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quarta-feira, 4 de abril de 2007

Deus: os ladrões de Deus

(Revista Pergunte e Responderemsos, PR /1995)

por Maria Winowska

Em síntese: A escritora Maria Winowska colecionou um conjunto de episódios ocorridos nos países dominados pelo comunismo, que perseguia a Igreja nos decênios após a segunda guerra mundial (1939-45). São faça­nhas heróicas e talvez inimagináveis, a tal ponto que a autora repete em seu livro: “A verdade nem sempre é verossímil". A obra apareceu em 1958 com o título "Les Voleurs de Dieu" (Os Ladrões de Deus); mostra como a fé católica se preservou, reafirmou e propagou de forma portentosa, não raro com a conivência mesma dos que haviam sido encarregados de a su­focar.

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A escritora polonesa Maria Winowska colecionou uma série de episó­dios ocorridos nos países dominados pelo comunismo, que perseguia a Igreja nos decênios após a segunda guerra mundial (1939-45). São faça­nhas heróicas e talvez inimagináveis, a tal ponto que a autora repete em seu livro: "A verdade nem sempre é verossímil". A obra apareceu em 1958 com o título "Les Voleurs de Dieu" (Os Ladrões de Deus).[1] Maria Winows­ka professa logo na Apresentação do seu livro:

"Os relatos que constam desta coletânea, referem fatos estritamente autênticos e devidamente averiguados. A autora reservou a si apenas o di­reito de encobrir os personagens, empalidecer os fundos de cena e evitar as pistas de identificação. Em vários casos, os diálogos puderam ser subme­tidos ao controle das testemunhas. Os protagonistas são apresentados com pseudônimos, com exceção feita para aqueles que já não correm risco, co­mo o Padre Alexandre" (p.7; a autora escrevia durante os anos de regime comunista no Leste Europeu).

Maria Winowska parece ter estado em prisão nazista alemã, pois con­ta um episódio que bem ilustra o choque de ideologias totalitárias que moveram os povos na primeira metade do século XX. Eis o que narra:

"Tinha como companheira de prisão uma militante comunista, da qual guardei as melhores lembranças... Era uma moça de sentimentos deli­cados que repartia com as colegas de cela todos os pacotes que recebia, pronta a prestar serviço e a realizar as tarefas das companheiras mais fra­cas. Ora, num cárcere em que as pessoas morriam de fome, isto era herói­co. Um dia discutíamos sobre Marx e Engels. Apelei para as leis inscritas na natureza do homem (tratava-se do senso de propriedade particular). En­tão disse-me ela tranqüilamente: 'Você tem razão por ora. Eis por que re­solvemos mudar a natureza humana!' Nunca algum livro me deu a conhe­cer melhor o mito de Prometeu do que essas simples palavras,- resumiam um programa cujo poder de sedução não poderíamos minimizar. Mas não é somente a partir de ontem que o homem é tentado a imitar Deus" (obra citada p. 10).

A leitura de tal livro tem quase o sabor de relatos policiais, dado o suspense que provoca no leitor. Evidencia a coragem, ignorada pelo grande público, não só de adultos, mas também de crianças, que arriscaram seus interesses e sua vida para ser fiéis a Cristo sob a perseguição comunista. Realmente o livro surpreende e reconforta o leitor, pois mostra que, sob os véus do silêncio e da aparente estagnação da fé, um sopro de vida forte - mais forte do que a dos que faziam estardalhaço - animava muitos cris­tãos nos anos maus pp.

A seguir, serão apresentados em síntese fiel alguns dos mais signifi­cativos desses episódios.

1. OS CRUCIFIXOS

"Eu não sei, dizia Petronilha, em tom altivo. Que é que me importam os crucifixos? Ontem estavam em seus lugares. Hoje as paredes estão des­nudas. Alguém os retirou. Não fui eu, que eu saiba!"

No Preventório, Petronilha gozava de.respeito por parte de todos, até mesmo do Diretor. Petronilha era tida como uma das vanguardeiras da classe operária promovida pela revolução comunista e arauto da mensagem da Polônia popular.

O Diretor do Preventório, Sr. Sarnecki, certo dia de manhã, insistia em que Petronilha lhe dissesse como haviam desaparecido os crucifixos das paredes da casa, quando bateu à porta da sala a Sta. Olga, enfermeira, co­mo um ciclone:.

"Estão em revolta! As crianças não querem levantar-se da cama' ".

Petronilha triunfava, dizendo: "Veja, camarada Diretor! Aposto que por trás disso tudo há um dos imperialistas americanos. Ouvi no rádio..."

A situação se tornava grave, pois o Inspetor do Governo estava para chegar de Varsóvia. A fim de homenageá-lo, haviam decidido na véspera li­quidar, uma vez por todas, as relíquias das superstições deixadas pelas frei­ras, às quais outrora pertencia o Preventório. Todas as imagens sagradas haviam sido retiradas; só faltavam os crucifixos, dos quais havia um em cada sala. Ora estes haviam desaparecido. Além disto, as crianças faziam greve...

O Diretor foi ao dormitório mais próximo; lá encontrou oito camas ocupadas por crianças imóveis, cobertas até o pescoço. Perguntou-lhes com voz de trovão:

"Então que é que vocês querem?"

Ninguém respondeu, mas todas o olhavam com olhos curiosos. Vol­tou à carga em tom mais conciliador:

"A água está quente; por que não querem ir aos lavatórios?".

Ninguém respondeu. De repente, a porta do dormitório se abriu e Petronilha anunciou:

"Chegou o Sr. Inspetor!"

Ingrata notícia, pois o Inspetor era esperado ao meio-dia. O Sr. Sar­necki agarrou um menino de oito anos, que se pôs a berrar, e lhe mordeu a mão. Logo uma voz perguntou atrás do Sr. Sarnecki : "Que está aconte­cendo?"

Sarnecki respondeu: "Os meninos não se querem levantar nem res­pondem às perguntas. Eis aonde leva uma educação retrógrada. Se os pais..."

O Inspetor então aproximou-se do menino que gritara e sentou-se à beira da cama. Disse o menino: "Não me toque; decidimos nós, meninos e meninas, não nos mexer até que nos concedam o que pedimos. Estamos num regime democrático, e nós somos a maioria. Então...?"

Perguntou o Inspetor ao Diretor o que as crianças queriam. Sarnecki, furioso, agarrou o menino com lençóis e cobertas, enquanto este lhe diri­gia uma tempestade de ponta-pés. Oito gargantas então lançaram um grito de horror, enquanto apareceu um imenso crucifixo sobre o ladrilho... Sar­necki e o Inspetor, perplexos, não sabiam o que pensar. O menino corajo­so, que Sarnecki havia largado, voltou para a sua cama, levantou o colchão e colocou o crucifixo debaixo deste. A seguir, deitou-se e recobriu-se com seus lençóis.

Diretor fulminou: "Agora sei como desapareceram os crucifixos. Vocês, idiotas, vão pagar caro!"

O Inspetor fez gesto a Sarnecki para que se calasse; colocou a mão so­bre a cabeça do menino e perguntou-lhe comovido: "Como te chamas?". "Yourek (Jorge)". "Dize-me por que escondeste este objeto debaixo do teu colchão!­

O menino baixou a cabeça. Do outro lado da sala, uma voz fina gri­tou: "Fala" Era a voz de Petronilha, que acabara de entrar com uma vas­soura na mão. Yourek correu para ela com um olhar cúmplice e disse em tom destemido, voltado para o Diretor:

"Não queremos que nos retire os crucifixos".

Seguiu-se um crepitar de aplausos, que partiam das crianças sentadas em seus leitos. Prosseguiu Yourek:

"Somos cristãos nós. Conhecemos o nosso Catecismo. Rezamos. E somos maioria. Por conseguinte, resolvemos guardar os nossos crucifixos em todas as salas. E, já que no-los queriam tirar hoje, nós os escondemos debaixo dos nossos colchões. Se o Sr. quer que nos levantemos, tem de nos prometer que todos os crucifixos serão recolocados no seu lugar. Se não, não nos moveremos".

Desta vez os aplausos foram-se propagando de sala em sala. O Preven­tório parecia unânime. Disse o Inspetor retorcendo o bigode:

"Está bem, Yourek! Serão recolocados os crucifixos. Vocês são pe­quenos demais para compreender. Mais tarde compreenderão".

Gritou então uma voz do outro lado da sala: "Amanhã como hoje, o Crucifixo será o Crucifixo. Que é que nós vamos compreender?"

O Inspetor já não sabia o que dizer:

"Calma, crianças! Os crucifixos serão recolocados. Agora levantem-se. Adeus!".

O Inspetor e o Diretor saíram do dormitório, ficando lá Petronilha, que fechara cuidadosamente a porta. Ela voltou-se para Yourek, pergun­tando:

"Será que eu te instruí direitinho?"

Yourek pulou-lhe ao pescoço e disse:

"Petronilha, és uma pérola!"

"Silêncio, disse ela, você é capaz de me comprometer".

Entrementes, no escritório do Diretor, a discussão se desenrolava dra­maticamente. Dizia o Inspetor:

"Veja, camarada, se você os contraria, só faz excitar as superstições das crianças; terminarão mais depressa, se você não lhes der atenção. Seria errado, da nossa parte, fabricar mártires".

"Mas então, exclamou o Diretor, será preciso conceder-lhes não so­mente os crucifixos, mas tudo mais! Padre, Missa, Confissões, Comunhões e todo o bazar que eles reivindicam. Aonde vamos parar? A menos que você me mande ir à Missa também a mim!"

"Quem sabe? disse o Inspetor. Para conquistá-los, é preciso atraí-los. Os métodos violentos são de curta duração. Quanto mais secretas forem nossas manobras, mais êxito poderão ter. Estamos para aplicar um progra­ma mais aperfeiçoado. E, de resto, você está seguro do pessoal que colabo­ra aqui?"

"Estou seguro deles como de mim mesmo".

"Perfeito! O tempo trabalha em nosso favor".

O Inspetor sorriu e tomou nota. O camarada Sarnecki lhe parecia derrotista.

2. A DAMA MILITAR

Aos 29/09/1939, o Sr. Arcebispo de Lwow, Mons. Twardowski, aca­bara de celebrar a S. Missa e rezava em sua capela, acabrunhado pelos trá­gidos acontecimentos que se haviam abatido sobre a Polônia. Esta fora ocupada por tropas estrangeiras, que ameaçavam perseguir a fé católica da população. Estaria a Polônia preparada para resistir aos desafios que se lhe apresentavam no campo da religião?

Entrou o Pe. Estêvão, Secretário, na capela e, aproximando-se do pre­lado, comunicou-lhe a chegada de alguém que o procurava. "Quem é?", perguntou o Arcebispo. - "É uma miliciana russa. Esta é a terceira vez que ela chama V. Excia; tentei despedi-la, mas ela insiste, dizendo que tem al­go a lhe confiar pessoalmente. É uma velha louca. Aposto que ela bebeu um gole demais".

O Arcebispo deixou a capela sem responder. Perguntou-lhe o Secre­tário: "V. Excia. fará sua breve refeição primeiro?" Após hesitar, o prela­do mandou introduzir a visitante; uma gota de fel a mais no seu cálice de dor não faria grande diferença.

Na sala de visitas, aguardava uma mulher em uniforme militar, com altas botinas. O Arcebispo se horrorizou e pensou: "Como esses russos es­tão longe da distinção e dignidade de nossas mulheres polonesas... Pode al­guém vestir-se mais ridiculamente?".

A visitante esperou que o Pe. Secretário se retirasse, e logo se atirou aos pés do Arcebispo: "Batiouchka!", dizia ela em prantos. "Batiouchka!"

O Arcebispo esperava tudo, menos essa acolhida por parte da mulher, que lhe ficou agarrada aos joelhos com o rosto aderente à batina do pre­lado.

"Será realmente uma louca?", pensou ele.

Depois disse em língua rutena: "Queira levantar-se", revelando certo mal-estar por demonstrações de afeto desse tipo.

A mulher levantou-se com esforço, pois era corpulenta. Exalava o cheiro de suor, couro e sujeira, mas não de álcool. O seu olhar azul parecia estranhamente jovem. Vendo a reserva do Arcebispo, exclamou:

"Era preciso que eu me alistasse no exército para chegar até V. Excia!"

Muito intrigado e afastando-se para evitar outras efusões de afeto, o prelado perguntou:

"E quem é a Sra.?­

Em pé, olhos nos olhos, declarou a mulher:

"Quem sou eu? É uma longa história. Segundo o meu passaporte, sou Anna Nikolaiewna N. Na realidade, ..., mas para que dizer-lhe o meu no­me, que aumentaria o risco de V. Excia.? Meu nome nada acrescenta à história".

Parou como se aguardasse nova pergunta. Diante do silêncio do Arce­bispo, continuou:

"Nasci na Rússia Branca, até mesmo num castelo. Mas a Revolução Soviética matou meu pai, minha mãe, meus irmãos e irmãs. O guarda da floresta salvou-me escondendo-me no bosque. Eu tinha então seis anos. Fi­camos aquém da fronteira da Polônia. Vendo-me só, eu quis matar-me. Mas o velho Dymitri me levou à casa do Pe. Sérgio, que vivia camuflado como operário agrícola. Este tomou-me sob a sua proteção, e à noite ensi­nava-me o Catecismo. Era bom para mim como um pai. Certa vez disse-­me: 'Ania, quando eu tiver desaparecido, tu continuarás o meu trabalho. Não é bom guardarmos para nós o que recebemos gratuitamente. Tens a fé, conheces a religião. Será o momento de a transmitir a outros. As almas não têm fome de alimento perecível, mas de fé. Os bolchevistas expulsa­ram Deus; em toda parte fecham-lhe a porta, a porta de recepção. Mas Ele se contenta com a entrada de serviço. Deus é humilde, minha filha; Ele en­tra apesar de tudo. Mas é preciso ajudá-Lo a entrar. Tu o ajudarás, não é?'

Chorando, prometi-o. Mais tarde, prenderam-no e deportaram-no não sei para onde. Mas eu tinha uma estrela nas minhas trevas: a promessa que eu fizera e que me obriga em consciência. Desde então, há mais de vinte anos, percorro a Rússia, e ensino o Catecismo. Batizo também; a Missa, não a posso celebrar. Mas, batizar, eu posso e aproveito. Apenas..."

De repente o semblante se lhe tornou vermelho:

"Apenas há tantos anos que eu não vejo um padre. Quem sabe? Tal­vez eu tenha esquecido a doutrina?"

Parou por um instante e acrescentou:

"Eu vim, Batiouchka, para que V. Excia, me examine. Prefiro que seja um Bispo; é mais seguro".

Ania baixou a cabeça e calou-se. A porta se entreabriu: "V. Excia. me chamou?", perguntou o Pe. Estêvão.

O Arcebispo imaginou que o padre estivesse montando guarda diante da porta, já um tanto preocupado. E respondeu: "Deixe-nos ficar tranqüi­los. Ninguém nos perturbe".

"E sua refeição?"

"Tenho mais que fazer. Nesta manhã não receberei ninguém".

Surpreso, o Pe. Estêvão fechou a porta: "Contanto que nada aconte­ça ao Sr. Arcebispo", pensou, disposto a montar guarda até acabar o mis­terioso encontro, tal era a estima de que gozava o prelado por parte de pe­quenos e grandes.

Tendo permanecido a sós com a mulher, o Arcebispo lhe disse:

"Vamos primeiramente saudar o Senhor da casa, que a trouxe até aqui".

Entrando na capela, a mulher ajoelhou-se e depois prostrou-se por terra, desfazendo-se em lágrimas.

"Senhor, rezava o Arcebispo, Senhor, perdoai-me a pouca fé. Vossos pensamentos não são os nossos pensamentos, nem vossas vias são nossas vias. Para a trazer até aqui, vós violastes as nossas fronteiras. Estávamos na defensiva e eis que nos promovestes a missionários. Não será com bar­ricadas que venceremos o ateísmo. Essa mulher, sem o saber, me traz vos­sa resposta".

Ela rezava com ardor que transfigurava o seu semblante. O prelado tocou-a no ombro dizendo-lhe: "Vamos! Não percamos tempo!"

Uma alegria incoercível emanava de suas trevas; o céu se entreabria. Com ânsia, naquele momento, por comunicar aquilo que ele também rece­bera de graça. Por essa infeliz mulher a plenitude de seu mistério atingiria almas, para as quais já sentia as entranhas de pai. Uma grande visão o ilu­minava. Sim! A fome de Deus é tão forte que, se nós recusarmos satisfa­zer-lhe, os famintos arrombarão nossas portas.

"Sou eu que a interrogarei, pensou o Arcebispo. Mas, na verdade, por essa pobre mulher Deus me interroga. Senhor Jesus, sede Vós mesmo nos­sa resposta viva!­

3. UM BATIZADO EM 1944

"Ela terá engolido uma caixa inteira de Gardenal", disse Irmã Olga ao homem que trabalhava no jardim. "Encontraram-na desmaiada hoje de manhã ao pé da escada. A Irmã Inês logo tomou as providências necessá­rias: lavar o estômago e o mais. Ela está respirando, mas... Pense, padre, nas represálias que nos ameaçam. Ninguém acreditará numa tentativa de suicídio. Uma miliciana, e miliciana graduada! Vão acusar-nos de cumplicidade com a Resistência. O Sr. sabe muito bem como são trama­das as incursões do terrorismo".

A Irmã Olga estava visivelmente alarmada, ... ela tão ponderada e tão senhora de si mesma. O homem no jardim enxugou as mãos no seu avental azul: "Vou vê-la", disse ele a meia-voz.

A Irmã Olga pulou e interceptou-lhe a passagem:

"O Sr. está louco, padre! Isto implica caminhar para a sua morte. Ninguém o conhece aqui. Ademais o Sr. nada pode fazer por essa pobre mulher, que ignora o a-b-c da religião. A Irmã Wanda, que conhece a lín­gua russa, conversou longamente com ela no outro dia. Ela parecia curiosa acerca do nosso modo de viver e colocou uma porção de perguntas infan­tis: por que usamos véus e alianças? Jesus Cristo existiu realmente? Que é o Batismo? A Irmã Sofia encontrou-a, há dias, parada diante de Nossa Se­nhora de Lourdes. Interpelada, a mulher disse: 'Esta mulher se parece com a Sra.; seria um mausoléu?' Creia, padre: o Sr. vai perder seu tempo. O que devemos fazer, é salvá-la para que ela se vá embora, e vá embora mesmo..."

O homem arrumava seus instrumentos de trabalho e finalmente disse: "É isto mesmo. E preciso salvá-la. Vamos!".

Com grandes passos entrou na casa, acompanhado pela Irmã Olga, que não podia conter as lágrimas.

O Pe. João só podia exercer o seu ministério clandestinamente, vesti­do como jardineiro. Os alemães haviam prometido premiar quem lhe cor­tasse a cabeça, ao passo que os russos estavam liquidando sem piedade sa­cerdotes e Religiosos. Por conseguinte, as monjas que o hospedavam com alegria, corriam um grande risco em troca do valor inestimável da Missa que ele diariamente celebrava. Todavia a Irmã Olga acabou pensando que seria inútil multiplicar as complicações. O padre, com seus passos acelerados, es­tava correndo para dentro da goela do lobo! As milicianas eram piores do que os soldados soviéticos: despudoradas, brutais, movidas por instintos perversos, às vezes sádicos. A Irmã Olga, encarregada da portaria, sabia-o por experiência. Já havia muito, oferecera o sacrifício de sua vida, mas jul­gava que não se devia provocar o martírio.

O Pe. João entrou precipitadamente na cozinha, onde a Irmã Edviges descascava as batatas. "Onde está ela?", perguntou o padre.

A velha Irmã indicou a direção com a sua faca, dizendo:

"Agora e na hora da nossa morte... Amém. A Irmã Inês a colocou na Enfermaria, padre. Coitada! Que Deus tenha pena dela!"

No corredor a Irmã Inês parecia aguardar o padre:

"Eu o vi pela janela, padre. O Sr. fez bem vindo aqui. Ela acaba de re­cuperar os sentidos. Não consigo acalmá-la. Ela chora como uma Madale­na. Venha!".

Entrando na Enfermaria escura, ele viu apenas um vulto branco que se agitava em soluços. Debaixo dos cobertores toda encolhida, ela parecia um animal ferido. Pensou o padre consigo: "Que monte de desgraças!" E, aproximando-se do leito, colocou suavemente a mãe sobre a cabeça da mulher. Ela teve um sobressalto e olhou espantada:

"Não tenha medo!", disse o padre em russo. "Eu venho para te sal­var. E, para começar, como te chamas?".

Ela o fitou com o olhar desconfiado e disse:

"Katia... Eu me chamo Katia, Katiouchka. Mas que é que o Sr. tem a ver com isto?"

"Conversamos melhor com quem conhecemos. Eu sou o Pe. João, um batiouchka".

Os olhos da mulher se encolheram e ela disse: "O Sr. sabe que eu posso colocá-lo no cárcere?".

"Sim; eu o sei".

A Irmã Inês tomou o pulso da enferma e disse: "Está melhor. Eu os deixo".

A porta fechou-se sem ruído. De pé, junto ao leito, o Pe. João olha­va. Apesar do seu olhar marcial e seus traços rudes, a mulher era jovem, loura e rosada. Os seus olhos plenamente abertos fervilhavam de febre. Perguntou-lhe o padre: "Por que fizeste isso, Katienka?"

Ela cobriu o rosto com uma ponta do lençol e respondeu: "Porque tenho vergonha. Tenho nojo de mim mesma".

Juntou as mãos. Esperava. Surpreendida com o silêncio do padre, levantou a cabeça e olhou-o na face.

"Sabes quem eu sou? Uma prostituta. Miliciana, sim, para divertir nossos soldados. Dia e noite! Dia e noite! Quando eu tinha dez anos, so­nhava com um lar, com filhos... Tudo isso acabou. Eles me contamina­ram. Até eu chegar aqui, eu pensava que a vida era isso. Eu não acreditava que existissem virgens. Estou encarregada de vos vigiar e eu olho, olho... Esses véus. Essa paz. Esses semblantes em que nada é sujo. Deram-me ex­plicações sobre a estátua da Pretchistaia (Imaculada). Estive na vossa cape­la, nos dormitórios, em toda parte. Este é um mundo que eu ignorava; eu não sabia que isso é possível. Então tive vontade de me vomitar. Agora, tu sabes! ".

"Deus seja louvado", disse o padre com voz clara. "Sim, eu sei que nada está perdido, Katienka. Se queres, depende de ti tornar-te tão pura e tão bela quanto as nossas monachki (monjas). Tu quiseste matar-te, por­que tens desdém de ti mesma. Mas sabes o que é o Batismo? Já foste bati­zada?"

Acenou negativamente com a cabeça. Os seus olhos estavam molha­dos de lágrimas.

"O Batismo, Katienka, também é uma morte. A morte ao pecado. Tudo o que é sujo em nós, é afundado na água. E esta água nos purifica, porque Cristo morreu por nós. Ele morreu para dar-nos a vida. Só depende de ti ser libertada do peso que te enoja. Mas será que compreendes o que te digo?"

Lenta e pausadamente, ela juntou as mãos:

"Gospody pomylom! Gospody pomylom! (Senhor, tem piedade de nós,). Minha avó rezava sempre a oração de Jesus, mas nós julgávamos que era louca. Disseram-nos que Deus estava morto. Então isto não é verdade?"

Sentou-se na cama, e, sôfrega, perguntou:

"Dize, pois, Batiouchka: Deus existe?"

"Se Ele não existisse, por que haveria Religiosas? ... Sacerdotes? Julgas, Katia, que a pureza seria possível se Deus não existisse?"

Ela franziu a testa e pareceu refletir profundamente:

"Creio que tens razão, Batiouchka! Mas então que devo fazer?"

Fixava-o com um olhar suplicante, e acrescentou:

"Farei o que me disseres!"

Disse o padre, após ter agradecido em silêncio à Virgem Maria:

"Trata de ficar aqui, Katienka. Faze-te de doente. Hão de te tratar no corpo e na alma. Dentro de oito dias, celebraremos a Páscoa. Sabes o que significa Páscoa?"

"Christos woskres (Cristo ressuscitou), disse ela suavemente. Minha avó dizia: Christos woskres e eu com meu irmão zombávamos dela como de uma boba."

"Pois bem, Katia, vamos batizar-te na noite de Páscoa. Toda a lama de que te envergonhas, sairá com a água do Batismo. Mas é preciso que, antes, eu te ensine a conhecer a Deus e a rezar. Pois, não me leves a mal, tu és a bobalhona. Depois veremos!"

Katia baixou a cabeça e cobriu o rosto com as duas mãos.

"Que é que ainda falta?", perguntou o Pe. João um tanto inquieto. Através dos dedos ela o entreolhou, e disse com voz sufocada:

"Julgas, Batiouchka, que um dia poderei ser como elas?

"Quem elas?"

"Como as monachki?"

O padre não conteve uma grande risada. A Irmã Inês, que estava montando a guarda, abriu a porta e olhou surpresa.

"Minha Irmã", disse o Pe. João, "eu lhe apresento uma postulante! Mas é preciso, primeiro, batizá-la".

4. A POLÍCIA E SANTO ANTÔNIO

O Pe. Miguel acabou de chegar em casa, após visitar os doentes da pa­róquia; estava molhado pela chuva, quando sua irmã abriu bruscamente a porta da sala onde ele estava, e lhe disse: "Ele chegou!" O Pe. Miguel sofreu um choque; imaginou logo que fosse um agente da Polícia Secreta, pois estava sempre de sobreaviso. A irmã do padre deixara o homem a sós na cozinha, onde ela estava preparando os pontchki (iguaria própria da época de Carnaval na Polônia). O sacerdote dirigiu-se à cozinha, onde o vi­sitante o saudou e lhe deu a saber que o queria levar consigo. O padre olhou para a irmã, que lhe fez sinal de paz, pois em seu íntimo ela tinha recomendado o caso a S. Antônio.

O policial não parecia tão agressivo como era costumeiro na sua cate­goria. Mandou o padre acompanhá-lo, levando, porém, as suas alfaias para exercer uma função sacerdotal e água benta.

O Pe. Miguel conjeturou então que o homem o queria levar para administrar os últimos sacramentos a pessoas condenadas à morte; depois ele mesmo seria assassinado e atirado numa fossa para que ele não pudesse relatar o massacre. Já houvera precedentes desse tipo nos últimos tempos.

O padre procurou protelar a partida perguntando: "É realmente ne­cessário levar água benta?" Respondeu-lhe o policial: "Como quer o Sr. que eu o oriente em suas tarefas? Mais vale levar o equipamento com­pleto".

O Pe. Miguel não tinha dúvida. Estava de partida para a sua última viagem. Abriu a porta da cozinha e disse à sua irmã, que estava na sala con­tígua: "Inês, vou sair com este senhor!" Inês respondeu: "E meus pontch­ki?" O policial retrucou: "O serviço que o Sr. Vigário vai prestar, é mais importante do que os seus pontchki". E Inês: "Santo Antônio de Pádua! O sr. não tem coração?". "Deixa disso, Inês", disse o padre. "Prepara-me a alva, a estola, o ritual e a água benta".

O padre interiormente se pôs a percorrer o filme de sua vida e fez um ato de contrição perfeita, como quem se prepara, de emergência, para morrer. Perguntou ainda ao policial: "Não posso ir avisar o meu coadju­tor?" - "Só faltava isso", disse o policial, que se dirigiu a Inês, acrescen­tando: "Minha senhora, se jamais alguém souber desta minha visita aqui, eu a mandarei para junto do seu Santo Antônio pelo retorno do Correio".

Inês então despediu-se de seu irmão, murmurando no seu ouvido:

"Quando voltares, acorda-me!"

Pensou o padre consigo mesmo: "Ela não desconfia de que eu não voltarei". Entrou no carro do policial, que se pôs a acelerar a marcha. En­trementes rezava o sacerdote: "Senhor Jesus, tem piedade de mim!"

O policial caiu numa gargalhada e lhe disse: "O Sr. precisa mesmo da misericórdia de Deus. Quer que o ajude a fazer seu exame de cons­ciência?"

O padre agradeceu: "O seu Código de Moral difere do meu!"

O carro corria a toda velocidade, enquanto o padre pensava na mor­te que o esperava e rezava o terço; "... agora e na hora da nossa morte".

O veículo atravessou o centro de Varsóvia, sem parar na sede da Polícia Central. O padre já previa que o iam executar sumariamente, lançando-o numa fossa aberta nos bosques dos arredores. De repente, o carro parou diante de uma casa dos subúrbios, em que discretamente se tocava música. Pensou o Pe. Miguel: "Crer que esses monstros fazem festa enquanto sacrificam gente honesta!" O policial introduziu-o na casa. Ao entrar, o sacerdote percebeu logo a ante-câmara, que nada tinha de uma sala de espera de um Posto de Polícia: a música era acompanhada pelos vagidos de uma criança recém-nascida. Abriu-se a porta da sala principal, donde saiu uma mulher, que, sorridente, convidou o padre a entrar; ele compreendeu então por que levava estola, água benta e o equi­pamento de pároco. Disse-lhe o policial:

"Se alguma vez o Sr. contar a missão delicada que lhe confiamos, será imediatamente transferido para o seio de Abraão (= o além). E agora vamos! Batize o meu filho".

Os padrinhos aproximaram-se e o Batismo foi administrado à criança, que tomou o nome do pai: Antônio.

"Que pedes, Antônio?", perguntou o padre.

Várias vozes responderam: "A fé!". Entre os que responderam, estava o policial, que passava a fazer as vezes de coroinha, trazendo nas mãos a caldeirinha de água benta...

Pelas duas horas da madrugada, o Pe. Miguel voltou à casa. A sua ir­mã Inês, que o confiara a S. Antônio, quase caiu para trás quando viu o padre e o policial abraçados como os melhores amigos. Não sabia o que acontecera e insistia com o padre para que comesse os pontchki que ela preparara horas antes. O sacerdote recusou, afirmando não estar com fo­me. Perguntou-lhe ela:

"Santo Antônio te proíbe comer meus pontchki?"

O Pe. Miguel sentiu-se fortemente interpelado pela santa curiosidade feminina e respondeu:

“Minha cara irmã, não esqueça o segredo profissional. Eu posso Ter com S. Antônio meus entendimentos que não te digam respeito”.

Inês se conformou e compreendeu que não valia a pena insistir. Apenas pensou: “Desta vez, S. Antônio, vós me atendestes bem demais!”

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NOTAS:

[1] Editions Saint-Paul, 6 Rue Cassette, Paris 1958, 168 pp. 140,x 185 mm.

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