Em síntese: O Pe. Jaime Snoek publicou um ensaio..., ou seja, um livro cujas sentenças são oferecidas ao público para discussão e debate.
O presente artigo tenta apontar o que tal livro tem de positivo e o que apresenta à discussão dos estudiosos. O principio básico, do qual se deduzem as conclusões mais "avançadas" da obra, é considerado atentamente: dá margem a certo subjetivismo ético ou a uma ética da situação, que não se coaduna com os princípios da Moral católica. Conclusões aberrantes são deduzidas do subjetivismo ético que inspira o livro.
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Comentário: O Pe. Jaime Snoek, professor de Ética Sexual na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG), lançou em 1981 um livro que tem despertado a atenção dos estudiosos. Aborda, de maneira assaz erudita, os assuntos atinentes à sexualidade, propondo sentenças novas, assaz diversas das da Moral católica tradicional. O livro resulta do estudo de ampla bibliografia recente sobre o assunto; é, pois, altamente informativo. Não pretende chegar a conclusões definitivas; por isto tem o titulo de “Ensaio... “ (cf. p. 287).
Abaixo apresentaremos uma síntese do livro, à qual se seguirá uma apreciação crítica.
1. O livro: aspectos positivos
Pode-se dizer que a obra compreende duas partes. A primeira expõe o modo como a sexualidade tem sido considerada através dos séculos (págs. 16-44) ; depois do que aborda os aspectos biológicos (pp. 45-52), sociológicos (págs. 53-74), psicológicos (págs. 75-103), religiosos (págs. 105-116) e filosóficos (págs. 117-136) da sexualidade. A segunda parte é propriamente de índole ética, voltando-se para as diversas facetas da problemática sexual: homossexualismo, relações pré-matrimoniais, masturbação, etc.
Em sua primeira parte, a obra tem passagens interessantes, por apresentar a sexualidade no contexto das ciências humanas - o que não acontece sempre nos manuais de Ética. Por exemplo, merecem realce:
1) as ponderações sobre o pudor ou a defesa da intimidade pessoal (págs. 158-161) ; o autor mostra que esta é natural e espontânea ao homem, de modo que qualquer campanha nudista violenta o ser humano:
"Creio que o homem dificilmente abandonará o uso da veste. Um excesso de estímulos costuma provocar uma inibição do respectivo centro sensorial. A monotonia do som provoca o sono. Excesso de estímulos eróticos também causa inibição... Uma das funções da veste é, portanto, criar uma certa distância e conservar uma salutar tensão entre os sexos... (A veste) é sempre um sinal do estar-em-relação... o que é o dinamismo mesmo da sexualidade" (p. 161).
2) Também são dignas de nota as reflexões sobre a tão propalada necessidade de sexo:
"Observou-se que nem a conduta sexual dos animais se explica só pelo instinto, pelo mecanismo Estímulo-Resposta: há fatores exógenos em jogo, algo de imitação e aprendizagem.
- É impossível sustentar que a necessidade sexual é única. Se é verdade que existem maníacos sexuais, Casanovas e Dom Juans, não é menos verdade que a vida de Buda, de Sócrates, de Jesus de Nazaré, de Ghandi, de Che Guevara, tinha outra fonte inspiradora. Explicar isto como simples 'sublimação' é ridículo.
- Aliás, a sexualidade nem é necessidade. Como já dissemos: ninguém morre por falta de sexo. Pode morrer por falta de afeto. Mare Oraison afirma que o sonho erótico não tem sua origem num excesso de líquido espermático, mas em estímulos exógenos, gravados durante o dia.
A influência exercida por hormônios ou outros estímulos endógenos sobre o desejo sexual humano é muito reduzida, como foi demonstrada por Lederberg (Prêmio Nobel de 1953). Quase independe deste mecanismo. Muito mais determinantes são os estímulos exógenos. Existem culturas muito erotizadas como a nossa hoje, e outras pouco erotizadas, como a dos Dani, pesquisada recentemente por Karl Heider: não há sexo pré-matrimonial nem extra-matrimonial, tampouco se relacionam sexualmente os parceiros nos primeiros dois anos de casamento, nem durante os seis anos posteriores ao parto. Apesar disto, é um povo descontraído e alegre (TIME, 2/08/1976). Conclusões: se e enquanto existe necessidade sexual, ela resulta de condicionamento pessoal e/ou cultural.
- A analogia com a fome não procede. Há muita diferença entre a fome e o desejo sexual. Aquela provém da deficiência de determinados elementos químicos no sangue; esta, se e enquanto endógena, de um acréscimo hormonal; na fome o indivíduo procura livrar-se de uma tensão, no sexo procura exatamente a tensão em vista do relax orgástico; a fome se mata somente com alimentos reais, ao passo que no sexo cabe um papel importante à imaginação e aos estímulos simbólicos" (p. 67s)
Esta passagem é de valor porque dissipa um equívoco muito disseminado na sociedade contemporânea: o uso do sexo seria obrigatório para a conservação da saúde física e mental. Não, diz o autor, baseado em pesquisas fidedignas: a necessidade do sexo provém muito mais do ambiente com seus estímulos provocadores e erotizantes do que de exigências do próprio organismo. Se muitas pessoas cedem ao império do sexo, estão simplesmente cedendo a preconceitos incutidos por falsas teorias e pela propaganda “sexy” que “bombardeia” o cidadão contemporâneo.
3) Merece outrossim referência positiva a explanação que o Pe. Jaime Snoek faz de “sexo-eros-ágape”: considera assim “três etapas na trajetória da humanização do amor, sucessivamente a etapa da atração anônima, a da afinidade psicossomática e a da identificação existência” (p. 150). O autor apresenta assim o amor que quer bem à pessoa do parceiro, e não apenas ao corpo do outro.
4) O autor defende a instituição do matrimônio, pois esta confere objetividade ao amor dos consortes, emancipando-o dos fatores meramente subjetivos e individualistas (simpatia pessoal, fatores econômicos, razões de família...); qualquer tipo de união baseada sobre elementos meramente subjetivos é ameaçada nela instabilidade. As instituições constituem “as formas criadas pelo homem que tornam concreto o elemento psíquico material submetido a flutuações”(p. 72).
5) O celibato é valorizado do ponto de vista sociológico, pois permite aos celibatários uma atuação mais livre e profunda na sociedade: “Seja qual for a motivação, o celibato, principalmente quando institucionalizado, exerce influência importante na sociedade. Aponta para valores transcendentais. Em certos ambientes o asceta-celibatário, como homem de Deus, é o líder natural da comunidade (o pope na Rússia) ... Um clero celibatário, com sua mobilidade, a serviço de um poder central, não deixa de ser também um fator sociológico importante” (p. 65).
Não se deve esquecer, porém, que a motivação, por excelência, do celibato consagrado a Deus provém da mensagem da fé: o Reino de Deus, mediante a vinda de Cristo, foi inaugurado neste mundo, de tal modo que ao cristão interessa estar, o mais possível, livre de vínculos dispensáveis, para dedicar-se inteiramente ao Reino e às suas exigências na terra. Cf. 1Cor 7,25-35.
O leitor descobrirá, no livro em pauta, ainda outras páginas interessantes, que revelam a profundidade com que o autor aborda o tema. Todavia não é possível deixar de apontar os aspectos menos válidos ou mesmo inaceitáveis do ensaio
"É possível que alguém se sinta chocado ao ler o livro. É capaz que muitos discordem dele. Mas é para isso mesmo que ele foi escrito. para ser contestado, criticado, para assim ajudar a descobrir novas pistas" (p. 7).
Vejamos, pois, os pontos controvertidos da obra em foco.
2. Aspectos discutíveis.
Apontaremos dez pontos merecedores de revisão.
2.1. O terceiro princípio básico
Ao iniciar a segunda parte ou o estudo da Ética sexual propriamente dita, o autor propõe cinco princípios básicos da moralidade sexual:
1) Existe obrigação geral de crescer para a maturidade afetivo-sexual, em abertura e reciprocidade.
2) O ato sexual encontra na situação conjugal, e somente nela, condições ideais para a sua realização.
3) Se bem que a situação conjugal represente o ideal ético, isto não quer dizer que formas imperfeitas de linguagem sexual não possam ser humanizantes e, portanto, moralmente boas, desde que tentem 'expressar o melhor que o sujeito aqui e agora consegue alcançar, por causa dos seus condicionamentos e limitações.
4) É imoral qualquer forma de “pornéia” (sexo por divertimento, por dinheiro, sexo sem compromisso, sem amor).
5) É imoral toda quebra de fidelidade conjugal.
Precisamente o terceiro princípio, como reconhece o autor, “abre caminho para a revisão de algumas normas mais concretas” (p. 146).
Examinemos atentamente como se dá tal abertura; para tanto, consideraremos o ponto de partida dessa abertura e as conclusões que daí tira o autor.
2.2. Lei natural ou concepção personalista?
O Pe. Snoek rejeita o conceito clássico de lei natural. Esta seria a lei do próprio Criador e obrigaria a pessoa humana a respeitar sempre a natureza e suas funções características. Em conseqüência da lei natural, estão condenadas as práticas homossexuais, a contracepção, a masturbação, as relações sexuais fora do matrimônio. Os adversários da lei natural alegam que as normas éticas daí decorrentes são fisicistas, fixistas, essencialistas...
Em contra-posição, o autor defende uma ética personalista. Julga que a pessoa humana é uma possibilidade que pede realização, um esboço que deve ser elaborado, contornos que hão de ser preenchidos... “O empenho pessoal, a intencionalidade, a subjetividade, o existencial são indispensáveis. É impossível definir o bem e o mal de qualquer comportamento concreto sem referência ao sujeito” (p. 144). Em conseqüência, o autor propõe uma ética teleológica, isto é, inspirada pela dinâmica da tendência ou um objetivo a ser alcançado. A ética teleológica deduz normas a partir da inserção existencial do agir na realidade concreta, com toda a seqüela de efeitos (conseqüencialismo) (págs. 144s).
Destas premissas se segue que muitas das posições firmes da ética clássica se tornam mutáveis, porque a tendência da pessoa ao seu telos é algo de evolutivo. Eis alguns dos pontos que, de modo especial, são abalados na nova perspectiva.
2.3. Homossexualismo
O homossexualismo é nitidamente considerado como anomalia, (cf. págs. 277. 285). Não obstante, de acordo com as suas premissas, Jaime Snoek julga que “as pessoas homossexuais não procedem mal se, dentro das suas limitações, tentam dar à sua estrutura irreversível uma expressão adequada, com dignidade e respeito”(p.'285).
A justificativa de tal posição é a seguinte:
"Não resta dúvida de que a sexualidade só alcança sua plena expansão em reciprocidade com um parceiro do outro sexo. Mas onde este ideal, por força maior, não é possível, onde o celibato é impraticável - a própria estrutura homossexual, que não encontra nenhuma identificação na cultura, torna o desejo sexual mais incontrolável - onde concretamente a alternativa é entre contatos epidérmicos, degradantes, ou uma relação amorosa na qual se pode atingir pelo menos um certo grau de humanidade, alguma companhia na solidão, algum sentido para a vida e para o trabalho, este relacionamento passa a ter um sentido positivo. Evidentemente, não é o perfeito, é um balbuciar. Mas, afinal, estão fazendo o que podem, do melhor modo possível. - É bem possível que a linguagem erótica entre João e José, que são homossexuais. seja mais comunicativa do que entre Pedro e Margarida, que constituem um casal normal. Masters e Johnson constataram que entre eles existe muitas vezes, mais ternura do que entre ele e ela" (p. 284).
Relações sexuais pré-cerimoniais (RSPC)
RSPC são as que ocorrem entre noivos decididos a se casar entre si, mas ainda não comprometidos pelo cerimonial sacramental e jurídico do casamento. Jaime Snoek distingue tal tipo de relações sexuais daquelas que ocorrem entre namorados e outras pessoas que ainda não estejam firmemente dispostas a se casar; este outro tipo é chamado “relações sexuais pré-matrimoniais» (RSPM).
As RSPC são tidas como legítimas pelo Pe. J. Snoek, ficando a cargo dos noivos “ponderar se realmente o adiamento das relações sexuais os prejudica tanto que devam passar além da norma”. Por conseguinte, o valor moral das RSPC dependerá da avaliação subjetiva das pessoas interessadas; em alguns casos tal comportamento será legítimo; em outros não.
Quanto às RSPM, o autor as rejeita, porque “relações sexuais, na fase de namoro, além de representarem uma espécie de mentira existencial, por significarem uma doação total que na realidade ainda não é possível, expõem os parceiros, sobretudo ela, ao risco de perderem a identidade”(p. 250).
Merece apoio a rica e séria argumentação que o Pe. Snoek apresenta para dissuadir do relacionamento sexual os namorados; vejam-se as págs. 248-252, dignas de ser lidas atentamente. Apenas desejamos levantar uma pergunta: o Pe. Snoek afirma que nas relações sexuais pré-matrimoniais os parceiros “são obrigados a excluir radicalmente o filho, privando assim o ato do seu elemento mais altruísta, mais significante, qual seja o anseio criador” (p. 251). Ora não se dá o mesmo entre noivos? Será que os noivos não excluem artificialmente a possibilidade de prole quando têm relações sexuais entre si? Por que então o Pe. Snoek não rejeita outrossim as RSPC?
2.5. Masturbação
"Propomos a seguinte formulação: enquanto a masturbação, como expressão apropriada de determinada fase evolutiva, contribui para o amadurecimento afetivo sexual, é moralmente boa, ainda que imperfeita" (p. 266).
Verdade é que Snoek reconhece que a masturbação pode também significar fixação e regressão; perderia seu caráter evolutivo teleológico, para se tornar um ato portador da sua própria justificativa; seria então antinatural, prejudicial e anti-ética; tal se dá “quando adultos praticam a masturbação habitualmente, a não ser que sofram de alguma anomalia mais séria” (p. 268).
2.6. Fantasias sexuais
As divagações conscientes e voluntárias da fantasia pelo setor do erotismo sempre foram pela clássica Moral consideradas pecaminosas, pois são aptas a excitar sexualmente o sujeito, provocando tentações, remotas ou próximas, ao pecado.
Ora o Pe. Snoek propõe outra sentença: na medida em que a imaginação erótica possa contribuir para o amadurecimento afetivo da pessoa, é moralmente boa. A integração da sexualidade se faz também pelo devaneio da imaginação, desde que submetido a certa vigilância, para que não redunde em fuga da realidade.
Análogo é o Juízo a respeito da pornografia, que vem a ser um fator excitante da fantasia. Se as imaginações eróticas não são más, o recurso aos livros e panfletos que alimentam a imaginação também não será mau, desde que controlado para não implicar escapismo. “Na busca honesta de integração norma alguma poderá substituir o discernimento pessoal” (p. 176).
2.7. O uso de anticoncepcionais
O autor é contrário á encíclica Humanae Vitae de Paulo VI, que, embora tenha reconhecido a necessidade do planejamento familiar, só quis admitir meios naturais ou a continência periódica para executar tal intento. O documento de Paulo VI significaria “um retrocesso para uma visão biológica da sexualidade e da lei natural” (p. 210). Poderá mesmo, segundo certos autores (que Snoek cita sem objeção alguma), haver motivos sérios para que um casal exclua por completo a procriação - o que contraria o Código de Direito Canônico (can. 1086, § 3) : se tal exclusão antecede o contrato matrimonial, diz o Código, o matrimônio assim contraído é nulo. Cf. p. 212.
Na prática do anticoncepcionismo, Snoek admite a própria esterilização cirúrgica em muito sérios casos, consciente de que a S. Congregação para a Doutrina da Fé se opôs explicitamente a tal intervenção.
O DIU (dispositivo intra-uterino) é tolerado pelo autor: “não se deve condenar aquelas que usam o DIU” (p. 228).
Com respeito à pílula anticoncepcional, Snoek menciona os seus efeitos negativos no plano da saúde, embora não a condene do ponto de vista ético; cf. p. 221. Poder-se-ia mesmo admitir que certos Governos “forneçam meios anticoncepcionais para garantir a paternidade responsável” (p. 206).
2.8. Fecundação artificial
No tocante à fecundação artificial homóloga ou inseminação artificial com esperma do próprio marido (IAM), o autor observa: “Estamos chegando a um pensamento bastante comum entre os moralistas em aceitar a viabilidade ética da IAM” (p. 230). Quanto à fecundação artificial heteróloga ou com esperma de doador (IAD), que supõe a participação de um terceiro, Snoek se recusa a tomar posição: “Não é hora nem de fechar nem de abrir o sinal. Até se esclarecer melhor, há de se ficar bem no amarelo” (p. 231).
Com referência à fecundação in vitro ou ao bebê de proveta, observa Jaime Snoek:
"Concluiria o seguinte: Existe uma certa convergência no pensamento científico e ético-religioso. Resume-se numa atitude de expectativa e de cautela. A tendência é de não condenar o processo a priori. Embora se concorde em princípio, sente-se o perigo de derrapagem. Por isso recomenda-se muito cuidado" (p. 233).
2.9. Indissolubilidade do matrimônio
O autor aceita a legitimidade do divórcio em certos casos, como se depreende da secção abaixo:
"A lei deve proteger a estabilidade do casamento do melhor modo possível. A exclusão total do divórcio nem sempre é a melhor proteção... Certa concessão às limitações humanas é quase inevitável, e não há nenhum mal nisto. O problema é que, uma vez existindo as malhas da lei, muita gente vai passar por elas. Contudo este risco, que é real, representa um mal menor" (p. 185).
Todavia o autor acrescenta: “Quanto ao divórcio na Igreja, isto é um outro problema” (p. 185).
Esta observação final é ambígua, na mais suave das qualificações: supõe que o matrimônio não seja indissolúvel por sua própria índole ou pela natureza mesma do contrato - o que contradiz às teses da filosofia clássica.
2.10. Outras formas de união
Snoek menciona o “casamento incompleto”, isto é, a união que, por algum. motivo, não seja legítima perante a Igreja: “Ou se trata de simples ausência de oficialização, em geral por motivos de pobreza ligada à ignorância e indolência; ou a oficialização é positivamente recusada por desprezo à instituição; ou então a oficialização é impossível por causa de um impedimento canônico” (p. 194).
Diante de tais situações, a Igreja tem apregoado zelo pastoral, pedindo aos sacerdotes e seus colaboradores, acompanhem as famílias que assim se constituem, a fim de que não percam a fé nem o contato com a Igreja. Isto, porém, não quer dizer que se devam reconhecer tais uniões como legítimas, facilitando aos respectivos parceiros o acesso aos sacramentos. Esta reserva é explicitamente afirmada pelo S. Padre João Paulo II
Mais estranha ainda é a posição do Pe. Snoek frente à chamada “vida comunal”, ou seja, diante de comunas em que o relacionamento emotivo/sexual é livre, podendo haver relações sexuais dentro de um trio ou de um grupo maior. Snoek cita a opinião de Rogers e outros estudiosos que julgam difícil o desenvolvimento de amor autêntico e duradouro dentro de tais comunas... Mas acrescenta: “O importante é que nem eles nem Rogers fecham a questão. É pelos frutos que a curto e longo prazo se conhece a árvore. Na busca da norma ética é necessário deixar margem para experimentação. Ainda que pessoalmente não acreditemos muito na viabilidade a longo prazo destas comunas, nem por isso podemos condenar toda tentativa honesta como necessariamente (intrinsecamente) antiética” (p.197).
Esta é, sem dúvida, uma das opiniões mais estranhas professadas em todo o livro focalizado! Embora sustente tal opinião, o autor, logo a seguir, condena o sexo livre, pois este significa apenas “compensação e passa-tempo” Na verdade, pode-se crer que quem rejeita o casamento monogâmico estável, professa uma premissa da qual se pode deduzir a legitimação de qualquer forma de união sexual, seja comunal, seja livre.
Outros pontos portadores de novidade se poderiam ainda catalogar no livro
3. Uma avaliações crítica
Antes do mais, proporemos uma observação de índole geral.
3.1. Observação geral
Verifica-se que o critério evocado pelo Pe. Jaime Snoek para julgar o comportamento sexual e suas facetas é a realização afetiva da pessoa, ou a integração da sexualidade no conjunto dos valores do ser humano. É critério dito “dinâmico” e não estático ou fisicista; a pessoa humana com seu potencial evolutivo parece assim mais respeitada. Cf. págs. 144. 197.
A propósito ponderamos:
Não se duvida de que a consideração da pessoa e das suas sucessivas fases evolutivas seja imprescindível na avaliação moral do comportamento humano. A Ética clássica ensina que a moralidade de um ato se deriva tanto do objeto como da finalidade visada pelo sujeito (finis agentis) e das circunstâncias do ato (quis, quid, ubi, quibus auxilia, cur, quomodo, quando - quem, o quê, onde, com que meios, por quê?, como, quando). Todavia podemos dizer que o Pe. Snoek vai longe demais na ponderação das situações, arriscando-se a cair num certo relativismo ético ou na ética da situação. Com efeito, se as situações evoluem sempre, a avaliação moral do comportamento seguirá sempre critérios evolutivos e mutáveis. É o que o próprio autor reconhece ao dizer: “Formas imperfeitas de linguagem sexual podem ser... moralmente boas desde que tentem expressar o melhor que o sujeito aqui e agora consegue alcançar por causa das suas limitações” (p. 146).
Quem aceita tal principio, verifica que a fronteira entre o bem e o mal moral se torna turva ou indistinta; o que para uns é mau, para outros será bom. Daí a legitimação, ao menos em certas circunstâncias, da masturbação, do homossexualismo, das relações sexuais pré-cerimoniais (o que significa: pré-matrimoniais), do divórcio no plano civil, da vida comunal (ou do casamento em trio ou em grupo), etc. Se o critério é o presumido “desenvolvimento da personalidade”, caímos num terreno extremamente subjetivo, em que tudo pode ser “envernizado” ou legitimado, até as maiores aberrações, sob o pretexto de que concorrem para o presumido amadurecimento da personalidade de tal ou tal sujeito. Este pode tornar-se vítima das suas ilusões; julgando estar atendendo ao ritmo da evolução de sua personalidade, poderá estar condescendendo “molemente” com os seus instintos animalescos. A nova Ética, em vez de ajudar o ser humano a se tornar mais “gente”, poderá contribuir para torná-lo ainda mais joguete de suas paixões instintivas e infra-racionais.
Por isto cremos que há absoluta necessidade de critérios objetivos para se discernirem o bem e o mal éticos. Esses critérios objetivos hão de ser os ditames da natureza ou a lei natural. Esta ensina que o homossexualismo é uma aberração e, por isto, praticá-lo consciente e voluntariamente é mal moral; a masturbação é uma forma de narcisismo ou de uso do sexo a sós, o que também é antinatural e, por isto, pecaminoso ... E assim em outros casos.
Observemos bem: para levar em conta os elementos pessoais que caracterizam o comportamento de alguém, não é necessário renegar a objetividade e a perenidade das normas morais; sim, todo ato é em si, ou objetivamente falando, bom ou mau do ponto de vista ético. Subjetivamente falando, porém, considerando-se a pessoa que age, e suas intenções, o mesmo ato pode admitir outra qualificação moral. Assim masturbar-se é, em si ou objetivamente falando, um ato moralmente mau; todavia num adolescente que ignore tal qualificação do ato ou numa pessoa obcecada, esse ato, em si mau, poderá não ser tal (porque, no caso concreto, terá faltado ou o conhecimento de causa ou a vontade deliberada).
Não há, pois, como condescender com práticas antinaturais, embora isto custe sacrifício e renúncia, tornando a Ética mais severa. Aliás, note-se que Ética severa não é Ética dualista, masoquista, contrária ao prazer e ao sexo. Uma Ética severa pode afirmar que o sexo com seus prazeres é legítimo, desde que praticado segundo os ditames da natureza. O Pe. Snoek caricatura um tanto a Ética clássica como se fosse avessa ao prazer; todavia o próprio Pe. Snoek bem sabe que é possível seguir uma Ética inspirada pela lei natural, sem recusar o sexo e o prazer legítimo.
É de se observar outrossim que a renúncia se torna imprescindível num programa de vida ética ou virtuosa... Não somente a renúncia imposta pelas circunstâncias da vida, mas também a renúncia procurada voluntariamente: a ascese há de ser praticada espontaneamente. Com efeito; se alguém sempre diz Sim aos seus impulsos, por mais legítimos que sejam, dificilmente dirá Não a um impulso ilegítimo, como alguém que não freia à distância não consegue frear quando colocado diretamente diante de sinal vermelho. Por isto merecem revisão as palavras do autor à p. 116: “A própria vida se incumbe de proporcionar ocasiões para a cruz e a renúncia. Não há necessidade de procurá-las”. Afirmamos, ao contrário, que existe, sim, tal necessidade dentro das possibilidades de saúde de cada cristão, como para o atleta existe a necessidade de treinar mesmo quando não está jogando “para valer”; se ele não treina, perderá certamente diante do primeiro adversário com que se defrontar.
Aliás, de maneira geral os moralistas concordam em afirmar que o fim (bom) não justifica os meios (maus). Se assim é, não posso dizer que, em vista de um fim bom candidamente almejado (como é o amadurecimento de minha personalidade), me é lícito praticar atos em si maus ou aberrantes (como a masturbação ou a prática homossexual); tais atos antiéticos não se tornam, como tais, éticos pelo fato de serem praticados por quem se acha ainda a caminho ou na dinâmica da formação de sua personalidade.
As ponderações até aqui propostas levam-nos a rejeitar as sentenças “revolucionárias” do livro em foco recenseadas sob o título 2 deste artigo. Expusemo-las objetivamente sem desfigurar a mente do autor. Vemos, porém, que não podem ser sustentadas nem mesmo a título de ensaio de estudo.
Uma vez considerado o princípio básico do livro em foco, detenhamo-nos ainda sobre alguns pontos particulares da obra.
3.2. Alguns tópicos particulares
Deter-nos-emos ainda sobre dois pontos importantes.
3.2.1. O conceito de castidade
Diz o autor muito sabiamente: “Castidade é sensualidade integrada no nível de pessoa. Longe de ser mutilação, a castidade representa plenitude da sexualidade” (p. 154). Esta definição merece aplausos desde que bem entendida: castidade vem a ser o uso do sexo dentro dos parâmetros legítimos, estabelecidos pelas leis da natureza, ou seja, em termos heterossexuais e dentro do consórcio matrimonial legitimamente sancionado pela instituição religiosa.
Observa-se, porém, que o Pe. Snoek tende a aproximar castidade na Tradição cristã e dualismo; assim quando se refere a S. Agostinho (p. 25) e S. Jerônimo (p. 25).. . - O avanço da devoção mariana terá pago algum tributo à corrente maniqueista (ef. p. 30) .. . Ora não queremos negar que a filosofia grega, mediante o platonismo e o estoicismo, tenha influenciado pensadores cristãos. Mas, doutro lado, não podemos esquecer que já São Paulo, como intérprete singularmente abalizado da mensagem evangélica, preconizava a vida una ou celibatária a partir de premissas genuinamente cristãs: o tempo se fez breve, dizia o Apóstolo, pois a eternidade e os valores definitivos entraram nos moldes do tempo; em conseqüência, todo tempo é pouco ou não há mais tempo para atender à presença do Eterno presente; por isto é preciso que o cristão concentre a sua atenção nas coisas de Deus e, se possível (com a graça do Senhor), viva a vida una para não se dispersar entre os afazeres da vida conjugal; cf. 1Cor 7,25-35. Esta motivação, totalmente nova no ano de 56, em que foi proferida pela primeira vez, forneceu a inspiração às virgens e aos celibatários que desde os tempos do Apóstolo se fizeram tais por amor do Reino dos céus. Nada traz de dualista ou maniqueu, mas brota da consciência que o cristão tem, de estar vivendo a última hora da história da salvação.
Ainda a propósito lembramos que há diferença entre dualismo e dualidade. Aquele afirma o antagonismo entre duas partes postas em confronto; assim o bem e o mal, a luz e as trevas constituem dualismos. Ao contrário, dualidade supõe distinção e separabilidade, não, porém, conflito ou antagonismo entre dois termos: assim corpo e alma, homem e mulher constituem dualidades, não, porém, dualismo... Ora o livro em foco parece não observar bem tal distinção; posso afirmar distinção entre corpo e alma e a necessidade de que a inteligência e a vontade rejam os sentidos, sem cair no maniqueísmo dualista; cf. p. 215.
3.2.2. Lei natural: sim ou não?
A mais importante objeção contra a lei natural afirma que o apregoado respeito à natureza e às leis naturais implica atrelar a pessoa humana, que é dotada de inteligência e criatividade, às leis cegas da biologia. Verifica-se precisamente que hoje em dia a inteligência humana altera o curso natural do seu meio ambiente, ou seja, os leitos dos rios, as faixas do litoral, as elevações montanhosas... E isto, com aplausos, às vezes, por parte da própria consciência cristã. Como então não lhe seria lícito dominar o curso das suas funções sexuais, subordinando-as a um planejamento racional?
-- Em resposta, observamos:
O termo “natureza” é, na verdade, polivalente. Em nossos dias, assume freqüentemente sentido materialista, “coisista”. A natureza é, para muitos, o conjunto do mundo material, bruto, regido por leis cegas, no qual o homem está imerso; em conseqüência, opõem à natureza o homem, que é um ser original inteligente, livre, criativo, imprevisível. A natureza vem a ser então a contraparte do espírito, da razão, dá liberdade... Falar de lei natural, no homem, seria ignorar a índole especifica espiritual da liberdade e, por conseguinte, da moralidade. Seria cair numa Moral “ coisista” ou materialista.
Ademais o homem de hoje, impregnado de mentalidade tecnicista, sente-se distante da natureza. Esta, para ele, vem a ser o indômito, o transformável, que está em seu poder e que não lhe pode ditar leis; ele é que lhe imprimirá as normas concebidas pela sua inteligência.
São estas premissas que tornam difícil ao homem de hoje a compreensão do respeito pela natureza e pelas leis naturais. - Eis por que nos compete explicar que a Moral cristã, ao preconizar o valor das leis naturais, não tenciona subordinar o ser inteligente a leis cegas ou à trama de elementos infra-humanos.
Com efeito. Quando a Ética cristã apresenta a natureza humana como critério de comportamento, tem em vista a essência do homem, essência que é permanente, sempre igual a si mesma, não só composta de espírito, mas também de matéria ou de corporeidade. A pessoa humana não é um valor que se opõe à realidade corpórea; ao contrário, ela só subsiste na realidade corpórea do homem. Disto se segue que os valores humanos e pessoais, para se afirmar, não necessitam de negar os aspectos fisiológicos do ser humano, mas, ao contrário, os assumem, enobrecendo-os. Ora tal enobrecimento só é possível se há respeito às leis próprias da fisiologia humana.
Por conseguinte, aqueles que tendem a opor natureza e pessoa, natureza e liberdade, natureza e espírito, de certo modo cedem ao dualismo, que opõe matéria e espírito como se fossem antagônicos entre si. A autêntica noção de pessoa humana implica aceitação humilde da corporeidade e das leis fisiológicas.
Vê-se, pois, que o homem não pode considerar o seu corpo como considera os demais corpos da natureza física. Se o homem trata estes últimos a seu bel-prazer, removendo montanhas, desviando rios, aterrando baías, não lhe é licito tratar o seu corpo simplesmente como bem lhe parece. Na verdade, o corpo humano não é como os demais corpos; ele é parte integrante de um todo, que é a pessoa humana. O corpo faz parte da personalidade e traz a esta as suas características próprias. Ele não é mero instrumento de uma pessoa puramente espiritual. Verdade é que a parte mais nobre da pessoa é a alma espiritual, mas a pessoa só subsiste mediante a união de corpo e alma.
Vê-se, pois, que a sexualidade, embora seja comum ao homem, aos animais irracionais e aos vegetais, assume no homem dignidade e significado novos; a sua estrutura biológica e fisiológica não é destruída nem contraditada, mas, devidamente respeitada, é posta a serviço da plena realização da pessoa humana.
Em conclusão, diremos: o livro do Pe. Jaime Snoek em pauta sugere matéria para amplas ponderações. Temos que nos limitar, verificando mais uma vez que se trata de ensaio proposto ao público para ser debatido, e não da última palavra da Ética cristã a respeito de sexualidade. - Possa o público compreender este caráter de ensaio da obra e lê-Ia com o olho crítico que ela requer, a fim de não se deixar iludir como se as proposições do livro formulassem todas a última e autêntica palavra da Moral católica!
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