Em síntese: Santa Joana d'Arc, jovem francesa, sentiu-se chamada pelo Céu para defender a França, que se achava em guerra contra a Inglaterra. Após brilhante vitória, que ela obteve chefiando um batalhão, foi presa pelos ingleses, que a levaram ao tribunal da Inquisição, acusando-a de bruxaria - o que naquela época (século XV) era muito grave.
Os ingleses obtiveram a condenação de Joana sob o pretexto de mau comportamento da jovem. Faleceu em 1431. Todavia pouco após a sua morte começou a ser reabilitada mediante dois processos que investigaram os trâmites tendenciosos da condenação: em
***
A figura de Joana d'Arc tornou-se famosa tanto na história da Igreja como na história universal, por ter sido condenada à morte numa estratégia, só explicável pelas circunstâncias do século XV, e por ter sido prontamente reconhecida como inocente tanto pelo poder civil como pela autoridade eclesiástica. A fé e a entrega a Deus consagraram a pessoa da heroína, que foi canonizada ou incluída no cânon (catálogo) dos Santos em 1920.
As páginas subseqüentes proporão o relato do caso.
1. OS PRECEDENTES
O cenário histórico em que aparece Joana d'Arc, é o da guerra dita "dos Cem Anos" (1337-1453) entre a França e a Inglaterra.
Em 1415 Henrique V da Inglaterra invadiu a França com o intuito de derrubar o rei Carlos VI. Os invasores encontraram apoio da parte da Borgonha, cujo duque Filipe o Bom reconheceu Henrique V da Inglaterra como legítimo soberano da França; ao mesmo tempo, Carlos VI, cuja saúde mental estava abalada, deserdou seu filho e nomeou o monarca inglês herdeiro e regente do país. Em 1422, morreram Henrique V e Carlos VI. O filho deste, Carlos VII, fez-se coroar em Poitiers, e estabeleceu sua corte em Bourges, enquanto os ingleses caminhavam em território francês e assediavam a cidade de Orleães. Carlos VII era figura fraca, que nada fazia para deter os invasores, mas, ao contrário, permitia que homens ineptos e gozadores dirigissem o seu povo.
Foi então que entrou em ação uma jovem de 17 anos, que prometia salvar a França.
2. INTERVENÇAO DE JOANA
Joana nasceu em Domrémy, de família camponesa, aos 6 de janeiro de 1412. Não aprendeu a ler e escrever, mas possuía profundo senso religioso. Aos 13 anos de idade, começou a ouvir certas vozes, que ela identificou com as de S. Miguel Arcanjo, S. Catarina de Alexandria e S. Margarida; exortavam-na a ir socorrer a França.
A este propósito já se põe uma questão debatida: as revelações que Joana anunciava e que se repetiram até a sua morte, não terão sido mero fenômeno de alucinação? - Note-se que a alucinação significa um estado patológico, fonte de falsos juízos e de comportamento moral descontrolado. Ora em toda a conduta de Joana d'Arc não há vestígios de prostração física nem de aberração intelectual ou de incoerência de dizeres e atitudes; ao contrário, clarividência e firmeza notáveis se manifestaram. Torna-se, por conseguinte, difícil, se não ilógico, sustentar a tese das "alucinações".
Somente três anos mais tarde, em
A situação para a França era tão grave que somente uma intervenção do Céu poderia salvar a nação. O rei concedeu-lhe então um pequeno batalhão destinado a ir socorrer a sitiada cidade de Orleães, que estava para cair. Joana não combateria, mas estimularia os guerreiros, empunhando um estandarte branco, sobre o qual estava a figura de Cristo entre dois anjos. Finalmente, aos 8 de maio de 1429 os ingleses muito imprevistamente levantaram o cerco de Orleães, dando entrada na cidade a Joana d'Arc e sua tropa.
Assim vitoriosa, a jovem quis levar Carlos VII a Reims para que recebesse a sagração régia - o que se deu a 17 de julho de 1429. Ao lado do monarca, a benemérita heroína lhe disse então: "Gentil roi, maintenant est faict le plaisir de Dieu... Gentil rei, agora está feito o prazer de Deus".
Joana dava por finda a sua missão, quando o rei lhe pediu continuasse a guerra. A donzela, dócil, muito se empenhou pela reconquista de Paris, mas aos 23 de maio de 1430, perto de Compiègne, foi presa pelos burgúndios, aliados dos ingleses. Estes a compraram pelo preço de 10.000 francos-ouro, e a levaram para Ruão, onde Joana deveria ser julgada. Aos ingleses interessava não apenas manter a donzela encarcerada, mas também destruir o seu prestígio aos olhos do público. - Este plano haveria de ser executado mediante pretextos religiosos que, para os homens da época, eram os mais persuasivos.
Não se poderiam entender adequadamente o processo e as maquinações empreendidos contra Joana d'Arc se não se levasse em conta a mentalidade de ingleses e franceses da época:
a) Joana dera à sua missão militar um caráter religioso, dizendo que Deus queria por seu intermédio libertar a França. - Por conseguinte, os inimigos, para desprestigiá-la, tentariam demonstrar que Joana de modo nenhum podia ser enviada de Deus, por estar sob a influência do demônio, como herege, bruxa, impostora, etc. - Caso isto ficasse comprovado, também o rei Carlos VII perderia a sua autoridade; seria evidente que se aliara a uma filha de Satanás, por obra da qual havia sido sagrado. Os franceses poderiam então perder a esperança de obter a vitória final.
b) A mentalidade popular da época era levada a crer que vitória obtida em guerra era sinal de que Deus apoiava o vencedor. Ora os ingleses haviam conseguido um triunfo retumbante em Azincourt (1415), onde cinco mil guerreiros tinham prostrado toda a cavalaria francesa, lutando um soldado contra seis cavaleiros. Tão fulgurante vitória, pensava-se, só teria sido alcançada com a colaboração do Céu; donde podiam muitos concluir que Joana contradizia ao curso dos acontecimentos sobre o qual Deus já proferira o seu juízo.
c) A própria conduta de Joana se prestava a deturpações... As calamidades que assolavam a França havia cerca de 75 anos, excitavam a imaginação popular, provocando o surto sucessivo de falsos taumaturgos e visionários. Como naquela hora se distinguiria Joana de uma Catarina de Ia Rochelle ou do pastor Guilherme de Gévaudan, comprovadas vítimas da ilusão? - Além disto, o espírito medieval podia facilmente escandalizar-se com a figura de uma jovem vestida de cavaleiro a cavalgar junto com uma tropa de soldados; ora tal era o caso de Joana. Ninguém concebia que uma virgem cristã se pudesse apresentar nesses termos. Compreende-se então que muitos dos contemporâneos da heroína se tenham podido iludir a seu respeito.
d) Será preciso levar em conta também a colaboração da Universidade de Paris, setor de grande autoridade, que os ingleses ganharam para a sua causa. O espírito que então animava os professores dessa instituição, não era muito sadio. Tendiam a considerar-se os luzeiros da S. Igreja; os mais moderados entre eles ficavam céticos ao ouvir falar de Joana; muitos, porém, lhe eram energicamente contrários. A pobre camponesa, com seus poucos anos de idade, deixava-se guiar por pretensas visões mais do que pelas idéias dos professores; queria passar por mais perita do que os capitães do exército, sem pedir vênia nem autorização aos doutos lentes!
À luz destas características da mentalidade da época, analisemos agora
4.0 DESFECHO DA HISTÓRIA DE JOANA
Os ingleses, tendo que apelar para motivos religiosos na sua ação contra a jovem guerreira, encontraram apoio valioso na pessoa do bispo de Beauvais, Pierre Cauchon, todo devotado à causa dos invasores e, por isto, refugiado em Ruão, território possuído pelos ingleses.
Não foi difícil encontrar pretexto para se iniciar um processo contra Joana: as suas apregoadas mensagens celestiais forneciam fundamento a acusações de bruxaria e heresia! Cauchon foi constituído presidente do respectivo tribunal. Para dar ao júri o aspecto e a autoridade de tribunal da Inquisição (tribunal oficial da S. Igreja!), chamaram a participar da mesa o Vice-Inquisidor de Ruão, Jean Lemaitre. Cauchon convidou ainda grande número de assessores e jurados, aos quais o governo inglês fez saber que tinha meios para os coagir, caso rejeitassem participar do processo; 113 juristas aceitaram a intimação, dos quais 80 pertenciam à Universidade de Paris.
O júri era de todo ilegítimo, pois Cauchon não tinha sobre Joana nem a autoridade de bispo diocesano nem a de legado pontifício. A Santa Sé não fora em absoluto informada da constituição de tal tribunal.
Contudo o processo foi encaminhado. A jovem sofreu maus tratos físicos e morais; submetida a interrogatórios capciosos, que visavam a arrancar-lhe a confissão de heresia e superstição, respondeu sempre com simplicidade e nobreza; chegou a apelar para o Santo Padre: "Peço que me leveis à presença do Senhor nosso, o Papa: diante dele responderei tudo o que tiver que responder". "Tudo que eu disse, seja levado a Roma e entregue ao Sumo Pontífice, para o qual dirijo o meu apelo!". Em vão, porém, apelou.
Finalmente, após peripécias diversas, Joana foi fraudulentamente condenada qual herege, relapsa, apóstata, idólatra. Entregue ao braço secular, sofreu a morte pelas chamas aos 30 de maio de 1431, enquanto olhava para o Crucifixo e orava. Na última manhã de sua vida, ainda dizia Joana a Cauchon: "Eu morro por causa de V.S.; se me tivésseis colocado nos cárceres da Igreja, ... isto não teria acontecido."
A opinião pública viu-se profundamente abalada pelo ocorrido. Apesar de todas as acusações, a massa do povo ainda tinha Joana na conta de vítima da injustiça de seus inimigos. Conseqüentemente, pouco depois de entrar solenemente em Ruão (dezembro de 1449), o rei Carlos VII deu início a uma revisão do processo condenatório, revisão que terminou favorável à jovem. Seguiu-se em 1455 o inquérito pontifício, já que Joana fora abusivamente sentenciada em nome da Inquisição: após numerosos interrogatórios, o arcebispo de Reims, aos 7 de julho de 1456, perante numerosa assembléia de clérigos e leigos em Ruão, publicou a conclusão do "processo do processo", reabilitando a memória da donzela.
De modo oficial e solene, a Igreja restaurou a memória de Joana d'Arc, reconhecendo-lhe os méritos e a santidade em 1920.
Por que tanto se fez esperar essa completa reabilitação?
Os tempos que se seguiram ao ano de 1456, foram de reação contra o espírito e a vida da Idade Média: na época da Renascença o adjetivo "gótico" vinha a ser sinônimo de "bárbaro"; quebravam-se os vitrais das catedrais para substituí-los por vidraças brancas; o famoso poeta Pierre de Ronsard (+ 1585), imitador dos clássicos gregos e latinos,
qualificava o período medieval de "séculos grosseiros"; mais tarde, Voltaire (+ 1778) e ainda Anatole France (+ 1924) mostravam-se diretamente infensos à jovem guerreira de Domrémy. Foi preciso que a opinião pública em geral proferisse um juízo mais objetivo sobre a Idade Média para se pensar em exaltar a figura tão caracteristicamente medieval de Joana d'Arc.
Em conclusão: a condenação de Joana d'Arc é fato histórico profundamente doloroso. Jamais, porém, poderá ser considerado fora do contexto do séc. XV, que bem o marca e ilumina.
Trata-se de um processo inspirado por interesses políticos e nacionais e justificado perante a opinião pública do séc. XV mediante pretextos religiosos (pretextos que podiam impressionar naquela época). Lamentavelmente houve prelados e clérigos que se prestaram ao papel de juízes de Joana d'Arc. Não procederam, porém, em nome da autoridade
Entende-se, pois, que a S. Igreja, de maneira oficial e solene, tenha procedido à reabilitação e canonização de Joana d'Arc.
Nenhum comentário:
Postar um comentário