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sexta-feira, 16 de julho de 2010

Sacerdotes: pedofilia

Segue carta do padre salesiano uruguaio Martín Lasarte, que trabalha em Angola e endereçada ao jornal norte-americano The New York Times. Nela expressa seus sentimentos diante da onda midiática despertada pelos abusos sexuais de alguns sacerdotes e surpreende-se com o desinteresse que o trabalho de milhares religiosos suscita nos meios de comunicação.
 
Querido irmão e irmã jornalista: sou um simples sacerdote católico. Sinto-me orgulhoso e feliz com a minha vocação. Há vinte anos vivo em Angola como missionário. Sinto grande dor pelo profundo mal que pessoas, que deveriam ser sinais do amor de Deus, sejam um punhal na vida de inocentes. Não há palavras que justifiquem estes atos. Não há dúvida de que a Igreja só pode estar do lado dos mais frágeis, dos mais indefesos. Portanto, todas as medidas que sejam tomadas para a proteção e prevenção da dignidade das crianças será sempre uma prioridade absoluta.
Vejo em muitos meios de informação, sobretudo em vosso jornal, a ampliação do tema de forma excitante, investigando detalhadamente a vida de algum sacerdote pedófilo. Assim aparece um de uma cidade dos Estados Unidos, da década de 70, outro na Austrália dos anos 80 e assim por diante, outros casos mais recentes...

Certamente, tudo condenável! Algumas matérias jornalísticas são ponderadas e equilibradas, outras exageradas, cheias de preconceitos e até ódio.

É curiosa a pouca notícia e desinteresse por milhares de sacerdotes que consomem a sua vida no serviço de milhões de crianças, de adolescentes e dos mais desfavorecidos pelos quatro cantos do mundo!

Penso que ao vosso meio de informação não interessa que eu precisei transportar, por caminhos minados, em 2002, muitas crianças desnutridas de Cangumbe a Lwena (Angola), pois nem o governo se dispunha a isso e as ONGs não estavam autorizadas; que tive que enterrar dezenas de pequenos mortos entre os deslocados de guerra e os que retornaram; que tenhamos salvo a vida de milhares de pessoas no Moxico com apenas um único posto médico em 90.000 km2, assim como com a distribuição de alimentos e sementes; que tenhamos dado a oportunidade de educação nestes 10 anos e escolas para mais de 110.000 crianças...

Não é do interesse que, com outros sacerdotes, tivemos que socorrer a crise humanitária de cerca de 15.000 pessoas nos aquartelamentos da guerrilha, depois de sua rendição, porque os alimentos do Governo e da ONU não estavam chegando ao seu destino.

Não é notícia que um sacerdote de 75 anos, o padre Roberto, percorra, à noite, a cidade de Luanda curando os meninos de rua, levando-os a uma casa de acolhida, para que se desintoxiquem da gasolina, que alfabetize centenas de presos; que outros sacerdotes, como o padre Stefano, tenham casas de passagem para os menores que sofrem maus tratos e até violências e que procuram um refúgio.

Tampouco que Frei Maiato com seus 80 anos, passe casa por casa confortando os doentes e desesperados.
Não é notícia que mais de 60.000 dos 400.000 sacerdotes e religiosos tenham deixado sua terra natal e sua família para servir os seus irmãos em um leprosário, em hospitais, campos de refugiados, orfanatos para crianças acusadas de feiticeiros ou órfãos de pais que morreram de Aids, em escolas para os mais pobres, em centros de formação profissional, em centros de atenção a soropositivos... ou, sobretudo, em paróquias e missões dando motivações às pessoas para viver e amar.

Não é notícia que meu amigo, o padre Marcos Aurelio, por salvar jovens durante a guerra de Angola, os tenha transportado de Kalulo a Dondo, e ao voltar à sua missão tenha sido metralhado no caminho; que o irmãoFrancisco, com cinco senhoras catequistas, tenham morrido em um acidente na estrada quando iam prestar ajuda nas áreas rurais mais recônditas; que dezenas de missionários em Angola tenham morrido de uma simples malária por falta de atendimento médico; que outros tenham saltado pelos ares por causa de uma mina, ao visitarem o seu pessoal. No cemitério de Kalulo estão os túmulos dos primeiros sacerdotes que chegaram à região... Nenhum passa dos 40 anos.

Não é notícia acompanhar a vida de um Sacerdote “normal” em seu dia a dia, em suas dificuldades e alegrias consumindo sem barulho a sua vida a favor da comunidade que serve. A verdade é que não procuramos ser notícia, mas simplesmente levar a Boa-Notícia, essa notícia que sem estardalhaço começou na noite da Páscoa. Uma árvore que cai faz mais barulho do que uma floresta que cresce.
Não pretendo fazer uma apologia da Igreja e dos sacerdotes. O sacerdote não é nem um herói nem um neurótico. É um homem simples, que com sua humanidade busca seguir Jesus e servir os seus irmãos. Há misérias, pobrezas e fragilidades como em cada ser humano; e também beleza e bondade como em cada criatura...
Insistir de forma obsessiva e perseguidora em um tema perdendo a visão de conjunto cria verdadeiramente caricaturas ofensivas do sacerdócio católico na qual me sinto ofendido.

Só lhe peço, amigo jornalista, que busque a Verdade, inclusive falando do Bem e Beleza. Isso o fará nobre em sua profissão.
 

Em Cristo,

Pe. Martín Lasarte, SDB.

terça-feira, 6 de julho de 2010

Vocação: que se entende por vocação?

(Revista Pergunte e Respondremos, PR 025/1960)


«Que se entende propriamente por vocação? E quais os critérios distintivos de uma vocação?»


«Vocação» é termo que ocorre tanto na linguagem do psicó­logo como na do teólogo. Por isto a nossa resposta explanará primeiramente a vocação em geral, para depois deter-se em aspectos da vocação religiosa ou sacerdotal em particular.


«Vocação» é termo que ocorre tanto na linguagem do psicó­logo como na do teólogo. Por isto a nossa resposta explanará primeiramente a vocação em geral, para depois deter-se em aspectos da vocação religiosa ou sacerdotal em particular.


1. Vocação em geral


1. Por «vocação» entende o psicólogo a inclinação inata da criatura humana para determinada profissão, carreira ou estado de vida: diz-se, com efeito, que alguém tem «vocação de educador, artista, advogado...».


Já este modo de falar cotidiano exprime uma verdade profunda. Assim como todo chamamento supõe uma perso­nalidade que emita esse chamado, assim a vocação do homem para determinado estado de vida supõe uma personalidade que a profira; ora tal personalidade só pode ser o Autor do homem, Deus. A vocação, portanto, vem a ser o eco de Deus a ressoar dentro da alma humana. Está claro que o Senhor, tendo criado todos os homens, assinalou a cada um, desde toda a eternidade, uma tarefa própria a desempenhar no con­junto do universo. E quis que a essa tarefa correspondesse uma inclinação espontânea no homem, para que, assim como o Senhor tudo fez por amor, assim também o homem realize com amor o que ele deve realizar.


A estas considerações acrescenta agora o teólogo: o ser humano não tem apenas um destino natural. Foi elevado à ordem sobrenatural, isto é, chamado pelo Criador para par­ticipar (além de qualquer exigência de sua natureza) da filia­ção divina, o que implica «ver a Deus face a face na eterni­dade». É, portanto, neste plano sobrenatural que o conceito de vocação toma seu sentido pleno. A vocação por excelência vem a ser o chamado misterioso pelo qual Deus se digna atrair o homem à intimidade consigo como a seu Último Fim.


Este chamado geral toma seus aspectos ou modalidades concretas aqui na terra: há a vocação sacerdotal, a vocação religiosa, a vocação conjugal (o matrimônio é, sim, uma ta­refa santa e sobrenatural), modalidades que todas, em última análise, convergem para a união consumada da criatura com o Criador ou, em outros termos, para a santidade. A cada uma dessas vocações o Senhor anexou os auxílios necessários ao bom desempenho da mesma e à santificação do indivíduo. É somente na sua vocação própria que a pessoa humana en­contra as graças divinas de que precisa para chegar à con­sumação: fora da sua vocação, o homem perde tempo e es­forços; vão, pois, seria tentar tarefa que o Senhor não tivesse assinalado, por mais sedutora que fosse tal incumbência.


Destas breves noções depreende-se quão importante é, para cada pessoa, desde os anos de sua juventude tomar conhecimento exato da própria vocação e seguir a esta com fidelidade, sem perder passos fora da via: «A coisa mais importante de toda a vida é a escolha da respectiva ocupação», dizia o filósofo francês Pascal (Pensées, ed Havet III 4); idéia esta que a sabedoria grega, a seu modo próprio, assim formulava: «O começo é mais importante do que metade da caminhada».


2. A este propósito convém notar que o Senhor Deus pode chamar uma criatura humana a percorrer sucessivamente caminhos diversos, até mesmo contrários. Em tais casos, é preciso frisar que Deus não muda seu desígnio a respeito de tal homem; a variedade está incluída desde toda a eternidade no único propósito divino; embora não entendamos porque a Vontade de Deus se manifeste tão variegada no currículo de vida da mesma criatura, não duvidamos de que a linha sinuosa da caminhada é certeira, tendendo ao único objetivo de toda e qualquer vocação, isto é, à união da criatura com o Criador. Suposta uma vocação dessas, a Providência reserva graças especiais para cada uma das etapas da sua criatura, a fim de que esta realize a unidade na multiplicidade, isto é, venha a ser santa, sim, por vias variegadas.


À guisa de exemplos, vão aqui propostos alguns casos (inspirados pela experiência real) de vocação multiforme e una:


Admita-se um jovem seminarista cuja vocação não causa a mínima dúvida aos Superiores; feito diácono, prepara-se para a ordenação sacerdotal. Acontece, porém, que oito dias antes desta cai de tal modo doente que nunca poderá receber o sacerdócio, e os Superiores terão que dar ao seu caso solução de todo imprevista (será reduzido ao estado laical ou esperará por toda a vida o dia da restauração de sua saúde); não obstante, deverá tender sempre à santidade e poderá contar com o auxílio de Deus para isto. Outro exemplo seja o do esposo cristão que, ao voltar da guerra, encontra seu lar irremediavelmente dissolvido, porque a esposa infiel o abandonou; embora casado, tal varão terá que viver conti­nente, enquanto a esposa permanecer em vida... Deus o terá chamado a realizar simultaneamente algo da vida conjugal e algo da vida celibatária. destinando-o, porém, a um só objetivo, isto é, a ser santo.


Dentro deste quadro de idéias, merecem especial atenção casos como o seguinte: uma jovem donzela, aos 18 anos de idade, rejeita categoricamente a hipótese de se consagrar a Deus pelos votos religiosos de pobreza, obediência e castidade; casa-se, e tem filhos felizes, mas, embora se dê muito bem com todos os seus, sente-se continuamente perturbada; parece-lhe que o seu quadro de Vida está radicalmente viciado por não estar ela seguindo a vocação religiosa.


- Será que tal senhora não tem realmente razão para recear estar caminhando fora da via? - Não; mesmo na hipótese de que o Senhor Deus lhe assinalasse a entrada na vida religiosa regular quando ela tinha 18 anos de idade e de que ela tenha pecado rejei­tando tal convite, mesmo em tal hipótese, no momento atual a Vontade de Deus estaria certamente mandando que ela vivesse como esposa e mãe, cumprindo sua tarefa não em tristeza, escrúpulos e remorsos, mas na alegria de servir a Deus com amor e confiança. Ainda que essa pessoa tivesse pecado seriamente aos 18 anos, tal pecado, uma vez devidamente acusado e perdoado pelo sacramento da Penitência, não deveria mais absorver a sua atenção, pois isto seria, da parte dela, derrogar à virtude da esperança. O Senhor, permitindo que ela entrasse no estado conjugal pela via acima enunciada, certamente lhe assinalou as graças necessárias para se santificar na vida matrimonial. Essa vida matrimonial, portanto, ela a pode seguir com paz de ânimo e alegria, desde que esteja arrependida de seus pecados.


3. E quais seriam os critérios pelos quais alguém há de reconhecer a sua genuína vocação?


Sem focalizar especialmente o estado religioso ou sacerdotal, deve-se dizer que cada qual pode começar a perceber a sua vocação auscultando as aptidões de sua natureza. Sim, conforme dissemos, a vocação pode ser comparada ao atra­tivo e deleite que o artista experimenta no exercício da sua arte; assim como Deus, o Supremo Artífice, tudo realizou e realiza com amor, assim também quis Ele que o homem de­sempenhe com amor espontâneo a sua missão neste mundo. Donde se vê quão pouco acertada seria a tese, professada por um ou outro autor, segundo a qual é preciso em tudo contra­riar a natureza, mormente no tocante à escolha da vocação. Não; Deus, chamando o homem para a tarefa predominante de sua vida, certamente não entende sufocar as aspirações próprias que Ele mesmo, ao criar, infundiu em cada perso­nalidade humana.


Donde se vê que a vocação do médico está, em boa parte, baseada na capacidade de «compadecer-se» (sem moleza, mas com energia) do próximo; a vocação do advogado pressupõe apurado senso de imparcialidade e justiça, em oposição a todo sentimentalismo exagerado; a vocação do engenheiro depende do acume matemático do indivíduo, etc. — Quanto à vocação religiosa e à sacerdotal. delas falaremos explicitamente mais abaixo.


Está claro que qualquer vocação profana está, em última análise, subordinada à vocação religiosa, isto é, ao chamado à santificação que Deus dirige a todas as criaturas. É para ser santo, segundo as suas notas pessoais, que tal homem é chamado à missão de escritor, tal outro a exercer a medicina, um terceiro à tarefa de educador, etc. Repitamo-lo: há uma vocação comum, para a qual as demais convergem — a voca­ção à santidade.


2. Vocação sacerdotal e vocação religiosa


O assunto se torna mais delicado e as responsabilidades maiores, quando se trata das duas vocações que visam servir a Deus num estado especialmente consagrado ao Senhor: a vocação sacerdotal e a vocação religiosa.


Por «vocação sacerdotal» entende-se o chamado ao ministério do culto e da cura de almas, no Corpo Místico de Cristo; é ofi­cialmente conferido pelo sacramento da Ordem, destinado aos varões apenas (cf. «P. R.» 1/1957, qu. 4). «Vocação religiosa» vem a ser o apelo a uma vida norteada pelos conselhos evangélicos (pobreza, obediência e castidade) sob uma Regra aprovada pela Igreja. Como se entende, as duas vocações são separáveis uma da outra.


Uma das questões que primeiramente afloram ao espírito do estudioso deste assunto, é a seguinte: como discernir a vocação sacer­dotal e a vocação religiosa?


Por serem as mais importantes e específicas de todas, as duas vocações vêm marcadas por sinais assaz característicos, dos quais procuraremos recensear os principais.


1. Critérios naturais. Compreende-se que o fundamento normal de uma vocação sacerdotal ou religiosa seja uma na­tureza humana sadia, um equilíbrio físico e psíquico tal que possa satisfazer às imperiosas exigências do estado de con­sagração a Deus. Quem não possui os pré-requisitos de saúde para tanto, pode crer (à exceção de casos extraordinários) que também não possui a vocação sacerdotal ou religiosa.


Neste conjunto de idéias, merecem especial menção as análises e os testes psicológicos. Não há dúvida, são de valor para se discernir uma vocação sobrenatural, pois a graça supõe a natureza, como a germinação de uma semente supõe a receptividade do terreno. É mister, porém, advertir que as testes psicológicos por si não fornecem a última palavra no discernimento de uma vocação sacerdotal ou religiosa. Em outros termos: não é ao psicólogo, nem ao médico. que compete proferir a sentença definitiva sobre uma presumida vocação dessas; tal sentença toca a quem se serve dos critérios sobrenaturais, estritamente religiosos, isto é, geralmente ao sacerdote diretor de consciências ou ao bispo (no caso das ordenações sacerdotais) e ao Mestre ou à Mestra de noviços e noviças (ao se tratar de uma vocação religiosa).


Muito a propósito observava o Santo Padre Pio XI :


«Eis algo de mais grave ainda: a pretensão falsa, desrespeitosa tanto quanto vã, de querer submeter a pesquisas, experiências e julgamentos de ordem natural e profana fatos de índole sobrenatural referentes à educação, como, por exemplo, a vocação sacerdotal ou religiosa e em geral todas as atividades misteriosas da graça.


Esses fatos, embora elevem as forças da natureza, elevam-nas infinitamente e não podem de modo algum ser submetidas às leis físicas, pois o Espírito sopra onde quer (enc. «Divini illius Magistri»). Por conseguinte, depois de se considerar a psicologia do candidato, será forçoso levar em conta critérios sobrenaturais, dos quais uns são positivos, os outros negativos.


2. Critérios sobrenaturais positivos. Seguindo S. Inácio de Loiola, os autores costumam discriminar três modalidades pelas quais Deus pode comunicar a uma alma o chamado ao sacerdócio ou à vida religiosa:


a) iluminação repentina do espírito, a qual, por sua evi­dência, se impõe, provocando imediatamente a aquiescência do discípulo. Foi o que se deu com S. Paulo prostrado pelo Senhor na estrada de Damasco,... com S. Agostinho, inter­pelado por uma voz misteriosa no jardim de Cassicíaco, e com outros justos. Os cristãos, porém, sabem que os sinais extraor­dinários são raros nos desígnios da Providência; ninguém, por conseguinte, pretenderá obter tais indícios da vontade de Deus para discernir sua vocação, pois o Senhor não está obri­gado a concedê-los, nem os costuma outorgar;


b) atrativos vivos e contínuos. Consistem em estima especial das coisas de Deus, estima que fomenta o cultivo da vida interior, o prazer de rezar, o amor ao culto sagrado, ao canto religioso, à ornamentação da casa de Deus, o repúdio ao pecado. Estas notas devem ser particularmente acentuadas nas almas que têm vocação sacerdotal ou religiosa;


c) discernimento da razão. É o que S. Inácio de Loiola assim explica:


«O terceiro tempo (conjunto de sinais) é tranqüilo. O homem, considerando primeiramente por que foi criado (louvar a Deus Nosso Senhor e salvar a sua alma), é movido pelo desejo de obter este fim; escolhe então, qual meio apto, um estado ou gênero de vida entre os que a Igreja autoriza, para melhor labutar no serviço do seu Salvador e na salvação de sua alma. Chamo tempo tranqüilo aquele em que a alma não é agitada por espíritos diversos e faz uso de suas faculdades naturais, livre e tranqüilamente».


Ensinam os mestres de espiritualidade que Deus pode chamar alguém a se Lhe consagrar, pelo fato de lhe dar uma compreensão luminosa do que é a vida consagrada (sacerdotal ou religiosa), sem lhe conceder, ao mesmo tempo, particular atrativo sensível para isso (atrativo que não coincide com os que mencionávamos sob a letra b acima); a fé, iluminando a razão, faz que esta reconheça a grandeza do estado sacerdotal ou religioso; em conseqüência, a vontade passa a estimar esse estado e a querer abraçá-lo, sem que nisto a pessoa experimente algum deleite sensível; o atrativo natural em tais almas é suprido pela fé pura e pelo desejo de devotamento e modalidade de vocação é geralmente maior que o das outras. Essa pura visão sobrenatural acompanhada de uma vontade firme e perse­verante de dar tudo ao Senhor, independentemente da compensação sensível que tal doação possa acarretar para o sujeito respectivo, é ótimo indício de vocação. A experiência, porém, ensina que Deus, cuja sabedoria tudo dispõe com força e suavidade, não costuma subtrair o deleite sensível àqueles que Ele escolhe.


Uma vez apurados os diversos indícios de vocação, o juízo decisivo cabe geralmente, em cada caso, ao Diretor espiritual.


3. Critérios sobrenaturais negativos. Aparentes critérios positivos de vocação podem ser sobrepujados por evidentes critérios negativos. Estes se prendem geralmente a falhas mo­rais e temperamentais dos candidatos.


A vida sacerdotal e a vida religiosa têm índole, em certo grau, comunitária; requerem sujeição e maleabilidade. Por isto qualquer vocação de tal tipo supõe no candidato largueza de espírito, capacidade de suportar e de se adaptar, qualidades sem as quais se torna irrealizável a vocação.


Especificando, os autores recomendam que se leve em conta particular


a) um temperamento insaciável: há pessoas que, por suas ati­tudes espontâneas, envenenam o ambiente em que se encontram; irritadiças, tendem a interpretar para o mal tudo que o que se lhes diz e faz, de modo que não conseguem viver sem se desentender com os outros; atribuem ao próximo as suas intenções maliciosas e o


criticam levianamente;


b) um temperamento anárquico ou indócil: trata-se de pessoas que sistematicamente tendem a emitir opinião contrária à dos Supe­riores, chegando a criar partidos e dissidências; dir-se-ia que nasceram para mandar, não para obedecer e fazer como os outros;


c) um temperamento inconstante e impulsivo: são pessoas que não sabem manter seus pareceres, seus planos e resoluções, ficando à mercê do entusiasmo ou do desânimo;


d) um temperamento mundano ou pouco amigo da piedade, sempre inclinado a se deleitar em diversões fúteis e pouco morais.


Desde que tais traços, após adequado período de experiência, se mostrem incorrigíveis ou predominantes, não resta dúvida de que Deus não chamou à vida religiosa ou sacerdotal os candidatos assim marcados, pois evidentemente carecem do substrato imprescindível para poderem perseverar.


Aqui não mencionamos explicitamente as chamadas «irregula­ridades canônicas». Estas vêm a ser defeitos estipulados pelo Direito Eclesiástico em vista do acesso à vida religiosa ou sacerdotal: seriam, entre outros, a falta de idade mínima, o nascimento ilegítimo, obrigações contraídas para com Deus ou alguma entidade (votos, casamento, dividas, cura de almas, arrimo paterno ou materno, etc.); cf. Código de Direito Canônico cân. 542 (para as vocações religiosas); cân. 983-991 (para as vocações sacerdotais). As irregularidades, sendo geralmente dispensáveis pela autoridade eclesiástica competente, não constituem na maioria dos casos indício negativo dirimente para se discernir uma vocação.


4. Questões complementares


Ainda merecem atenção alguns aspectos particulares do tema até aqui explanado.


1. Quem contraria ao chamado de Deus abraçando definitiva­mente um gênero de vida incompatível com tal vocação, não deses­pere da sua salvação eterna, por mais pusilânime ou imprudente que haja sido. Os autores de espiritualidade recomendam que tal pessoa se arrependa sinceramente e procure cumprir fielmente as obrigações do estado de coisas que escolheu definitivamente; viva na graça de Deus, esforçando-se por dar no seu ambiente o testemunho de bom católico. Para realizar esta tarefa e assim salvar a sua alma, não há dúvida de que lhe assistirá o auxílio de Deus; a ninguém será lícito desesperar da salvação eterna, desde que apresente ao Senhor um coração contrito e humilde.


2. A vocação, uma vez comunicada pelo Senhor Deus, pode ser perdida ou tornada nula antes de ser executada. Principalmente ao se tratar de uma vocação sacerdotal ou re­ligiosa, é de crer que o demônio se empenha com todos os requintes de sua astúcia para frustrar o chamamento de Deus; requer-se, por conseguinte, uma conduta geral de vida muito digna e fiel da parte da criatura chamada, a fim de que possa conservar e desenvolver o tesouro da vocação.


Deus nos ensinou a d'Ele não exigir milagres (caso Ele os queira realizar, efetua-os gratuita e imprevistamente); cf. Mt 4,7. Ora exigiria milagre a criatura que expusesse o gérmen de sua vida sobrenatural aos perigos deste mundo (espetáculos licenciosos, leituras mórbidas, companhias de má fama... ) e, apesar disso, pretendesse que Deus nela conservasse o atrativo pelo estado religioso ou sacer­dotal. Tal criatura faria o que a Escritura condena sob o título de «tentar a Deus» (= pedir sem motivo justificado derrogação ao curso normal das coisas).


Com isto não queremos dizer seja ilícito experimentar as vocações, submetendo-as a testes de índole sobrenatural: reconher-se-á tanto aos candidatos como a seus pais e superiores o direito de o fazer. Contudo terão todo o cuidado para não empreender, sob este pre­texto, alguma obra pecaminosa e para não recorrer a provas tais que, conforme as previsões da prudência, sejam aptas a destruir na alma a chama da fé e do amor a Deus.


«Se (os pais) receiam que a vocação (da criança) não passe de impressão fugitiva, submetam-na à prova. Mas, saibam-no bem: submeter à prova não significa sufocar; seria realmente um crime tomar uma criança sob pretexto de melhor conhecer a sua força de vontade, e enviá-la friamente para lugar em que estivesse fatal­mente exposta à perda da inocência e da fé!» (Mons. Lobbedey, bispo de Arras, França : Carta Quaresmal de 1913).


3. Há quem repita quase à guisa de adágio: «A vocação (religiosa ou sacerdotal) tem que nascer espontaneamente nas almas». Capciosa afirmação!


Verdade é que a vocação vem de Deus. Não menos ver­dade, porém, é que o Senhor a quer conceder envolvendo ge­ralmente a colaboração e, em particular, a prece dos homens.


Por conseguinte, as vocações para as grandes tarefas desta vida, principalmente para o estado religioso e o sacerdócio, têm que ser obtidas mediante oração: «Rogai ao Senhor da messe, envie operários para a sua messe» (Mt 11,38). São João Bosco podia em sua época (1815-88) afirmar: «Tenho a experiência dos jovens; uma terça parte deles traz em si o gérmen da vocação».


Se as vocações ao serviço do Senhor escasseiam hoje em dia, não se creia — adverte Pio XI — «que haja menos adolescentes chamados por Deus à vida sacerdotal ou religiosa, mas (creia-se), sim, que muito menos numerosos do que outrora são os que hoje obedecem à moção do sopro divino». A oração, por conseguinte, tenderá a impetrar para esses jovens as graças da correspondência e da felicidade ao chamado divino.


Além da prece, recomenda-se aos educadores católicos o recurso aos meios normalmente aptos para despertar o amor à vida consa­grada a Deus: suscitem nos discípulos, mediante o seu exemplo, as suas palavras e os seus escritos, o zelo pela salvação das almas no mundo inteiro. Principalmente ao sacerdote competirá dar o exemplo de vida sacerdotal perfeita, pois nada é tão apto para despertar nos jovens o desejo de serem padres quanto o conhecimento de um bom sacerdote. Muito se aconselha também a difusão da leitura de biografias de modelares pastores de almas; o exemplo comunica, ao mesmo tempo, idéias para a inteligência e força para a vontade. — Está claro que o uso de tais meios de formação se fará, tomando-se o cuidado de remover qualquer modalidade de violência à índole dos pupilos.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Sacerdócio: ordenação de mulheres?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 002/1957)

ORDENAÇÃO DE MULHERES?

"Há algum argumento sério e bem fundamentado que proíba à mulher receber o sacramento da Ordem?"

Note primeiramente: não há notícia de que Cristo tenha confiado algum poder sacerdotal a qualquer das santas mu­lheres do Evangelho, nem mesmo à Sua Mãe Santíssima. São Paulo, por seu lado, diz explicitamente:

"Calem-se as mulheres nas assembléias, pois não lhes é lícito tomar a palavra; conservem-se submissas, como a Lei mesma manda. Se se quiserem instruir sobre algum ponto, in­terroguem seus maridos em casa, pois não convém que a mu­lher fale em alguma assembléia" (1 Cor 14,34s; o mencionado texto da Lei é Gên 3.16).

"Durante a instrução, guarde a mulher o silêncio com to­da submissão. Não permito à mulher ensinar nem dar nor­mas aos homens. Conserve-se tranqüila" (1 Tim 2,lis).

Tais proibições excluem naturalmente a participação no ministério sacerdotal.

Os sínodos de Laodicéia (389), Nimes (384), Aquisgrano (789), Paris (829) repetiram sucessivamente não ser lícito con­ferir as ordens sacras às mulheres. A mesma proibição se en­contra ainda hoje no Código de Direito Canônico, cân. 968,1.

A razão de ser de tal determinação é a subordinação na­tural do sexo feminino ao masculino; a mulher foi criada por Deus para ser auxiliar, colaboradora e complemento do varão, não para tomar a dianteira sobre este (excetuam-se os casos em que a própria Providência Divina, direta ou indiretamente, solicitou e solicita a intervenção forte de mulheres, tais como Catarina de Sena e Joana d'Arc). Não somente a Escritura inculca essa ordem de coisas, mas também a Filosofia clássica, cujo testemunho nos é referido por S. Tomaz:

"A mulher não deve possuir alguma jurisdição espiritual, pois, segundo o Filósofo (Aristóteles, Ética VIII 7), há corrup­ção da urbanidade (quebra da reta ordem), quando a mulher chega ao domínio. Por isto é que a mulher não traz as chaves nem da ordem (sacerdotal) nem da jurisdição" (In Sent. 4, d. 19, q. l,a. 1. sol. 3ad4).

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Sacerdócio: ordenação de mulheres?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 002/1957)

ORDENAÇÃO DE MULHERES?

"Há algum argumento sério e bem fundamentado que proíba à mulher receber o sacramento da Ordem?"

Note primeiramente: não há notícia de que Cristo tenha confiado algum poder sacerdotal a qualquer das santas mu­lheres do Evangelho, nem mesmo à Sua Mãe Santíssima. São Paulo, por seu lado, diz explicitamente:

"Calem-se as mulheres nas assembléias, pois não lhes é lícito tomar a palavra; conservem-se submissas, como a Lei mesma manda. Se se quiserem instruir sobre algum ponto, in­terroguem seus maridos em casa, pois não convém que a mu­lher fale em alguma assembléia" (1 Cor 14,34s; o mencionado texto da Lei é Gên 3.16).

"Durante a instrução, guarde a mulher o silêncio com to­da submissão. Não permito à mulher ensinar nem dar nor­mas aos homens. Conserve-se tranqüila" (1 Tim 2,lis).

Tais proibições excluem naturalmente a participação no ministério sacerdotal.

Os sínodos de Laodicéia (389), Nimes (384), Aquisgrano (789), Paris (829) repetiram sucessivamente não ser lícito con­ferir as ordens sacras às mulheres. A mesma proibição se en­contra ainda hoje no Código de Direito Canônico, cân. 968,1.

A razão de ser de tal determinação é a subordinação na­tural do sexo feminino ao masculino; a mulher foi criada por Deus para ser auxiliar, colaboradora e complemento do varão, não para tomar a dianteira sobre este (excetuam-se os casos em que a própria Providência Divina, direta ou indiretamente, solicitou e solicita a intervenção forte de mulheres, tais como Catarina de Sena e Joana d'Arc). Não somente a Escritura inculca essa ordem de coisas, mas também a Filosofia clássica, cujo testemunho nos é referido por S. Tomaz:

"A mulher não deve possuir alguma jurisdição espiritual, pois, segundo o Filósofo (Aristóteles, Ética VIII 7), há corrup­ção da urbanidade (quebra da reta ordem), quando a mulher chega ao domínio. Por isto é que a mulher não traz as chaves nem da ordem (sacerdotal) nem da jurisdição" (In Sent. 4, d. 19, q. l,a. 1. sol. 3ad4).

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Sacerdócio: por que os padres não se casam?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 004/1957)

Será oportuno, antes do mais, reconstituir brevemente o his­tórico da questão.

Na era apostólica. São Paulo recomendava que o bispo fos­se "marido de uma só esposa" (1 Tim 3.3: Tit 1.6). Com isto, certamente não queria afirmar que todo bispo tinha a obrigação de ser casado, pois nesta hipótese contradiria a palavra do Se­nhor, que reconhece e preza "aqueles que se castraram (se conservaram virgens) por causa do reino dos céus" (Mt 19.12): contradiria também a si mesmo, visto que Paulo desejava aos fiéis "fossem todos como ele mesmo era" (1 Cor 7.7), isto é, ce­libatários, a fim de se entregarem sem divisão ao serviço do Se­nhor (cf. 1 Cor 7,32-34). Na verdade, o Apóstolo queria in­culcar que, no século l° da nossa era, quando as comunidades cristãs constavam de muitos adultos e casados recém-convertidos, não se escolhesse para o episcopado algum varão casado em se­gundas núpcias (bígamo em sentido lato); estas, com efeito, eram geralmente desaconselhadas (não, porém, condenadas) pela anti­ga Igreja, por parecerem uma expressão de incontinência.

Houve, pois, nos tempos iniciais do Cristianismo, bispos, sa­cerdotes e diáconos legitimamente casados; nenhuma lei lhes proi­bia o uso do matrimônio.

Mais freqüentes, porém, desde os primórdios eram os clérigos que espontaneamente abraçavam o celibato. A razão disto era o conselho do Senhor que exortava à continência ("quem o pode entender, entenda"; Mt 19,12).

No século 4º esta praxe espontânea começou a ser sanciona­da por leis de concílios regionais que visavam assegurar aos eclesiásticos os benefícios do celibato. Diversas, porém, foram as prescrições promulgadas no Oriente e no Ocidente.

No Oriente a legislação chegou ao seu termo definitivo em 692 (Concílio Trulano II ou Quinissexto); foi então proibido aos sacerdotes, diáconos e subdiáconos contrair matrimônio após re­ceberem a respectiva ordem sacra; caso, porém, um leigo casado desejasse ordenar-se, as núpcias anteriormente contraídas não lhe seriam empecilho, nem se exigiria que, depois de ordenado, dei­xasse de viver maritalmente com a esposa; apenas se lhe pedia que se abstivesse do consórcio conjugal quando estivesse para ce­lebrar as funções do altar (que não eram otidianas); ao sacerdo­te viúvo ficaria vedado casar-se em segundas núpcias. Quanto aos bispos, o Concílio lhes prescrevia continência absoluta, de sorte que, se um futuro bispo estivesse casado, a esposa, depois de sua sagração. deveria recolher-se a um mosteiro distante, ficando o marido obrigado apenas a prover às despesas de sua subsistência. São estas as determinações ainda hoje vigentes entre os cristãos orientais, quer cismáticos (com poucas exceções). quer unidos a Roma; o Direito Canônico não lhes impõe o celibato, que nunca foi obrigatório na tradição oriental. Em vista da cláusula um pouco mais rigorosa imposta aos bispos, estes no Oriente são de preferência nomeados dentre os monges, que por profissão abra­çam a castidade perfeita.

No Ocidente, o primeiro decreto restritivo se deve ao Con­cílio de Elvira (Espanha) reunido por volta do ano de 300; proi­bia aos bispos, sacerdotes e diáconos,sob pena de degradação, o uso do matrimônio e o desejo de ter prole (cân. 33). Esta de­terminação, que a princípio só visava a Espanha, em menos de um século estava em vigor (às vezes sob forma de conselho ape­nas) em todo o Ocidente. A fórmula definitiva de tal disciplina foi promulgada pelo 1º Concílio ecumênico do Latrão em 1123; a todos os clérigos, a partir do subdiaconato, foi prescrito de ma­neira peremptória o celibato; em conseqüência, o matrimônio con­traído por um eclesiástico depois da respectiva ordenação era de­clarado inválido. O Concílio de Trento promulgou de novo tal lei no século 16, época em que os Imperadores Ferdinando I (1556-64) e Maximiliano II (1564-76) da Alemanha exerciam pressão sobre o Papa Pio IV (1559-65) a fim de obterem o ca­samento dos sacerdotes de seu reino, ameaçados pela rebordosa luterana. Sucessivas determinações da autoridade da Igreja têm corroborado frequentemente até nossos dias a obrigação do ce­libato clerical. No início do século 20, violenta campanha se desencadeou contra essa praxe; na Tcheco-Slováquia, por exem­plo, vários sacerdotes, reivindicando o direito de se casar, aderi­ram à Iednota. associação de tendências cismáticas, à qual o Papa Bento XV resistiu energicamente declarando numa alocução consistorial de 16 de dezembro de 1920: "Veneráveis Irmãos, o que várias vezes já afirmamos ocasionalmente, Nós agora o atesta­mos solene e categoricamente: nunca esta Sé Apostólica atenua­rá ou mitigará essa lei profundamente santa e salutar do celibato eclesiástico; muito menos ainda a abolirá" (Acta Apostolicae Sedis XII [1920] 585). Na França, Paul-Louis Couchoud, que se dizia historiador das religiões, chegou a publicar um pseudo-decreto de Leão XIII que abolia a disciplina do celibato para o clero da América Latina; o documento foi formalmente comprovado falso. Mantendo tão rijamente a tradição, a Igreja visa proporcio­nar aos seus ministros absoluta liberdade para se dedicarem ao próximo e desenvolverem frutuoso apostolado.

Eis, porém, que muito chamou a atenção pública uma dis­pensa recém-concedida neste setor por S. S. Santidade o Papa Pio XII. Tratava-se do pastor protestante Rudolf Goethe, des­cendente do poeta Wolfgang Goethe, que, casado e sem filho: se converteu ao catolicismo na idade de 69 anos. Por concessão de Santo Padre, o bispo de Mogúncia, aos 22 de Dezembro de 1951, o ordenou sacerdote, ficando o mesmo autorizado a viver em matrimônio com sua esposa; o néo-sacerdote não seria destina­do ao ministério paroquial, mas ao serviço de chancelaria do bis­pado e à cura espiritual de outros convertidos. No mesmo dia 22 de Dezembro de 1951, o semanário católico inglês Tablet (pg. 470) lembrava que anteriormente já se haviam verificado duas outras or­denações de pastores protestantes casados e convertidos, dos quais um, com a idade de 40 anos, era pai de alguns filhos. No Seminário de Mogúncia, quando o sacerdote Goethe era ordenado, preparava-se para o presbiterado outro ex-pastor casado.

Estes fatos representam, sem dúvida, grande novidade na praxe da Igreja latina, novidade talvez sem precedentes. Há quem, a propósito, aponte o episódio seguinte: numa carta ao rei Filipe II da Espanha (1556-98), datada de 20 de Abril de 1565, o Cardeal Pacheco, Embaixador da Espanha em Roma, referia que seu colega D'Arco, Embaixador de Maximiliano II da Ale­manha, lhe afirmara que os legados do Papa Paulo III na Ale­manha, sob o Imperador Carlos V (1519-56), tinham dispen­sado do celibato dezoito sacerdotes. Como se vê, a noticia é com­plicada e passou por diversos intermediários; julga-se bem provável que o Embaixador D’Arco tenha aludido simplesmente aos poderes concedidos pelo Papa Paulo III aos seus legados em 1548 para reconciliarem sacerdotes casados, com a cláusula de se absterem do ministério sacerdotal.

Está, sem dúvida, no poder da Igreja desligar do celibato os clérigos ocidentais, para que vivam à semelhança dos orientais; trata-se de questão meramente disciplinar, não de lei divina nem de dogma. A razão por que o Santo Padre assim procedeu no caso do pastor Goethe era exposta nos seguintes termos pelo Superior do Seminário de Mogúncia, Monsenhor Reuss:

"Não há dúvida, antigos pastores protestantes, à custa de penosos sacrifícios convertidos ao catolicismo com sua família, são particularmente aptos a servir pela oração e pelo trabalho à magna causa da reunião de todos os cristãos na única Igreja de Jesus Cristo. Ordenados sacerdotes, eles se tornam colaborado­res valiosíssimos na conquista deste grande objetivo da Igreja universal" (texto publicado na revista "Etudes" 272, 6, pg. 255).

O motivo da dispensa era, pois, o apostolado. Com efeito; tem-se delineado na Alemanha protestante de após-guerra uma volta notável de atenção para Roma. O fenômeno se explica por diversos fatores: a perseguição movida pelo nazismo aos cristãos em geral, o deslocamento de populações que passam a viver em "diáspora", as dificuldades que os luteranos encontram para se constituir juridicamente. Em tal situação entende-se que a Igreja Católica lance mão de recursos novos para corresponder às ex­pectativas dos irmãos separados.

Enquanto este ou outro motivo grave o postular, o celibato eclesiástico poderá ser esporadica­mente dispensado. É inegável, porém, o grande interesse que tem a cristandade inteira em se conservar a legislação vigente; os benefícios que ela de fato acarreta, são muito mais ponderosos do que as razões que se possam apresentar em contrário. O sacerdo­te tem que viver como homem de Deus, totalmente devotado aos interesses das almas.

D. Estêvão Bettencourt. – o.s.B.

Religião: todas as religiões são boas?

Revista Pergunte e Responderemos, PR 002/1957)

"Como responder à objeção tão divulgada: Todas as religiões são boas?"

Para responder à questão, devemos observar a seguinte distinção:

1) Qualquer religião é boa, se aquele que a segue está plenamente convicto de que é a verdadeira religião e cumpre os seus preceitos com toda a fidelidade, de acordo com a sua consciência. Assim quem de inteira boa fé e de maneira coeren­te adere ao islamismo, ao budismo ou ao protestantismo, sem jamais conceber dúvida sobre a veracidade de sua crença, pode salvar-se e obter o céu. Contudo, para que isto se dê, re­pitamo-lo, é necessária uma absoluta boa fé por parte do in­divíduo. Esta boa fé poderá ser um fato em regiões onde a educação e a mentalidade do povo estejam unanimemente im­buídas de certa religião (budismo, protestantismo...) sem que haja controvérsia a respeito. A boa fé, em geral, se pode pressupor mais facilmente em gente simples, pouco instruída, do que em pessoas de certa cultura e erudição, conhecedoras da história.

2) Desde, porém, que não haja no adepto de "tal" re­ligião plena certeza de que está de posse da verdade; desde que, por meio de conversas, leituras ou coisa semelhante, lhe sobrevenham dúvidas sobre a autenticidade do credo que professa, é obrigado a indagar a verdade. Se, após as suas pesquisas, chegar à conclusão de que outra é a religião ver­dadeira, estará obrigado a aderir a esta outra. Se, porém, não obtiver resultado claro, deverá seguir o que a consciência lhe disser no momento (Deus, contudo, não se costuma sub­trair a quem o procura sinceramente).

A obrigação de não permanecer em dúvida religiosa é-nos imposta não somente por Deus, mas também pela dignidade humana. Com efeito, todo homem possui uma faculdade — a inteligência — ordenada a apreender a verdade; essa fa­culdade só se dá por satisfeita quando alcança a verdade. Não há quem não sinta a repulsa natural ao erro, à dúvida; se, não obstante, alguém permanece voluntariamente nestes, vio­lenta ou mutila a sua razão, sua dignidade característica. A natureza humana vem a ser, portanto, a primeira a acusar o indivíduo que, por descuido consciente, pactue com a incer­teza, a dúvida, arriscando-se a errar o seu caminho na vida e perder o seu Fim último.

Embora todas as religiões em geral inculquem a prática da caridade e certos preceitos de Moral natural (desdobra­mentos do imperativo "Faze o bem, evita o mal"), cada uma delas se norteia por certo Credo. Ora, para que a Religião seja perfeita, é preciso que ela aponte não só a Moral boa, mas; também o Credo verídico. Deve-se mesmo dizer que a Verdade tem o primado sobre o Amor, a Moral e o Bem; ilumina-o, dirige-o. A Verdade, porém, é uma só (dois e dois só podem dar a soma "quatro"); por conseguinte, só pode haver uma Moral autêntica e só uma religião verdadeira. E a esta é que todos têm de procurar, desde que não possuam a certeza de a pro­fessar.

Em outros termos: o ideal do homem é agir não somente de boa fé (aderindo sinceramente a uma ideologia qualquer), mas também segundo a verdadeira fé (aderindo sinceramente a uma ideologia verídica ou à Verdade). Contentar-se com me­nos do que isto equivale a injuriar a nobreza humana e insul­tar o Autor dessa nobreza, o Criador.

Veja-se a respeito, E. Bettencourt, "A vida que começa com a morte" Rio de Janeiro 1958, c. 8

Religião: como não ser panteísta

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 007/1957)


Uma reflexão serena sobre o panteísmo permitirá formu­lar juízo seguro sobre esta ideologia.

1. «Panteísmo» (nome forjado pelo filósofo inglês J. Toland em 1705) é a doutrina que ensina ser Deus o Hèn kai Pãn dos gregos, o «Um e Tudo», a única substância existente, a qual, por via de emanação, se manifesta nos diversos entes visíveis. Deus, pois, vem a ser o substrato neutro, impessoal, pressuposto por cada fenômeno da natureza. Acha-se em con­tínua evolução; em cada indivíduo humano que se aperfeiçoa, é a Divindade que vai tomando consciência de si.

Os filósofos, no decorrer dos séculos, têm apresentado a ideologia panteísta sob diversas modalidades: enquanto alguns ensinam simplesmente que «tudo é Deus e Deus é tudo», ou­tros preferem afirmar que Deus é a alma do mundo ou o principio («espiritual», como dizem) imanente que dá subsis­tência ao mundo. Todavia qualquer destas fórmulas implica que Deus se identifique, total ou parcialmente, com a Natu­reza posta em evolução.

2. Ora é esta identificação que nos interessa submeter ao exame da razão. Três são as observações que ela sugere:

a) Deus não se pode (nem parcialmente) identificar com o mundo, pois, por definição, é o Absoluto, Necessário, Ilimi­tado (o que o panteísmo reconhece perfeitamente), ao passo que o mundo é relativo, contingente e limitado em suas perfei­ções (coisa que a experiência ensina sobejamente). Ora o mesmo sujeito jamais será simultaneamente, e sob o mesmo ponto de vista, Absoluto e relativo, pois estes predicados se excluem mutuamente.

b) Não pode haver evolução ou progresso em Deus, pois toda evolução diz ou aquisição ou perda de perfeição; em qual­quer caso, implica imperfeição, o que é absurdo em Deus. A hipótese de um Deus ou de uma Substância divina em evolu­ção tenta explicar o mundo não por um Ser absoluto, mas por um «Tornar-se» absoluto; ora o «tornar-se» absoluto é contra­ditório em si, pois «tornar-se» significa lacuna em demanda de plenitude, ao passo que o Absoluto diz perfeição plena.

c) Ademais, põe-se a questão: a substância única do universo que evolui para sua maior perfeição, como se eleva ela acima de si mesma? Se é a única realidade, onde encontra o apoio necessário para subir?... Onde encontra a fonte das perfeições que ela por definição não possui? O «mais» sairia do «menos»? A lógica ensina o contrário... Diga-se, pois, que a evolução do imperfeito para o perfeito supõe na base de tudo uma realidade de perfeição infinita; é a atividade deste Ente primordial que produz novos seres, os quais são necessariamente menos perfeitos e, por conseguinte, finitos, pois não pode haver dois infinitos ou dois absolutos sob o mesmo ponto de vista.

O Ente primordial nada ganha quando produz os seus efeitos, pois ao Infinito nada se pode acrescentar; ele é, por­tanto, essencialmente distinto dos seus efeitos e do mundo. É o Deus transcendente que não toma consciência de si, mas desde todo o sempre é Personalidade plenamente consciente.

3. Mas será que não se pode salvar o panteísmo me­diante a fórmula: Deus está presente, imanente a todas as coisas, como a alma se acha no corpo?

O enunciado ê ambíguo. Se significa que Deus é ima­nente a tudo como elemento integrante (e tal é o sentido que lhe dá o filósofo panteísta), a fórmula não se exime às difi­culdades anteriormente propostas: Deus não pode ser cons­titutivo de seres em evolução.

A mesma fórmula, porém, pode significar que Deus está presente a tudo, simplesmente como o agente está presente a qualquer dos objetos de sua ação. Tal é a concepção da sã razão, reafirmada pelo Cristianismo: Deus é o Criador que do nada tirou todos 06 seres e os conserva na existência; por conseguinte, onde quer que haja uma parcela de ser, Ele aí está presente — presente, porém, porque age, conservando, não porque se identifique com a substância do ser contingente. A Filosofia cristã, consequentemente, ensina que Deus é, ao mesmo tempo, transcendente, porquanto ultrapassa infinita­mente os demais seres em perfeição, e imanente, porquanto a sua ação criadora e conservadora atinge o íntimo de tudo que existe. Se o panteísmo objeta que nada pode existir fora de Deus, a sã Filosofia responde que nada pode existir fora ou independentemente da ação causal de Deus, mas que todos os seres limitados são substâncias distintas da substância de Deus.

Em última análise, verifica-se que o panteísmo só se pode sustentar caso quem o professe, incoerentemente atribua à Substância única traços de um Deus pessoal, distinto do mundo.

4. Pergunta-se, porém: se tão pouco lógico é o pan­teísmo, porque possui hoje tantos adeptos?

Dois parecem ser os principais motivos da sua voga:

a) identificar Deus com a Natureza parece engrande-cê-Lo, ao passo que atribuir-Lhe personalidade seria diminuí-Lo. Todo homem tem consciência de quanto é limitada a sua personalidade e grandiosa a Natureza com seus profundos mistérios.. . Em conseqüência, preferem alguns dizer que Deus não é personalidade, mas «super-personalidade». Isto, porém, equivale a colocar o Altíssimo abaixo do homem; é mística ilusória. Justamente a mais elevada perfeição do ente con­siste em ser dotado de conhecimento intelectivo e de livre vontade (atributos que constituem a personalidade). Esta per­feição não inclui em seu conceito alguma imperfeição (como, por exemplo, o arrependimento envolve a noção de falta pré­via); por isso não há razão para a denegar a Deus. O Altíssi­mo só não é personalidade à maneira exígua do homem.



b) Ainda uma razão de ordem psicológica se impõe à nossa consideração: o panteísmo ou monismo fazendo coincidir Deus com a Natureza, emancipa o homem, possibilitando-lhe conceber a sua religião segundo o seu bom senso subjetivo ou... os seus caprichos. Em última análise, o Deus do panteísmo vem a ser mera fórmula a recobrir auto-afirmação e soberba do homem. Não será exagero dizer que o panteísmo praticamente equivale ao ateísmo. É o que, do seu modo, dava a entender uma das grandes mentoras da Sociedade Teosofista, Annie Besant, a qual verificava o seguinte:

«A primeira coisa que afirmam os teosofistas é que toda idéia de sobrenatural deve ser rejeitada... A segunda... é a negação de um Deus pessoal; daí decorre que os agnósticos e os ateus assimi­lem mais facilmente os ensinamentos da Teosofia do que os fiéis dos credos ortodoxos (Why I became a theosophist 17).

A Sra. Besant assim averiguava a afinidade prática do panteísmo com o ateísmo.

Aliás, os historiadores observam que, entre as correntes do pensamento moderno, não são muitos os sistemas filosóficos ateus; o ateísmo costuma ser prático, in­consciente, não baseado em princípios doutrinários; a Filoso­fia não-cristã tende, antes, ao panteísmo e ao monismo. O motivo deste fenômeno percebe-se sem grande dificuldade: o ateísmo parece violentar demais a razão, que espontaneamente é levada a reconhecer a existência de uma Causa Primeira; o panteísmo então vem a ser a fórmula que torna o choque menos veemente e, não obstante, permite ao indivíduo fazer-se autônomo; bajula o orgulho sem o desmascarar e sem fazer perder ao soberbo a aparência de homem religioso. É o «Ma­nual Informativo do Membro da Sociedade Teosofista no Bra­sil» que ensina ser o homem «o seu próprio legislador abso­luto, o seu próprio dispensador de glória e obscuridade, o que por si mesmo decreta a sua vida, recompensa ou castigo» (ed. São Paulo 1951, 22) (!).

Em conclusão, parece que quem tem consciência do que significa o panteísmo, não pode deixar de rejeitar esta ideo­logia em nome da própria inteligência humana.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Religião: há alguma religião revelada por Deus?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 011/1958)


«Pode-se admitir haja alguma religião revelada por Deus?

E, caso a haja, por que sinais poderia ser reconhecida? Os milagres merecem pouco crédito em nossos dias!»

Procedamos por etapas em nossa resposta.


Antes do mais, verificamos que as questões acima, pelo seu enunciado mesmo, pressupõem a existência de um Deus pessoal, distinto do mundo, tal como o pode provar o racio­cínio filosófico.

Antes de Cristo, já Platão e Aristóteles na Grécia nos forneceram essa prova, que se poderia resumir nos seguintes termos:


O mundo consta de seres essencialmente contingentes e mutáveis.


Ora o contingente e mutável, por definição, não possui o ser por si (o contingente e mutável que se explicasse por si, seria uma contradição), mas tem a razão de sua existência fora de si, num ente que deve ser Absoluto e Imutável.


Donde se segue que, se existe o contingente e mutável (ou temporal), deve existir o Absoluto, Imutável (ou Eterno). E tal é Deus, Deus, que, por conseguinte não se pode identificar com o mundo.


Esse Deus distinto do universo há de ser o Autor ou Criador do mundo, pois, em caso contrário, o mundo seria um Absoluto, e a unicidade de Deus estaria destruída. Ulteriormente, concluir-se-á que há de ser dotado de inteligência (sabedoria) e vontade (amor), pois estas são notas características de uma personalidade criadora.

Pergunta-se agora se esse Deus se revelou explicitamente aos homens, comunicando-lhes alguma forma de Religião. É esta mais ou menos a dúvida dos filósofos chamados «deístas» ou «enciclopedistas do séc. XVIII». Até tal época o fenô­meno religioso, dentro e fora do Cristianismo, foi geralmente associado a uma revelação divina primordial (cada grande sistema religioso da humanidade tem seus livros sagrados, depositários do que os respectivos fiéis julgam ser a Palavra de Deus).

Abaixo proporemos um esboço de resposta ao deísmo, es­tudando: 1) a necessidade moral de uma Revelação; 2) a maneira como esta se nos pode dar a conhecer.

Procurando por fim fazer uma aplicação concreta dos princípios enunciados, focalizaremos o tema do milagre, selo por excelência da Reve­lação Divina.

1. A necessidade de Revelação Divina

1. Um Deus que houvesse criado o homem, mas o tivesse abandonado, sem exercer providência (justiça e bondade) para com ele, seria um Deus carecente das qualidades mais óbvias de qualquer ser moral; seria um verdadeiro absurdo. Profes­sá-lo já equivale a negar a existência de Deus.

Infelizmente não poucas pessoas hoje em dia dizem acreditar em Deus, mas O julgam injusto, desapiedado ou ao menos estranho às aspirações do homem. Essa figura do «Deus amoral ou imoral» é uma contradição; quem a admite, já não crê em Deus.

2. Reconheça-se, por conseguinte, uma verdade profes­sada também fora do Cristianismo: Deus criou o homem para dar-lhe a felicidade ou a plenitude de bens a que este espon­taneamente aspira; e Deus providencia para que a criatura atinja esta meta. Portanto, há ordem e finalidade no curso dos acontecimentos; este mundo e sua história não dependem da cega ação do acaso, mas são governados pelo Criador.

3. Eis, porém, que dificilmente o homem conseguiria a sua meta, que é «aderir a Deus, seu Autor», se Este o deixasse entregue às luzes de sua razão natural apenas.

É o que se depreende de uma consideração retrospectiva da história: mesmo as verdades religiosas naturais, acessíveis por si à razão humana, têm sido erroneamente concebidas pelos povos. Verifica-se que a idéia de Deus, que significa a Perfeição subsistente, é pervertida pelo politeísmo, o fetichismo, a magia. . .; a consciência moral também é deturpada em ritos obscenos e cruéis que, sob aspecto de legalidade, servem às paixões dos seus adeptos.

A rigor, todos os homens seriam capazes, por suas fa­culdades próprias, de conceber a mesma e única noção genuína de Deus, a mesma moral autêntica, as mesmas normas gerais de culto. Na prática, porém, é com lentidão e dificuldade que chegam à clareza em tais assuntos.

Este estado de coisas se explica à luz de dois fatores:


1) As questões concernentes ao último Fim, à origem e ao significado da vida humana na terra não se resolvem pela experiência nem por simples dedução, mas pertencem ao domínio da metafísica.


Ora esta será sempre árdua para o comum dos mortais, pois requer que o pensador goze de certa despreocupação intelectual, de alguma perspicácia de espírito, e que ame a verdade, isento de preconceitos e paixões. Inegavelmente, porém, a maioria dos homens não dispõe de tais dotes ou não vive em circunstâncias tais. Ainda mesmo que uma classe de cidadãos favorecidos conseguisse penetrar devidamente as verdades religiosas, não se poderia esperar (como seria para desejar) que de seus estudos e conhecimentos se beneficiasse todo o gênero humano. É Platão quem observa: «Difícil é encontrar o Autor e Pai de universo: mas dá-lo a conhecer filosòficamente a todos é absolutamente impossível» (Timeu).


2) A Revelação cristã fornece a última explicação do fenômeno: o pecado de Adão, se não afetou diretamente a natureza humana com sua inteligência e sua vontade, ao menos colocou o homem em circunstâncias de vida tais que toda conversão ao Invisível e ao Transcendente se lhe torna árdua: paixões desregradas dentro do indivíduo, tentações múltiplas provenientes de fora, atrativos ilusórios do mundo sensível concorrem para obcecar a inteligência e debilitar a vontade na sua demanda de bens espirituais.

Se tal é a condição do homem no que diz respeito ao conhecimento das verdades naturais concernentes a Deus e à religião, ninguém terá dificuldade em admitir a grande con­veniência de que Deus mesmo ensinasse ao gênero humano noções tão importantes (trata-se do último Fim da criatura!); pode-se mesmo afirmar que a revelação sobrenatural era moralmente necessária (isto é, necessária não por exigência da natureza humana, o que seria necessidade física, mas por motivos derivados da conduta do homem na terra). E, se era moralmente necessária, pode-se também dizer de antemão que muito provavelmente Deus, em sua providência, a quis outor­gar, a fim de assegurar ao homem um reto curso de vida e a sua união definitiva com o Criador.

Uma ulterior observação ainda se concatena com as precedentes: pelo fato de ser provável que Deus se tenha revelado sobrenatural­mente ao homem, incumbe a qualquer indivíduo que tome consciência disto, a obrigação de se certificar da existência ou não de tal revelação. Furtar-se a este dever seria, de um lado, desprezar o bem do próprio sujeito, injuriando a natureza humana, e, de outro lado, ofender o Criador mesmo, Autor da Revelação reconhecida como provável.

Mas como então atender a esse dever de procurar a pos­sível Revelação sobrenatural? Que critérios deverão ser leva­dos em conta?

2. Os sinais da Revelação Divina

Dado que Deus tenha decretado revelar-se à criatura, po­de-se admitir sem dificuldade que haja munido essa revelação de sinais suficientemente claros, para que todos os homens a pudessem distinguir e abraçar com segurança. Esses sinais (também chamados «motivos de credibilidade») serão, em pri­meira linha, realizações extraordinárias verificadas no curso da natureza e só explicáveis pela intervenção da Onipotência Divina; tais realizações extraordinárias, porém, se deverão prender a determinada doutrina como selo de autenticidade aposto à mesma.

Dois são os tipos de sinais que os homens, quer eruditos, quer simples, sempre consideraram como fortes comprovantes de uma intervenção da Divindade no mundo: o milagre e a profecia. A estes critérios se acrescentam, muito razoavel­mente, ainda outros — o que nos permite estabelecer o quadro seguinte:

Sinais da Revelação Divina ou motivos de credibilidade:

externos (objetivos)

o milagre e a profecia

a sublimidade da doutrina e os frutos de vida digna que ela suscita em quem a

professa

internos (subjetivos)

a satisfação das mais espontâneas aspirações religiosas do gênero humano

a paz profunda experimentada pelos discípulos da dita doutrina

Os critérios acima, considerados isoladamente, terão uns mais, outros menos valor apodíctico; principalmente os cri­térios subjetivos, que dependem de experiência pessoal, pode­rão deixar lugar a dúvidas. Acontece, porém, que a satisfação simultânea de todos os critérios da lista constitui prova inelutável. Com efeito, tem-se então o que se chama «o argumento por convergência de probabilidades»; se várias linhas que se poderiam dispersar em direções diversas, na realidade confluem para um só termo, é preciso assinalar uma razão suficiente ou adequada para essa confluência; ora tal razão suficiente não poderá ser senão a existência do termo mesmo para o qual as diversas linhas confluem. No nosso caso:. . . não poderá ser senão a veracidade da doutrina que cada um dos critérios da Revelação atesta do seu modo.

Pois bem; o Cristianismo, e o Cristianismo só, em sua forma tradicional, católica, se beneficia de tal confluência de critérios ou motivos de credibilidade. A existência do Cristianismo, como ele hoje se apresenta ao mundo através de vinte séculos, guardando de geração em geração o contato com Cristo e os Apóstolos, requer uma razão suficiente; e esta só pode ser a presença e a ação de Deus mesmo que se revela pela Igreja Católica.

A demonstração minuciosa desta tese foge ao âmbito da nossa questão; encontra-se sumariamente em «P. R.» 8/1957, qu. 1 e 7/1958, qu. 4. Contudo abaixo empreendê-la-emos de certo modo, considerando em particular o primeiro motivo de credibilidade, que é o milagre.

3. O Milagre

1. Por milagre propriamente dito» entende-se em Teo­logia um fenômeno que

a) ultrapassa o alcance de toda e qualquer força criada e, por conseguinte, é realizado por Deus,

b) realizado a fim de testemunhar a presença e a ação do Todo-Poderoso no mundo.

Ao lado do milagre assim estritamente definido, deve-se reconhecer a existência de fenômenos que, embora se apresen­tem como extraordinários, estão perfeitamente enquadrados dentro dos limites de forças naturais :

são efeitos de faculdades da alma humana ainda não de todo exploradas pela Psicologia: fenômenos paranormais ( = ao lado dos normais). Têm origem em choques psíquicos, estados patológicos, às vezes indiscerníveis ao comum dos es­pectadores, mas cada vez mais explanados pela nova ciência chamada «Parapsicologia»;

podem também ser efeitos de espíritos que, vivendo fora do corpo (anjos bons e maus, almas dos defuntos), possuem capacidade de ação mais ampla que a do homem; têm-se então os chamados «fenômenos preternaturais» (=postos além da natureza humana, não, porém, além de toda e qualquer natu­reza criada; não são fenômenos «sobrenaturais», isto é, pos­tos acima da natureza criada). Os fatos preternaturais nada têm que ver com o milagre propriamente dito ; este é sempre evidente obra de Deus.

A índole de sinal, repitamo-lo, é essencial ao conceito de milagre. Por conseguinte, não entram em consideração, para quem procura se de fato existe uma religião revelada, fenô­menos extraordinários que correspondam exclusivamente à curiosidade, à vaidade ou à fantasia dos homens, mas não levem para Deus e o genuíno culto de Deus no monoteísmo (o panteísmo e o politeísmo são aberrações).

Os artigos de «P. R.» 2/1957, qu. 2 e 6/1958, qu. 1 pro­curam mostrar como, apesar dos progressos da ciência con­temporânea e não obstante a multiplicação dos fenômenos parapsicológicos, ainda se pode em nossos dias dar pleno cré­dito a milagres. A fim de não repetir quanto aí foi dito em estilo especulativo, esforçar-nos-emos abaixo por evidenciar o mesmo resultado, seguindo outra via: à luz de um caso con­creto, verificaremos como certos fatos são tidos, com o con­curso da razão humana, quais autênticos testemunhos de Deus ou quais genuínos milagres.

2. Desde fins do século passado, existe em Lourdes (França) um «Bureau Médical das Constatations», repartição destinada a examinar com a mais moderna aparelhagem técnica curas que os peregrinos dizem obter naquela cidade. A repartição, seus laboratórios e suas pesquisas são franquea­dos a médicos de toda e qualquer ideologia, aos quais se re­conhece o direito de examinar os arquivos, controlar os exames de seus colegas e tomar parte nas discussões que cada caso provoca. Em 1948, por exemplo, foram fazer estágio de con­trole em Lourdes cerca de mil médicos de fora, dos quais trinta e sete eram professores de Faculdades, mais de cem clínicos ou cirurgiões de hospitais e numerosos especialistas.

E como funciona o «Bureau Medical des Constatations»?

Logo que um doente se apresente como curado na cidade, os médicos encarregados do respectivo inquérito ouvem os depoimentos do «miraculado» e de seus acompanhantes e conhecidos, depoimentos que ficam arquivados juntamente com as observações dos médicos examinadores. Convida-se, a se­guir, o paciente a voltar a Lourdes dentro de um ano, levando atestados médicos diversos; deverá então ser submetido a novo exame. Esta segunda instância é suficiente para eliminar vários casos: ou a pessoa não volta ou, caso volte, verifica-se que a cura foi efêmera ou que não há provas suficientes de que o doente, ao chegar a Lourdes, sofria realmente da mo­léstia alegada.

Dado que o segundo exame do «Bureau» nada descubra contra a pretensa cura, o paciente é deferido a outra Comissão de Médicos, internacional, a qual recorre a novos e mais rigo­rosos testes, rejeitando geralmente boa parte dos casos alegados.

Suposto que as duas equipes de médicos não encontrem razão para eliminar tal ou tal caso, não declaram tratar-se de milagre, mas apenas de fenômeno inexplicável pelos atuais conhecimentos da medicina.

A título de ilustração, eis aqui as cinco condições estipuladas pelos examinadores para que possam fazer tal declaração:


1) tenha havido moléstia grave, acompanhada de alterações anatômicas (modificações de tecidos, perda ou superprodução destes), moléstia diagnosticada e comprovada segundo os mais recentes métodos de pesquisas, com previsão de evolução sinistra ao menos no órgão ou nos tecidos afetados (não se levam em conta, por conse­guinte, doenças meramente nervosas);


2) ineficácia de todo método terapêutico ou ao menos de todos os recursos medicinais aplicados ao paciente;


3) haja extinção de toda lesão orgânica em prazo tão curto que se possa falar de cura instantânea (instantânea em sentido absoluto ou, ao menos, em sentido relativo);


4) não se verifique a demora natural necessária para a recupe­ração gradativa das funções orgânicas perdidas (o paciente deverá imediatamente poder andar, comer e digerir com toda a normali­dade ...). nem a demora exigida para a absorção de edemas, derra­mamentos de pleura, para a destruição de massas de tumores, etc. Esta condição, porém, não exclui que o estado geral de saúde do enfermo faça rápidos progressos mediante aumento de peso, de forças, etc;


5) seja a cura duradoura, isto é, definitiva, capaz de ser com­provada por exames sucessivos feitos a notáveis intervalos de tempo.

A declaração das comissões médicas levada ao conheci­mento das autoridades eclesiásticas não basta para que estas apregoem «milagre». À autoridade da Igreja é necessário examinar ainda a segunda nota característica do milagre, isto é, se o fenômeno tem índole autenticamente religiosa, índole pela qual o milagre propriamente dito se distingue de qualquer manifestação diabólica ou simplesmente parapsicológica. Por isto, em ulterior instância, o paciente munido dos atestados médicos é entregue a uma comissão de teólogos e juristas eclesiásticos, que indagam, segundo os critérios estabelecidos pelo Papa Bento XIV (1740-58),

1) se a cura foi perfeita e definitiva,

2) se, nas circunstâncias e nos efeitos do fenômeno ve­rificado, nada se depreende de frívolo, ridículo, desonesto, torpe, violento, ímpio, soberbo, fraudulento ou impugnável a qualquer título moral que seja,

3) se, ao contrário, tudo no fenômeno é decente, sério. convidativo à piedade, à religião e à santidade (requer-se ex­plicitamente que o fenômeno se haja verificado em resposta a atos de fé e de virtudes, como sejam a oração, uma peregri­nação, a aplicação não-supersticiosa de uma relíquia, etc).

Caso a estas três questões se possa dar resposta afirma­tiva, então a comissão de eclesiásticos declara que, com cer­teza moral (isto é, com o grau de certeza que a prudência humana pode obter), o fenômeno previamente tido pelos médicos como estranho a qualquer explicação científica pode ser considerado como milagre estritamente dito (note-se que uma sentença dessas nunca é imposta qual matéria de fé; fica a todo católico a liberdade de aceitá-la ou não).

Ainda que os casos hoje considerados milagrosos possam um dia vir a ser explicados por agentes naturais, o simples fato de que se produzam em nossos dias de maneira inexplicável e como resposta a atos de fé, leva a concluir o seguinte: tal fenômeno, que talvez pudesse ter sido causado por agentes naturais, foi realmente suscitado por Deus a fim de atestar a existência do Criador ou alguma verdade revelada por Este; em suma, a fim de ser sinal de Deus.

Entende-se que a maioria dos casos estudados não resista aos sucessivos exames das três comissões, não por serem frau­dulentos, mas por serem suscetíveis de elucidação meramente natural. Assim é que dos milhares de «curas» anunciadas em Lourdes desde o começo das aparições (1858) somente 54 são hoje reconhecidas tanto pelas autoridades médicas como pelas eclesiásticas (talvez se pudessem registrar mais casos genuínos nesse período, se as averiguações e estatísticas tivessem sido mais regulares e se a comissão canônica não tivesse funcio­nado apenas durante vinte e dois anos).

Em 1946, por exemplo, foram registrados 14 casos de «curas»; destes, 7 apenas se submeteram a novo exame após um ano e finalmente 3 foram considerados como autênticos. Em 1947, dos 35 casos registrados, 14 foram reexaminados um ano mais tarde e 6 apenas obtiveram pleno reconhecimento médico.

Estas notícias dão-nos a ver, entre outras coisas, como a Igreja está pronta a levar em conta qualquer objeção que por parte da ciência se possa fazer contra o milagre. Longe de pretender nutrir uma mentalidade fanática ou falsamente mís­tica, ela só apela para este, quando não há outra explicação para determinado fato. «O uso da razão precede a fé», decla­rou oportunamente Pio IX, em 1855 (cf. Denzinger, Enchiridion 1651).

À guisa de complemento, visando facilitar ao leitor um juízo objetivo sobre o assunto, apresentamos aqui um dos portentos mais recentes e famosos obtidos fora do Catolicismo, portento este que a opinião pública na Inglaterra e no estrangeiro chegou a qualificar de «milagre» do «Messias» indonésio Mohammed Pak Subuh (relato encontrado na revista «Paris Match» n° 453, 14/XTI/1957. págs. 18-27).


Em junho de 1957 a artista de cinema Eva Bartok jazia num leito de clínica em Hollywood, aguardando ser operada de tumor canceroso dentro de poucas horas. Repentinamente, porém, à meia-noite acordou sobressaltada com uma voz que lhe mandava seguir viagem imediatamente para Çoombs Spring (Inglaterra), onde vivia uma colônia de ascetas budistas, recrutados na alta sociedade inglesa, sob a orientação de Mohammed Pak Subuh e John Bennett. Este último era um inglês que em viagem pelo Oriente fora iniciado no ocultismo e no misticismo da Arábia e da Índia e que Eva Bartok já conhecia havia muitos anos. Em Coombs Spring, dizia a voz, Eva recuperaria a saúde.


Em desespero de causa, a artista rendeu-se a esta intimação. Tomou logo o avião e em breve viu-se no antigo palácio de Coombs Spring, onde John Bennett muito amigavelmente a recebeu; fê-la repousar e introduziu nos seus aposentos o famoso «Saddhu» (= santo) indo­nésio, que só em casos raros saia de sua cela e de seu isolamento meditativo. Pak Subuh curaria Eva, assegurava Bennett.


Refere então a reportagem que no primeiro encontro o indonésio, de olhos negros cheios de calor e ternura, de tez sombria, estatura pequena, seca e impressionante, se aproximou do divã vermelho onde jazia a artista. Estava acompanhado por uma mulher revestida de seda, denominada Itu (=a Mãe), esposa e discípula do Mestre. Os dois visitantes diante da doente juntaram as mãos ante a face à maneira indu, e assim permaneceram imóveis durante horas. Eva, que já não dormia havia meses, acabou por cair no sono e só despertou após a saída dos dois orientais, maravilhosamente repou­sada...


Durante meses a fio o casal voltou diariamente à presença da enferma, retomando sempre aspecto e atitude impressionantes. Não lhe diziam palavra, pois só sabiam o idioma indonésio; apenas se comunicavam pelo olhar, o que contribuía para maior imponência da cena. Pouco a pouco Eva «sentia que lhe infundiam a sua força». Conseguiu levantar-se; foi recuperando o vigor corporal, até que finalmente se deu por completamente curada: «Tenho a impressão de que tudo que vivi até a minha cura não era senão um mau sonho. Despertei-me e minha vida começa», pôde ela dizer, como que reproduzindo as palavras de Buda após a sua «iluminação»: «Nasci para a vida verdadeira! Minha vida começa!». Eva, em conseqüência, anexou-se à comunidade de Coombs Spring, levando a vida severa dos demais ascetas da casa.


O episódio é impressionante, pois parece comprovar as práticas e a doutrina do budismo ou do induísmo em geral. Como apreciá-lo?


Num exame sereno, destituído de tese preconcebida, verificam-se em toda a história dessa cura evidentes sintomas de telepatia, trans­missão de pensamento, hipnotismo, sugestão, isto é, de elementos que não ultrapassam as faculdades psicológicas e parapsicológicas da natureza humana e que nos dispensam de apelar para extraor­dinária intervenção de Deus. Tenha-se em vista, por exemplo, a morosidade com que a cura foi sendo obtida; houve visitas sucessivas decorridas em silêncio impressionante, sendo que os visitantes tomavam fisionomia e posições características, ao passo que a visitada logo no primeiro encontro caiu em profundo e benéfico sono. Esta trama se assemelha demais à dos fenômenos parapsicológicos, perdendo assim o direito de ser interpretada diferentemente destes. Se, por conseguinte, a fenomenologia acima descrita é suscetível de explica­ção natural, já não seria científico tomar o caso de Eva Bartok como autêntico milagre ou como sinal diretamente produzido por Deus para atestar a santidade de alguma doutrina ou de alguma pessoa.


Contudo não se nega possa haver verdadeiros milagres fora da Igreja Católica; quando, porém, se verificam, concorrem para levar ao único Deus. Cf. «P. R.» 6/1958, qu. 1.

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