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segunda-feira, 5 de julho de 2010

Religião: como não ser panteísta

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 007/1957)


Uma reflexão serena sobre o panteísmo permitirá formu­lar juízo seguro sobre esta ideologia.

1. «Panteísmo» (nome forjado pelo filósofo inglês J. Toland em 1705) é a doutrina que ensina ser Deus o Hèn kai Pãn dos gregos, o «Um e Tudo», a única substância existente, a qual, por via de emanação, se manifesta nos diversos entes visíveis. Deus, pois, vem a ser o substrato neutro, impessoal, pressuposto por cada fenômeno da natureza. Acha-se em con­tínua evolução; em cada indivíduo humano que se aperfeiçoa, é a Divindade que vai tomando consciência de si.

Os filósofos, no decorrer dos séculos, têm apresentado a ideologia panteísta sob diversas modalidades: enquanto alguns ensinam simplesmente que «tudo é Deus e Deus é tudo», ou­tros preferem afirmar que Deus é a alma do mundo ou o principio («espiritual», como dizem) imanente que dá subsis­tência ao mundo. Todavia qualquer destas fórmulas implica que Deus se identifique, total ou parcialmente, com a Natu­reza posta em evolução.

2. Ora é esta identificação que nos interessa submeter ao exame da razão. Três são as observações que ela sugere:

a) Deus não se pode (nem parcialmente) identificar com o mundo, pois, por definição, é o Absoluto, Necessário, Ilimi­tado (o que o panteísmo reconhece perfeitamente), ao passo que o mundo é relativo, contingente e limitado em suas perfei­ções (coisa que a experiência ensina sobejamente). Ora o mesmo sujeito jamais será simultaneamente, e sob o mesmo ponto de vista, Absoluto e relativo, pois estes predicados se excluem mutuamente.

b) Não pode haver evolução ou progresso em Deus, pois toda evolução diz ou aquisição ou perda de perfeição; em qual­quer caso, implica imperfeição, o que é absurdo em Deus. A hipótese de um Deus ou de uma Substância divina em evolu­ção tenta explicar o mundo não por um Ser absoluto, mas por um «Tornar-se» absoluto; ora o «tornar-se» absoluto é contra­ditório em si, pois «tornar-se» significa lacuna em demanda de plenitude, ao passo que o Absoluto diz perfeição plena.

c) Ademais, põe-se a questão: a substância única do universo que evolui para sua maior perfeição, como se eleva ela acima de si mesma? Se é a única realidade, onde encontra o apoio necessário para subir?... Onde encontra a fonte das perfeições que ela por definição não possui? O «mais» sairia do «menos»? A lógica ensina o contrário... Diga-se, pois, que a evolução do imperfeito para o perfeito supõe na base de tudo uma realidade de perfeição infinita; é a atividade deste Ente primordial que produz novos seres, os quais são necessariamente menos perfeitos e, por conseguinte, finitos, pois não pode haver dois infinitos ou dois absolutos sob o mesmo ponto de vista.

O Ente primordial nada ganha quando produz os seus efeitos, pois ao Infinito nada se pode acrescentar; ele é, por­tanto, essencialmente distinto dos seus efeitos e do mundo. É o Deus transcendente que não toma consciência de si, mas desde todo o sempre é Personalidade plenamente consciente.

3. Mas será que não se pode salvar o panteísmo me­diante a fórmula: Deus está presente, imanente a todas as coisas, como a alma se acha no corpo?

O enunciado ê ambíguo. Se significa que Deus é ima­nente a tudo como elemento integrante (e tal é o sentido que lhe dá o filósofo panteísta), a fórmula não se exime às difi­culdades anteriormente propostas: Deus não pode ser cons­titutivo de seres em evolução.

A mesma fórmula, porém, pode significar que Deus está presente a tudo, simplesmente como o agente está presente a qualquer dos objetos de sua ação. Tal é a concepção da sã razão, reafirmada pelo Cristianismo: Deus é o Criador que do nada tirou todos 06 seres e os conserva na existência; por conseguinte, onde quer que haja uma parcela de ser, Ele aí está presente — presente, porém, porque age, conservando, não porque se identifique com a substância do ser contingente. A Filosofia cristã, consequentemente, ensina que Deus é, ao mesmo tempo, transcendente, porquanto ultrapassa infinita­mente os demais seres em perfeição, e imanente, porquanto a sua ação criadora e conservadora atinge o íntimo de tudo que existe. Se o panteísmo objeta que nada pode existir fora de Deus, a sã Filosofia responde que nada pode existir fora ou independentemente da ação causal de Deus, mas que todos os seres limitados são substâncias distintas da substância de Deus.

Em última análise, verifica-se que o panteísmo só se pode sustentar caso quem o professe, incoerentemente atribua à Substância única traços de um Deus pessoal, distinto do mundo.

4. Pergunta-se, porém: se tão pouco lógico é o pan­teísmo, porque possui hoje tantos adeptos?

Dois parecem ser os principais motivos da sua voga:

a) identificar Deus com a Natureza parece engrande-cê-Lo, ao passo que atribuir-Lhe personalidade seria diminuí-Lo. Todo homem tem consciência de quanto é limitada a sua personalidade e grandiosa a Natureza com seus profundos mistérios.. . Em conseqüência, preferem alguns dizer que Deus não é personalidade, mas «super-personalidade». Isto, porém, equivale a colocar o Altíssimo abaixo do homem; é mística ilusória. Justamente a mais elevada perfeição do ente con­siste em ser dotado de conhecimento intelectivo e de livre vontade (atributos que constituem a personalidade). Esta per­feição não inclui em seu conceito alguma imperfeição (como, por exemplo, o arrependimento envolve a noção de falta pré­via); por isso não há razão para a denegar a Deus. O Altíssi­mo só não é personalidade à maneira exígua do homem.



b) Ainda uma razão de ordem psicológica se impõe à nossa consideração: o panteísmo ou monismo fazendo coincidir Deus com a Natureza, emancipa o homem, possibilitando-lhe conceber a sua religião segundo o seu bom senso subjetivo ou... os seus caprichos. Em última análise, o Deus do panteísmo vem a ser mera fórmula a recobrir auto-afirmação e soberba do homem. Não será exagero dizer que o panteísmo praticamente equivale ao ateísmo. É o que, do seu modo, dava a entender uma das grandes mentoras da Sociedade Teosofista, Annie Besant, a qual verificava o seguinte:

«A primeira coisa que afirmam os teosofistas é que toda idéia de sobrenatural deve ser rejeitada... A segunda... é a negação de um Deus pessoal; daí decorre que os agnósticos e os ateus assimi­lem mais facilmente os ensinamentos da Teosofia do que os fiéis dos credos ortodoxos (Why I became a theosophist 17).

A Sra. Besant assim averiguava a afinidade prática do panteísmo com o ateísmo.

Aliás, os historiadores observam que, entre as correntes do pensamento moderno, não são muitos os sistemas filosóficos ateus; o ateísmo costuma ser prático, in­consciente, não baseado em princípios doutrinários; a Filoso­fia não-cristã tende, antes, ao panteísmo e ao monismo. O motivo deste fenômeno percebe-se sem grande dificuldade: o ateísmo parece violentar demais a razão, que espontaneamente é levada a reconhecer a existência de uma Causa Primeira; o panteísmo então vem a ser a fórmula que torna o choque menos veemente e, não obstante, permite ao indivíduo fazer-se autônomo; bajula o orgulho sem o desmascarar e sem fazer perder ao soberbo a aparência de homem religioso. É o «Ma­nual Informativo do Membro da Sociedade Teosofista no Bra­sil» que ensina ser o homem «o seu próprio legislador abso­luto, o seu próprio dispensador de glória e obscuridade, o que por si mesmo decreta a sua vida, recompensa ou castigo» (ed. São Paulo 1951, 22) (!).

Em conclusão, parece que quem tem consciência do que significa o panteísmo, não pode deixar de rejeitar esta ideo­logia em nome da própria inteligência humana.

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