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quinta-feira, 26 de abril de 2007

Igreja: a igreja dispensa do celibato, mas não dissolve o vínculo conjugal.

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 243/1980)

Em síntese: Muitos fiéis perguntam, perplexos, por que a Igreja dispensa do celibato os clérigos, mas não dissolve os casamentos infelizes. A esta questão se deve responder que o sacramento da Ordem não é incompatível com o do matrimônio; a venerável lei do celibato sacerdotal deve-se a uma instituição da própria Igreja, e não é de direito divino; por isto os clérigos no Oriente podem casar-se antes de receber a ordenação diaconal. Quanto ao sacramento do matrimônio, é, por instituição divina, indissolúvel; cf. Mc 10,11s; Lc 16,18; Mt 5,32; 19,9; 1Cor 7,11. Aliás, a indissolubilidade do matrimônio decorre do próprio direito natural, que é intocável. Por isto a Igreja não pode anular um casamento válido e consumado, mesmo que esta atitude lhe seja árdua e penosa; a Igreja a sustenta por fidelidade a Cristo e em serviço aos homens, que sentem, hoje mais do que nunca, os efeitos deletérios da multiplicação de divórcios e da dissolução de lares.

O celibato sacerdotal, por mais estranho que possa parecer à mentalidade moderna, resulta da consciência que os cristãos têm, de que chegaram os valores definitivos; por isto o cristão tem todo o interesse em não se dividir, mas, antes, dedica-lhes toda a sua atenção (cf. 1Cor 7,29-35); é para que o padre possa mais plenamente realizar esta tarefa que ele permanece celibatário.

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Comentário: Há muito os leitores de PR levantam uma questão de ordem prática, que a não poucos aflige, mas que, em verdade, se elucida com facilidade no plano da teologia. Ei-la: se a Igreja tem concedido a presbíteros[1] a dispensa de suas obrigações sacerdotais e a licença para se casarem, por que não concede a pessoas casadas a faculdade de dissolver seu casamento e contrair novas núpcias?

É a esta pergunta que atenderemos nas páginas subseqüentes.

1. O porquê...

Ao assumir a posição acima, a Igreja não comete arbitrariedade, mas apenas tira conseqüências das noções de sacerdócio e de matrimônio cristãos.

1. Com efeito, o ministério hierárquico (que consta dos graus do diaconato, do presbiterado e do episcopado) não repudia, como tal, o sacramento do matrimonio. Em outras palavras: não há incompatibilidade teológica em que um e o mesmo indivíduo receba os sacramentos da Ordem e do Matrimônio. Apenas a disciplina da Igreja, desde os primeiros séculos no Ocidente, foi estabelecendo o costume (que posteriormente se tornou lei eclesiástica, como veremos) do celibato para os clérigos; em conseqüência, se alguém no Ocidente deseja receber o sacramento da Ordem, deve abraçar a vida una ou indivisa (que, conforme São Paulo na 1Cor 7,29-35, proporciona mais amplidão e facilidade para servir ao Senhor e aos irmãos).

No Oriente, a disciplina da Igreja tomou outra configuração: quem recebe as Ordens sacras em estado celibatário, não poderá casar-se depois de ordenado; não é excluído, porém, que um homem legitimamente casado, seja ordenado presbítero (os bispos, porém, no Oriente são nomeados dentre os presbíteros não casados, de modo que todo bispo oriental é celibatário).

Entende-se, pois, que a Igreja no Ocidente possa outor­gar a um presbítero a dispensa das suas obrigações sacerdotais, inclusive do celibato, para que se case. Fazendo isto, a autoridade da Igreja não está violando um preceito divino nem violentando a índole do sacramento da Ordem, mas apenas dispondo de uma lei venerável e salutar - a lei do celibato - estabelecida pela própria Igreja. Notemos ainda que a Igreja somente em casos graves dispensa um sacerdote do seu celibato (João Paulo II, aliás, tem-se mostrado contrário a essa praxe). Ao dispensar do celibato, a Igreja impõe ao presbítero uma justa sanção; com efeito, para casar-se o padre tem de renunciar ao exercício do ministério sacerdotal (celebração da S. Missa e cio culto divino em geral, funções pastorais ligadas ao sacramento da Ordem), embora continue sendo padre por todo o sempre (diz a teologia que o sacramento da Ordem, como os do Batismo e da Crisma, imprime caráter indelével) ; o presbítero, uma vez ordenado validamente, fica sendo presbítero mesmo que não exerça as suas funções ministeriais. Este fato explica que muitos sacerdotes dispensados das obrigações presbiterais estejam atualmente pleiteando a sua recondução aos ofícios sacerdotais; como alegam, conservam viva a sua fé, têm amor ao ministério sagrado e possuem cabedal filosófico-teológico aproveitável... Todavia as autoridades eclesiásticas até hoje não julgaram oportuno atender-lhes, pois na verdade tal concessão significaria o reconhecimento de dois tipos de clero: o clero celibatário e o clero casado; em conseqüência, aos poucos a lei do celibato obrigatório para todos os clérigos seria solapada; poderia chegar a ser reformulada de tal modo que o celibato se tornaria apenas uma possível opção para quem aspirasse ás Ordens sacras. Por conseguinte, a Igreja, que, por justas razões (como se verá adiante), deseja manter o princípio do celibato sacerdotal, considera inoportuna qualquer abertura de exceção ou brecha na legislação vigente.

2. Passando agora ao sacramento do matrimônio, verificamos que, por seu conceito mesmo, inclui a indissolubilidade. O Evangelho e São Paulo o afirmam assaz claramente:

"Disse Jesus : 'Quem repudiar a esposa e casar com outra, comete adultério contra ela. E, se a mulher repudiar o marido e casar com outro, comete adultério' " (Mc 10,11s).

"Mando aos casados - não eu, mas o Senhor - que a mulher não se separe do marido. Se, porém, se separar, não torne a casar-se, ou reconcilie-se com o marido ; e o marido não repudie a mulher" (1Cor 7,11).

Cf. Lc 16,18; Mt 5,32; 19,9

Eis por que, nos casos em que se torne indesejável ou impossível a coabitação de marido e mulher, a Igreja aceita a separação judicial ou o desquite; este não dissolve o vínculo
matrimonial, que perdura até a morte de um dos cônjuges (desde que o matrimônio tenha sido válido e consumado)[2]. Todavia aos cônjuges separados a Igreja, por fidelidade a Cristo (e não por apego a tradições e correntes culturais), não concede novas núpcias. É certamente duro para os próprios pastores da Igreja assumir tal atitude; mais cômodo seria aceitar qualquer tipo de enlace “feliz»; contudo, como servidora fiel de Deus e dos homens, a Igreja não pode renunciar a esse árduo dever de transmitir aos homens, sem derrogação nem mutilação, o preceito do Senhor. A fidelidade ao Evan­gelho custou à Igreja a perda mesmo do reino da Inglaterra; com efeito, o rei Henrique VIII, tendo pedido ao Papa Clemente VII o seu divórcio sem obter resposta favorável, houve por bem separar da Igreja universal o reino da Inglaterra em 1534! Até hoje a Igreja contínua sendo arauta da indissolubilidade matrimonial para o bem de uma sociedade que se vai dissolvendo, vítima de suas próprias paixões. A propósito eis significativa notícia do jornal “o Globo” de 26/12/79, p. 11; transmite palavras do arcebispo anglicano Donald Coggan, sucessor atual de Tomás Cranmer, o arcebispo de Cantuária que concedeu o divórcio a Henrique VIII no século XVI:

"DIVÓRCIOS ALARMAM ARCEBISPO BRITÂNICO

PARIS - 'Um país onde os divórcios se multiplicaram por quatro em trinta anos é um país em perigo', afirmou ontem, referindo-se à Inglaterra o arcebispo de Canterbury, Donald Coggan. Em sua última mensagem de Natal antes de deixar o cargo, o arcebispo disse que 'há tantos lares desfeitos, tantas pessoas condenadas à solidão, tentando fazer o duplo papel de pai e mãe, que é preciso dar-lhes ajuda cristã nestas circunstâncias'. 'Façamos uma séria reflexão sobre as conseqüências de desfazei um lar, pois costumam ser terríveis para as crianças', pediu o arcebispo".

Aos casais em crise e aos esposos separados judicialmente a Igreja hão deixa de prestar sua assistência pastoral movida por solicitude que é cada vez mais atenta e acesa: já em PR 236/1979, pp. 320-331 abordamos as diretrizes da Igreja contemporânea em relação aos cônjuges desquitados.

Passemos agora a breve consideração de

2. 0 significado do celibato

As raízes do celibato cristão encontram a sua expressão mais fiel e pujante em 1 Cor 7,29-35: o Apóstolo diz aí que o tempo se fez breve» ...Com outras palavras: os valores eternos e definitivos tendo entrado na história dos homens em conseqüência da vinda do Messias, o cristão sabe que todo o tempo ainda é pouco para se dedicar a tais valores; o cristão sente-se impelido a voltar toda a sua atenção e as suas energias para as realidades eternas que lhe estão presentes. Daí a conclusão:

"Aqueles que têm esposa, sejam como se não a tivessem; aqueles que choram, como se não chorassem; aqueles que se regozijam, como se não se regozijassem; aqueles que compram, como se não possuíssem; aqueles que usam deste mundo, como se não usassem plenamente. Pois passa a figura deste mundo,

Eu quisera que estivésseis isentos de preocupações. Quem não tem esposa, cuida das coisas do Senhor e do modo de agradar ao Senhor. Quem tem esposa, cuida das coisas do mundo e do modo de agradar à esposa, e fica dividido. Da mesma forma, a mulher não casada e a virgem cuidam das coisas do Senhor, a fim de serem santas de corpo e de espírito. Mas a mulher casada cuida das coisas do mundo; procura como agradar ao marido" (1Cor 7, 29-34).

Conscientes destas verdades, já na época de São Paulo (56), muitos cristãos abraçavam a vida una em suas próprias casas, procurando assim servir ao Senhor com largueza e liber­dade. Aos poucos, a vida celibatária foi-se tornando um ideal. Compreende-se então que os presbíteros a tenham adotado espontaneamente logo nos primeiros séculos; a praxe livre e voluntária antecedeu a lei... O primeiro texto de Concílio que legisla sobre a continência dos clérigos data do ano de 300 aproximadamente; é o cânon 33 do Concílio regional de Elvira na Espanha, que reza:

"Pareceu oportuno proibir peremptoriamente aos bispos, aos pres­bíteros e aos diáconos, ou seja, a todos os clérigos no exercício do seu ministério, ter relações com suas esposas e gerar filhos. Quem o fizer, será destituído da sua dignidade de clérigo".

Esta determinação foi sendo assumida por outros Concí­lios regionais, de modo a tornar-se mais e mais difundida. Tenha-se em vista, por exemplo, o Concílio de Cartago datado de 16/06,/390. Nesta assembléia o bispo Epigónio de Bulla Regia tomou a palavra e disse:

"Como em precedente concílio foram abordadas certas regras refe­rentes à continência e à castidade, proponho seja incutida em termos mais explícitos a prática da castidade nos três graus (ou ministérios) que, por efeito de sua consagração, estão a ela obrigados a título espe­cial : refiro-me aos bispos, aos presbíteros e aos diáconos".

Então o bispo primaz Genétlio, presidente da assembléia, confirmou:

"Como dito anteriormente, convém que os muito santos bispos e os presbíteros de Deus, assim como os levitas, isto é, os que estão a serviço dos sacramentos divinos, observem a continência total, de modo que possam obter de Deus o que Lhe pedem, em toda simplicidade de alma. Assim guardaremos também nós, o que os Apóstolos ensinaram e o que os nossos antepassados observaram".

Todos os bispos presentes aprovaram unanimemente tais dizeres.

Em Roma, na Alta Itália, na Gália, na Grã-Bretanha, na Irlanda, na Espanha semelhantes prescrições conciliares foram sendo promulgadas no decorrer da Idade Média Ascendente, de modo que a lei do celibato se tornou universal no Ocidente cristão.

Quanto ao Oriente, a legislação se cristalizou em fins do século VII, ou seja, no Concílio de Trulo (ou Quinissexto) em Constantinopla, realizado em 692. Eis o teor do respectivo cânon 6:

"Está dito, nos cânones dos Apóstolos, que, dentre aqueles que, celibatários, ingressam no clero, somente os leitores e os cantores estão autorizados a se casar. Nós, guardando fielmente esta lei, decidimos que, a partir deste momento, um subdiácono, um diácono ou um presbítero, após ter recebido a ordenação, não terá mais a liberdade de fundar um lar. Se algum deles incorresse na audácia de fazê-lo, seja deposto.

Se algum dos que ingressam no clero, quer unir-se a uma mulher pelos vínculos do matrimônio, faça-o antes da ordenação de diácono, subdiácono ou presbítero".

Os bispos, porém, deveriam (e devem) ser celibatários. Eis por que o cânon 48 do mesmo Concilio considera o caso de esposa de um presbítero que seja nomeado bispo:

"A esposa de quem seja elevado à sede episcopal, separe-se do seu marido por consentimento mútuo, Após a ordenação do esposo ao episcopado, deverá entrar num mosteiro situado a boa distância da residência do bispo, e o bispo providenciará o seu sustento. Caso ela se mostre digna, seja promovida à dignidade de diaconisa".

Iara evitar tais transtornos, os orientais atualmente escolhem os seus bispos, como dito, entre os presbíteros celibatários ou entre os monges.

Estes cânones orientais, de um lado, contribuem para evidenciar que não é incompatível o matrimônio com o ministério sacerdotal; de outro lado, mostram que mesmo no Oriente, onde a disciplina era mais branda, o celibato sacerdotal foi altamente estimado.

Os historiadores discutem sobre os motivos deste apreço; veja-se a bibliografia citada ao fim deste artigo. Como quer que seja, o celibato sacerdotal tem sua plena fundamentação e justificativa nos dizeres do Apóstolo em 1Cor 7,29-35. O seu significado pode ser avaliado segundo três dimensões: a onto­lógica, a eclesiástica ou comunitária e a escatológica. Em outros termos: o celibato relaciona diretamente o presbítero com o Cristo, com a Igreja e com as realidades últimas e definitivas:

- com o Cristo... O sacerdote é um outro Cristo. Por isto ele procura identificar-se cada vez mais com o Senhor, consagrando toda a sua personalidade ao Senhor Jesus Cristo;

- com a Igreja e a comunidade... O celibato permite ao presbítero o exercício de um serviço mais livre e amplo à Igreja e aos irmãos. O celibato sacerdotal vem a ser penhor e expressão de amor a todos os homens indistintamente;

- com as valores escatológicos. . . O celibato só se explica pelo fato de que o sacerdote tem consciência de que entraram na história dos homens os bens definitivos. Estes devem polarizar a energia e a atenção do presbítero, levando-o a abraçar a vida una.

Eis o que ocorria ponderar a propósito do procedimento da igreja referente ao celibato dos clérigos e à indissolubilidade do matrimônio. Tomamos assim mais uma vez consciência de que profundas perspectivas teológicas estão subjacentes às atitudes da S. Mãe Igreja.

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NOTAS:

[1] A palavra presbítero (do grego presbyteros, ancião) é o vocábulo técnico e adequado para designar a pessoa que comumente é chamada padre (padre vem do latim pater, pai, pondo em relevo a paternidade espiritual do presbítero).

[2] Matrimônio válido é o casamento contraído de forma canônica, sem qualquer óbice jurídico.

Matrimônio consumado é o casamento válido levado até a cópula carnal. Antes desta, ainda é possível, em certos casos, um recurso que leve à declaração de nulidade.

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