[3] Procuravam dar à Palavra de Deus o Sitz im Leben, o lugar, a resso­nância na vida dos ouvintes. Assim foram redigindo formas literárias adap­tadas à finalidade da pregação:

- a forma da catequese sistemática (Mt 5-7; Lc 15...);

- a forma do sermão litúrgico (cf. as narrativas da Paixão e Ressur­reição em Mt 26-28; Mc 14-16; Lc 22-24; Jo 13-20);

- a forma de hinos (cf. FI 2,5-11; CI 1,15-20; Ef 1,3-14; 2Tm 2,11-13), doxologias (Rm 16,25s; Jd 24s);

- a forma de apologia: havia textos do Antigo Testamento devida­mente selecionados para provar a messianidade de Jesus; Is 7,14 (cf. Mt 1,23); Mq 5,1 (cf. Mt 2,6); Os 11,1 (cf. Mt 2,15); Jr 31,15 (cf. Mt 2,18); Is 40,3 e MI 3,1 (cf. Mc 1,2s); Is 8,23-9,1 (cf. Mt 4,15s)...;

- a forma de controvérsia destinada a responder às objeções levanta­das pelos ouvintes; os Apóstolos tiravam do repertório das respostas de Je­sus as palavras adequadas às necessidades dos seus interlocutores: assim de­via haver dúvidas a respeito do sábado (Mc 2,23-3,6), de casamento e divór­cio (Mt 5,31s; 19,3-12), do jejum (Mc 2,18-22; Mt 6,16-18), da volta do Se­nhor (Mt 24,36; 24,42-25,13; Mc 13,32)...

Assim se foi desenvolvendo homogeneamente a mensagem deixada por Jesus sob forma seminal. Todo este trabalho foi assistido pelo Espírito Santo para que não houvesse desvio nem perversão, como o próprio Senhor o predisse; cf. Jo 14, 26; 16,12s. Esta afirmação é essencial para o cristão; não somente a fé a sugere, mas também argumentos de ordem racional, que adiante serão apresentados. 0 cristão crê que o texto escrito dos Evangelhos, embora tenha passado pelas fases preliminares que uma mensagem possa atravessar, é o eco fiel da doutrina de Jesus, desdobrada organicamente pe­los Apóstolos e discípulos a fim de a encarnar nas diversas comunidades por eles fundadas.

3) Das primeiras comunidades aos Evangelistas. Aos poucos foi to­mando vulto nas comunidades cristãs o desejo de possuir por escrito o en­sinamento de Jesus. Devem ter sido redigidos então pequenos blocos lite­rários avulsos portadores ou de parábolas ou de milagres ou de altercações ou de traços biográficos de Jesus.

Essas peças independentes foram sendo aos poucos agrupadas a fim de se ter o ensinamento completo de Jesus. Dos muitos ensaios resultantes dessa tarefa (cf. Lc 1,1), quatro foram reconhecidos pela Igreja como au­têntica Palavra de Deus ou como canônicos: os de Mateus, Marcos, Lucas e João.

O agrupamento foi colocado dentro do quadro da vida terrestre de Jesus. Os mensageiros da Boa-Nova conceberam um esquema simples da vida pública do Senhor, composto de quatro partes:

1) preparação do ministério de Jesus (João Batista, Batismo do Se­nhor, tentações...);

2) a pregação na Galiléia, com centro em Cafarnaum, à margem do lago de Genesaré;

Mt grego 80

João grego, 100

3) a subida a Jerusalém;

4) os acontecimentos da última semana na Cidade Santa e a glorifica­ção do Senhor Jesus.

Dentro deste esquema biográfico foram sendo enquadrados os blocos que a pregação anterior transmitia independentemente uns dos outros.

Está claro que cada Evangelista, tendo recebido da Igreja a mensagem de Jesus formulada pelos Apóstolos, lhe deu o seu cunho próprio, enfati­zando mais este ou aquele aspecto da Boa-Nova e da figura do Senhor (Ma­teus; por exemplo, é o Evangelista dos judeo-cristãos, Lucas o dos pagãos convertidos ao Cristianismo).

A cronologia da origem dos Evangelhos pode ser assim concebida:

Mt aramaico50 Tradição joanéia

Mcgrego 65/70


Lcgrego 75

Mt grego80

João grego 100

As datas acima são aproximadas, mas muito prováveis. A primeira re­dação do Evangelho deu-se por obra de Mateus na terra de Israel e, por isto, em aramaico. Esta redação serviu de modelo para Marcos e Lucas, que utili­zaram o esquema de Mateus, acrescentando-lhe características pessoais. O texto de Mateus foi traduzido para o grego, visto que o aramaico entrou em desuso quando Jerusalém caiu em poder dos romanos no ano de 70; o tra­dutor, desconhecido a nós, retocou e ampliou o texto aramaico, servindo-se de Mc. Isto quer dizer que o texto grego de Mateus (único existente, porque o aramaico se perdeu) é, segundo alguns aspectos, o mais arcaico e, segundo outros aspectos, o mais recente dentre os sinóticos.

Pergunta-se agora:

2.2. Pode-se crer nos Evangelhos?

Há quem julgue que a mensagem de Jesus, tendo passado por várias instâncias intermediárias, foi sendo aos poucos desfigurada, de modo que o texto escrito já não refere a verdade histórica. - Em resposta observaremos o seguinte:

2.2.1. Testemunhas

Os Apóstolos eram muito ciosos da fidelidade a Jesus e à realidade his­tórica. Tinham consciência de que a Revelação de Deus aos homens passou pela trama da história do Antigo Testamento e da vida de Jesus; os aconte­cimentos da história da salvação são portadores de mensagem; ligam-se a ver­dades, como também as verdades da Revelação se prendem a fatos históri­cos. São Paulo chega ao ponto de dizer: "Se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação, vazia também é a vossa fé... Se Cristo não ressuscitou, ilusória é a vossa fé" (1Cor 15,14.17). Isto quer dizer que toda a sublimi­dade da sabedoria cristã se retira de campo ou renuncia a se apresentar se não está ligada ao fato concreto histórico da Ressurreição corporal de Jesus. Por conseguinte, em perspectiva cristã não se pode, sem mais, negar a histó­ria bíblica e, apesar disto, afirmar a doutrina religiosa do Cristianismo. Isto se evidencia, entre outras coisas, pelo fato de que os Apóstolos não queriam ser senão testemunhas. . . Com efeito; os conceitos de "testemunho", "tes­temunha" e "testemunhar" ocorrem mais de 150 vezes nos escritos do Novo Testamento. Ora "testemunha" é a pessoa que está habilitada a fazer afirma­ções verídicas, pois tem o conhecimento de causa mais seguro, que é a pró­pria experiência pessoal.

É interessante notar a insistência com que os Apóstolos se apresentam como testemunhas de Jesus; afirmam não transmitir senão o que viram e ou­viram. Parece, de certo, que a regra de "testemunhar apenas", sem nada acrescentar de falso, marcava profundamente a vida e a profissão de fé das antigas comunidades cristãs. Tenham-se em vista as seguintes passagens:

Quando entre a Ascensão e Pentecostes os Apóstolos trataram de subs­tituir Judas, o traidor, estipularam, como qualidade própria do novo Após­tolo, a de testemunha, e... testemunha principalmente da ressurreição do Se­nhor. Tais foram então as palavras de São Pedro:

"Convém que, dentre esses homens que têm estado em nossa compa­nhia todo o tempo em que o Senhor Jesus viveu entre nós, a começar do batismo de João até o dia em que de nosso meio foi arrebatado, um deles seja incluído em nosso número, como testemunha da sua ressurreição" (At 1,21s).

No dia de Pentecostes, afirmava São Pedro: "A esse Jesus, Deus

res­suscitou. Disto todos nós somos testemunhas" (At 2,32).

No seu segundo sermão, voltava a dizer São Pedro: "Matastes o prín­cipe da vida, mas Deus o ressuscitou dos mortos. Disto nós somos testemu­nhas" (At 3,15).

Diante do sinédrio, Pedro e os Apóstolos responderam:

"Foi Deus quem, com a sua destra, elevou (a Jesus) como Príncipe e Salvador para dar a Israel o arrependimento e a remissão dos pecados. E nós somos testemunhas dessas coisas, nós e o Espírito Santo, que Deus deu a todos os que lhe obedecem" (At 5,3ls).

Em casa de Cornélio, dizia S. Pedro: "E nós somos testemunhas de tudo que (Jesus) fez no país dos judeus e em Jerusalém. Eles O mataram, suspendendo-O a um madeiro. Deus, porém, O ressuscitou ao terceiro dia, e permitiu-Lhe aparecer de modo visível, não a todo o povo, mas às teste­munhas antes escolhidas por Deus: a nós, que comemos e bebemos com Ele, depois que ressuscitou dos mortos" (At 10,39-41).

Palavras de São Paulo: ":.. Mas Deus O (Jesus) ressuscitou dos mortos. Por muitos dias apareceu àqueles que com Ele tinham subido da Galiléia para Jerusalém e que são agora suas testemunhas perante o povo" (At 13, 30s).

São Paulo, ao contar sua conversão, refere a seguinte ordem de Deus:

"Levanta-te e põe-te em pé, pois eu te apareci para te constituir mi­nistro e testemunha das coisas que viste, e de outras para as quais hei de me manifestar a ti" (At 26,16).

São Paulo fazia questão de lembrar aos coríntios as principais teste­munhas da ressurreição:

"Cristo morreu por nossos pecados, conforme as Escrituras; foi se­pultado e ressuscitou ao terceiro dia, conforme as mesmas Escrituras; apa­receu a Cefas e depois aos doze. Posteriormente, apareceu, de uma vez, a mais de quinhentos irmãos, dos quais a maior parte vive até hoje, tendo al­guns falecido. Depois apareceu a Tiago e, em seguida, a todos os apóstolos. Por fim, depois de todos, apareceu também a mim, como a um abortivo" (1 Cor 15,3-8).

Por fim, São Pedro escrevia aos fiéis da Ásia Menor:

"Eu, presbítero... e testemunha dos sofrimentos de Cristo..." (1Pd 5,1).

Aliás, ao acentuar o seu papel de testemunhas, os Apóstolos não fa­ziam senão cumprir os dizeres do Mestre: "Sereis minhas testemunhas" (At 1,8; cf. Lc 24,48).

Intencionando, pois, passar por testemunhas, os Apóstolos terão to­mado o devido cuidado para ser fiéis à mensagem de Cristo.

2.2.2 Os mitos e o Evangelho

Não há dúvida, na Igreja nascente houve tentativas de deteriorar a mensagem evangélica. São Paulo se refere a fábulas, erros gnósticos, dualis­tas, docetistas..., que ele compreendia sob a palavra grega mythoi, mitos, e cuidou zelosamente de que tais mitos não se mesclassem com a autêntica doutrina do Cristianismo, chamada logos.

Observemos como os Apóstolos tinham consciência de que os mitos não fazem parte da mensagem evangélica e, por isto, devem ser banidos da pregação:

1 Tm 1,3s: Ao partir para a Macedônia, pedi-te (ó Timóteo) que per­manecesses em Éfeso a fim de admoestares certas pessoas a não ensinarem doutrina diferente nem se apegarem a fábulas (mythois) e genealogias inter­mináveis'

São Paulo tinha em vista lendas inventadas no século I d.C. para escla­recer fatos do Antigo Testamento; visava também a pesquisas que correspon­diam ao gosto dos doutores judaicos e dos homens ecléticos da época.

Mais adiante volta o Apóstolo a exortar:

"Rejeita as fábulas (mythous) profanas, verdadeiros contos de velhas. Exercita-te na piedade" (1 Tm 4,7).

Na segunda carta a Timóteo lê-se ainda:

"Os homens afastarão os ouvidos da verdade e os aplicarão às fábulas (mythous)" (2Tm 4,4).

Mais:

Tt 1,13s: 'Sede sãos na fé e não deis ouvidos a fábulas (mythois) ju­daicas ou mandamentos de homens desviados da verdade':

2Pd 1,16: 'Não foi seguindo fábulas (mythois) sutis, mas por termos sido testemunhas oculares da sua majestade que vos demos a conhecer o po­der e a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo'

Do mythos se distingue o logos, a palavra, que São Paulo muito reco­menda:

Rm 10,8: 'Ao teu alcance está a palavra da que nós pregamos':

1Ts 2,13: 'Sem cessar agradecemos a Deus por terdes acolhido a sua Palavra, que vos pregamos não como palavra humana, mas como na verdade é, a Palavra de Deus, que está produzindo efeito em vós':

2Tm 2,9: 'Pelo Evangelho sofro até as cadeias... Mas a Palavra de Deus não está algemada'.

2Tm 2,15: 'Procura apresentar-te... como um trabalhador... que dis­pensa com retidão a palavra da verdade’.

Ver ainda Tt 2,5, Tg 1,22s; 1Jo 1,1; At 13,26.

Donde se vê que não se deve admitir tenha sido a mensagem cristã pe­netrada por mitos e confundida com estes, como se os primeiros pregadores da mesma fossem simplórios e destituídos de discernimento.

De resto, os mitos todos têm estilo vago, do ponto de vista da cronolo­gia e da topografia; não podem propor quadro histórico e geográfico preciso; é o que os isenta de controle. Ora dá-se o contrário nos Evangelhos: a topo­grafia da Palestina é por estes minuciosamente mencionada; também a cro­nologia respectiva é relacionada com a cronologia profana, como se depre­ende de Lc 2,1 (referência a César Augusto) e Lc 3,1s (referência a Tibério César, Pôncio Pilatos, Herodes, Filipe, Lisânias...).

Mais ainda: nenhum criador de mitos teria inventado o "mito" do Evangelho, cujos traços são desafiadores e exigentes para a mente humana: a mensagem de Deus feito homem e, mais, ... crucificado era escândalo para os judeus e loucura para os gregos (1Cor 1,23). A promessa de ressur­reição ou de reunião da alma com o corpo era contrária ao pensamento gre­go; a Moral cristã, que valorizava a mulher, a criança mesmo indesejada, a família, o trabalho manual, o escravo (cf. a epístola a Filemon...), a estrita monogamia sem divórcio..., só podia encontrar oposição da parte da Filoso­fia greco-romana. Nada disso tinha condições de partir da mente dos homens do século I da nossa era.

2.2.3. Os apócrifos

Era natural que a fantasia humana elaborasse lendas e estórias a respei­to de Jesus, visando a completar, de algum modo, o logos ou a Palavra da pregação dos Apóstolos. Acontece, porém, que a Igreja, sabiamente guiada pelo Espírito Santo, soube discernir da história real essas ficções, relegan­do-as para a literatura apócrifa. Esta é caracterizada por estilo evidentemen­te imaginoso e fictício, bem diferente do dos Evangelhos canônicos, como se pode perceber através de simples amostragem:

"O menino Jesus tinha cinco anos quando um dia se encontrava a brincar sobre a passarela de um riacho depois da chuva. Recolhendo a água em pequenas vasilhas, tornava-a cristalina no mesmo instante e a dominava apenas com a sua palavra.

Depois fez uma massa de barro e com ela plasmou doze passarinhos. Era então sábado e havia outros meninos a brincar com Jesus.

Certo judeu, vendo o que Jesus acabara de fazer em dia de festa, foi ter correndo com seu pai José e lhe contou tudo: 'Olha, teu filho está no riacho e, tomando um pouco de barro, fez doze pássaros, profanando assim o sábado

José foi ter com Jesus e, ao vê-lo, censurou-o dizendo: Por que fazes no sábado o que não é lícito fazer?' Jesus então bateu palmas e se dirigiu aos passarinhos de barro, dizendo-lhes: Ide-vos!' E os passarinhos todos se puseram a voar e cantar.

Ao ver isto, os judeus se encheram de admiração e foram contar a seus chefes o que tinham visto Jesus fazer" (Evangelho do Pseudo-Tomé //).

'Aconteceu que um jovem, ao cortar lenha, deixou cair o machado, que lhe cortou a planta do pé. O infeliz ia morrendo aos poucos por causa da hemorragia. Houve então grande alvoroço e tumulto de muita gente. Je­sus também se fez presente; depois de abrir passagem, pela força, entre a multidão, chegou perto do rapaz ferido, e com sua mão apertou o pé dani­ficado do jovem, e este imediatamente ficou curado. Disse então Jesus ao moço: 'Levanta-te já; continua a cortar lenha e lembra-te de mim'. A multi­dão, ao ver o ocorrido, adorou o menino, exclamando: 'Realmente neste menino habita o Espírito de Deus!' " (ib. n. X).

"Quando Jesus tinha seis anos, sua mãe deu-lhe um jarro para que o fosse encher de água e o levasse para casa. Mas Jesus tropeçou no caminho e o cântaro se quebrou. Então ele estendeu o manto que o cobria, encheu-o de água e levou-o a sua mãe. Esta, ao ver tal maravilha, pôs-se a beijar Jesus. E conservava em seu coração todos os mistérios que ela o via realizar" (ib. n. XI).

Ao contrário do que se dá nos apócrifos, quem lê os Evangelhos ca­nônicos, observa aí notável sobriedade de estilo, sintoma de que os Evange­listas tinham consciência de que a sua mensagem narrada com simplicidade tinha em seu favor o fascínio e poder da verdade e, por isto, não precisava de ser "embelezada" artificialmente para encontrar a aceitação do público.

Pode-se, pois, concluir que a mensagem do Evangelho é de origem transcendente e não terá sido produto do ficcionismo de judeus ou de pagãos da antigüidade. - É isto que mais uma vez nos compete afirmar diante das notícias sensacionalistas de certa imprensa.

A propósito:

GUITTONJEAN, Jesus. Ed. Itatiaia, Belo Horizonte.

LAMBIASI, F., Autenticidade histórica dos Evangelhos. Ed. Paulinas.

MESSORI, VITTORIO, Hipóteses sobre Jesus. Ed. Paulinas.

TERRA, JOÃO EVANGELISTA MARTINS, Jesus. Ed. Loyola.

PR 219/1978, pp. 95-108 (panorama da moderna crítica dos Evan­gelhos).

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NOTAS:

[1] Foi São Pedro mesmo quem fixou os termos da pregação dos Apóstolos: ia desde o Batismo ministrado por João até a Ascensão do Senhor, sendo que a ressurreição era o primeiro e mais importante. Tenhamos em vista as pala­vras de Pedro antes da escolha de Matias: "E necessário que, dentre os ho­mens que nos acompanharam todo o tempo em que o Senhor Jesus viveu em nosso meio, a começar do Batismo de João até o dia em que dentre nós foi arrebatado, um destes se tome conosco testemunha da sua ressurreição" (At 1,21s).

[2] É isto que explica a lacuna existente, nos Evangelhos, entre os 12 e os 27/30 anos de Jesus. - Há quem diga que ela se deve a uma hipotética via­gem do Senhor pelo Oriente remoto, de modo que os evangelistas nada sa­biam a respeito de Jesus nesse período. Tal hipótese é falsa, pois os

Evan­gelistas sabiam que Jesus fora carpinteiro (cf. Mc 6,3, Mt 13,55). Nada ou quase nada escreveram a respeito de tal período, porque este escapava ao âmbito da pregação que os Apóstolos tinham em vista. Cf. PR 206/1977, pp. 61-76.

[3] Comparem-se entre si A t 13,16-41 e A t 17,22-31. No primeiro caso, São Paulo em Antioquia da Pisídia prega a judeus recorrendo aos textos e feitos do Antigo Testamento, familiar aos ouvintes. No segundo caso, o Apóstolo em Atenas prega aos filósofos pagãos gregos utilizando não o Livro Sagrado, mas argumentos filosóficos e testemunhos da tradição do povo ateniense.

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