destituídos de preconceitos.
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Os debates sobre o filme "A Última Tentação de Cristo" abordaram mais de uma vez a questão da origem e da veracidade dos Evangelhos. Estes foram considerados como pouco fidedignos, pois oriundos a grande distância da vida terrestre e da morte de Jesus; os decênios terão ocasionado a inserção de muitas lendas e ficções na verdadeira história de Jesus.
A propósito já foi publicado um artigo em PR 318/1988, pp. 489-501, que mostra, mediante critérios objetivos e científicos, a continuidade entre a pregação de Jesus, a dos Apóstolos e a redação dos Evangelhos no decorrer mesmo do século I. A tese de que os Evangelhos datam do século II ou estão distanciados de Jesus por um hiato de decênios é a dos racionalistas do século passado; já foi superada pelo próprio progresso do estudo.
A ORIGEM DOS EVANGELHOS
Uma das últimas descobertas de papirologia e paleografia leva alguns estudiosos a crer que o Evangelho segundo Marcos (Mc, o mais antigo dos que hoje temos) data do quarto decênio (40-50) da era cristã. Esta proposição, surpreendente como é, tem suscitado hesitações da parte de outros especialistas. Mas vai aumentando o número dos que a professam após minucioso estudo da questão. Ora, se Mc data do quarto decênio da era cristã, muito mais firme ainda se torna a credibilidade do texto sagrado.
A respeito desta tese muito recente já foi publicado um artigo em PR 288/1986, pp. 194-200[1]. Continuamos a estudá-la valendo-nos de novos estudos do autor da descoberta: o Pe. José O'Callaghan S.J., professor do Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Escreveu em La Civiltà Cattolica de 5/11/88, fasc. 3321, pp. 268-272, a comunicação "Verso le origini del Nuovo Testamento", cujo conteúdo vai, a seguir, transmitido aos nossos leitores.
O progresso da paleografia:
Os mais antigos manuscritos dos Evangelhos são papiros datados do século II (os autógrafos se perderam, dada a fragilidade do material utilizado pelos autores sagrados). Tais papiros se acham conservados nas Bibliotecas de grandes cidades (Londres, Paris, Viena, Berlim, Leningrado, Cairo, Nova Iorque...), onde são acessíveis aos estudiosos.
Acontece que na década de 1930 o pesquisador inglês C.H. Roberts descobriu o mais antigo dos manuscritos até então conhecido[2] : era um pequeno fragmento de 8,9 cm por 5,8cm; de aparência insignificante, foi comprado com outros papiros no Egito em 1920; numa das faces desse fragmento se encontra o texto de Jo 18,31-33, e na outra face o de Jo 18,37s. Está guardado no John Rylands Library de Manchester. Os papirólogos atribuíram as letras desse fragmento aos primeiros decênios do século 11, mais precisamente ao ano de 125. As conseqüências deste achado foram de ,vasto alcance: o papiro fora encontrado no Egito, a mais de 1.000 km da região onde fora escrito o autógrafo de João; vê-se então que no Egito se lia o Evangelho de João poucos decênios após a morte do Apóstolo. Consequentemente os Evangelhos de Mt, Mc e Lc, anteriores ao de João, foram reconhecidos, com novo vigor, como obras da segunda metade do século I.
Em 1972 os estudos bíblicos foram sacudidos por nova descoberta: na Gruta 7 de Qumran, a N.O. do Mar Morto, foram encontrados pelo Pe. O'Callaghan S.J. papiros do Novo Testamento, entre os quais um fragmento de Marcos (6,52-53), dito 7Q 5; este foi atribuído ao ano de 50, conforme cuidadosos estudos do descobridor. Todavia esta conclusão foi tida como precipitada e inaceitável por outros especialistas.
O caso parecia encerrado pela crítica contestatária, quando em 1984 o professor C.P. Thiede, de Berlim, retomou os estudos, debruçando-se sobre os papiros originais em Jerusalém; em conclusão, confirmou a sentença de O'Callaghan; os resultados de suas pesquisas estão expostos no livro Die klteste Evangelien-Handschrift? Das Markus-Fragment von Qumran und die Anfãnge der schriftlichen Ueberlieferung des Neuen Testaments (Wuppertal 1986); na tradução italiana dessa obra, p. 42, lê-se:
'Assim resumindo, foram aduzidas todas as provas positivas em favor da exatidão da datação; além disto, foram eliminadas todas as possíveis objeções. Na base das regras do trabalho paleográfico e da crítica do texto, é certo que 7Q 5 é Mc 6,52-53, o mais antigo fragmento conservado de um texto do Novo Testamento, escrito por volta de 50, e certamente antes de 68'
Em tal livro, encontra-se também o parecer do Dr. H. Hunger, outrora Diretor da coleção de Papiros da Biblioteca Nacional Austríaca e professor emérito da Universidade de Viena. Depois de ter estudado o livro de Thiede, H. Hunger afirma:
"O autor examinou escrupulosamente todos os principais problemas relativos ao fragmento 70 5 de Qumran e, a meu ver, dissipou todas as possíveis dúvidas.
A identificação com Mc 6,52-53 é convincente".
O mesmo professor publicou uma longa recensão do livro de Thiede, concluindo com estas palavras: "Assim é de esperar que, com a presente publicação, comece finalmente a impor-se a ponderada opinião referente a 7Q 5" (Tyche 2,1988, p. 280).
A obra de Thiede mereceu ainda outros comentários, dos quais são aqui citados alguns: Mons. G. Ghiberti, Presidente da Associação Bíblica Italiana: "Embora eu não seja papirólogo, estou muito favoravelmente impressionado pelo conjunto de argumentos aduzidos para identificar 70 5" (Aegyptus 66, 1986, p. 298).
O Prof. H. Staudinger, da Universidade de Paderborn (Alemanha) e Diretor do Instituto para o Estudo dos Fundamentos da Teoria das Ciências, aos 27/03/88, escreveu na Frankfurter Allgemeine Zeitung: "A discussão científica internacional mostra, com sempre maior clareza, que não se pode duvidar seriamente da interpretação de O'Callaghan".
Ao lado dos estudos sobre 7Q 5, outros foram-se desenvolvendo no campo papirológico dos últimos anos, vindo a corroborar a tese da antigüidade dos Evangelhos.
2. Outros Estudos
Em 1988 o Prof. Y. K. Kim publicou outro artigo significativo: Paleographical Dating of P46 to the late First Century, in Biblica 69 (1988), pp. 248-257. Este escrito resulta de dois anos de trabalho e consulta a eminentes especialistas ingleses como R. Coles, de Oxford; P. Parson, Professor da mesma Universidade de Oxford e Vice-Presidente da Associação Internacional de Papirólogos; M. Hengel e C. F. D. Moule, eminentes professores. - Ora em tal artigo o Prof. Kim demonstra que o Papiro46 (P46) da Coleção Chester Beatty, portador de grande parte das epístolas de S. Paulo, não data de 200 aproximadamente (como se pensava), mas do fim do século I.
Uma das razões evocadas pelo mestre é que as letras do P46 e o seu estilo caligráfico não têm paralelo algum após o século I d.C.: a forma das finais na parte inferior das letras pede datação anterior; algumas letras (especialmente o b e o y) são de feitura antiga; no estilo paleográfico de P46não se vêem vestígios dos ornamentos e da decoração típicos do século II. A comparação com outro pequeno papiro do século III (que contém Fm 13-15 e 24-25) evidencia que o estilo caligráfico de P46 é muito anterior. Além destas razões paleográficas, Kim aduziu outras de ordem fonética e de gramática, que postulam a datação de fins do século I.
Ora note-se que, no caso de P46, não se trata de um fragmento, como nos casos atrás citados, mas de um código que consta de 86 folhas, isto é, 172 páginas (das quais parte se encontra em Dublin, e parte em Michigan); são folhas muito bem conservadas (com poucas exceções), que apresentam epístolas de São Paulo na ordem seguinte: Romanos, Hebreus, 1ª. e 2ª. aos Coríntios, Efésios, Gálatas, Filipenses, Colossenses e 19 aos Tessalonicenses. Tal código foi comprado por volta de 1930 num mercado de antiquários no Egito; é obscura a sua origem, mas provavelmente devia encontrar-se entre as ruínas de alguma igreja ou de um mosteiro cristão, talvez da região de El Fayum (Egito).
3. Conclusão
Vê-se que o progresso dos estudos vai abrindo caminho para que os estudiosos se aproximem dos autógrafos do Novo Testamento. - Tais estudos e suas conclusões não são inspirados por tendências apologéticas preconcebidas (defender a antiguidade dos Evangelhos frente aos racionalistas); isto não seria justificável aos olhos da ciência.
Apesar deste recuo de datas em direção do tempo de pregação de Jesus, deve-se admitir sempre que Jesus não escreveu nem mandou que os Apóstolos escrevessem; por isto ficará sempre um intervalo (preenchido pela pregação oral) entre Jesus e a redação dos Evangelhos; esse intervalo, porém, vai-se tornando mais breve aos olhos do estudioso à medida que se vão descobrindo antigos manuscritos do Evangelho; há mesmo quem julgue que no segundo decênio após a morte de Cristo (na década de 40) se começou a redigir por escrito a pregação de Jesus continuada pelos Apóstolos. Ver C M. Martini, Testi neotestamentari tra i manoscritti dei deserto di Giuda? em La Civiltà Cattolica 1972, pp. 156-158.
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NOTAS:
[1] Muito se recomenda a leitura desse artigo, pois oferece dados minuciosos sobre a descoberta, que levou a recuar a datação de Mc para o quarto decênio.
[2] C.H. Roberts, An Unpublished Fragment of the Fourth Gospel in the John Rylands
Library. Manchester 1935.
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