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Jean Luchaire foi, em Paris, Presidente da Comissão de Imprensa Parisiense durante a ocupação alemã (1940-44) e, como tal, colaboracionista com o nacional-socialismo.
Foi, mais tarde, preso pelos franceses, seus compatriotas, e acusado de traição. Condenaram-no à morte, que ele sofreu por fuzilamento em Montrouge aos 22 de fevereiro de 1946. O fim de seu itinerário de vida é muito significativo pela sinceridade e coragem de que deu provas.
Filho de família racionalista, nada aprendera de religião no lar. Levou vida de burguês culto, que pertencia a um grupo de intelectuais incrédulos e dados ao gozo dos prazeres terrestres.
Uma vez acusado e preso em Fresnès, viu-se ocioso e entediado na prisão; por isto pediu ao Capelão que lhe emprestasse alguns livros. . . Aos poucos foi evoluindo em sua mentalidade e, de cético que era, veio a pedir o Batismo, fez a Primeira Comunhão, quis que o seu casamento civil fosse legalizado na Igreja e pôs-se a viver o breve resto de sua vida em serenidade sorridente.
Deixou um caderno de Memórias em que anotou as razões para crer e os motivos para duvidar. Ele os explana imaginando estar mostrando a um colega fictício o caminho que ele mesmo percorreu:
"Quis percorrer essa estrada de novo, não só para te levar à alegria que agora é minha, mas para averiguar o sólido fundamento das minhas etapas. Cheguei ao termo, nada tenha a cortar ou a retificar".
Eis como se desenvolve esse itinerário, a partir do problema inicial:
"Tu me dizes que és incrédulo. . . Só podes aceitar aquilo que vês, aquilo que tocas ou as verdades constatadas por tua razão. . . Está bem, raciocinemos!
Então Luchaire interroga o interlocutor imaginário como ele mesmo se interrogara:
"Teus sentidos, sabes que são incompletos, insuficientes. Eles te proporcionam algumas certezas. Não digas que te propiciam todas as certezas.
Tua razão? É um guia infinitamente seguro. Utiliza-o. Se queres, serve-te tão somente dela-.
Luchaire retrocede então às origens do mundo e da vida:
"No decorrer dos teus longos raciocínios, chegas a esta pergunta muito sensata: 'Quem criou a Terra ou as nebulosas das quais a Terra saiu?'
Aí tua razão pára. Pois responder: A matéria sempre existiu' é o mesmo que não responder. É uma confissão de incapacidade".
Diante das palavras que despertam a idéia de infinitude, ausência de limites, verifica:
"As sílabas de tais palavras estão nos teus lábios, mas o seu significado não entra em teu espírito. És obrigado a concluir: 'Não sei!' "
Conhecendo por experiência os refúgios em que a razão se encerra para não ir até o fim do seu itinerário, Luchaire se torna incisivo:
"Será que te podes consolar com a tua incapacidade dizendo: 'O que eu não sei, os meus descendentes longínquos o saberão um dia?'. . . Não; os homens dirão ainda frente aos enigmas fundamentais: 'Eu não sei!"'
Assim, através desses 'Não sei' que o deixaram sem resposta a propósito do sentido da vida, Luchaire chega à "hipótese Deus". É um Deus invisível, sem dúvida, mas. . . se Ele fosse a resposta. . .!? Ele se interpela a si mesmo:
"Cego, podes recusar a existência da luz, mas então consentes em ficar enfermo. Eu me recusei a esta atitude".
Com o seu interlocutor fictício, ele examina à luz da "hipótese Deus" os grandes movimentos interiores do seu coração e da sua consciência:
"Tu amaste, tu amas. Por que, ultrapassando o mero instinto do macho, . . . tu, eu e nossos semelhantes experimentamos a teimosa necessidade de uma companheira de todos os dias? E por que procuramos às vezes essa companheira única mediante explorações desanimadoras?
Donde vem essa voz interior que te diz: 'Isto é mau', 'isto é bom'? ... Essa voz que chega em certos momentos a censurar até os teus instintos de conservação pequenos e grandes?. . . Se essa voz viesse de longe e se chamasse Deus?"
Esta primeira parte do diálogo termina com a conclusão:
"Deus ainda é para ti apenas uma fria explicação lógica, na falta de qualquer outra explicação suficiente; mas será que isto não é mil vezes melhor do que o teu Não sei inicial ou do que o apelo ao acaso, palavra esta humilhante para a tua dignidade? Já deste um grande passo; resta-te outro a cumprir. É preciso que passes da lógica à crença, da demonstração à Fé".
Agora Luchaire deixa as sinuosidades da razão para fazer ouvir as "palpitações da alma":
“Aqui eu te entrego a ti mesmo: sonda o teu coração, interroga as palpitações da tua alma. Esforça-te no silêncio da tua meditação por te comunicares com Deus. Se não o conseguires, isto não significará que não existe Deus, mas, sim, que Deus ainda não te quer falar porque não estás pronto para ouvi-lo. . . Mas, quando estiveres pronto, uma confiança calma e luminosa te penetrará: tu acreditarás!
O cego chega à luz - a certeza de Deus o penetra. Desde então:
"Tu compreendes a vida, já não tens medo da morte, porque já não crês na morte. Sentes Deus no teu passado, no teu presente e no teu futuro. Nada perdeste do que julgavas possuir outrora, e adquiriste nova e prodigiosa riqueza: ficaste sendo tu mesmo, mas tu te entregaste nas mãos dele. Tua vontade tornou-se submissa à dele. Tens confiança nele, no tocante á ti, aos teus bens, à humanidade inteira".
A seu modo, ele pronuncia o seu "Senhor, lembra-te de mim quando entrares no teu Reino". Tendo um pouco mais de tempo do que o seu antecessor no Gólgota, ele nos informa a respeito do seu encontro com Jesus:
“Jesus. . . só veio à Terra para lembrar, para mostrar Deus e para indicar aos homens como Deus deve ser compreendido e servido. Jesus, do qual a Igreja é a filha, . . . cuja perenidade e expansão são elas mesmas um milagre permanente e demonstrativo-.
Supera então as objeções e chega à Igreja:
“A partir deste momento, Deus, Jesus e a Igreja são inseparáveis em ti, pois não tem fé aquele que só tem fé pela metade ou com reservas. . . Já que necessariamente existem elementos humanos na Igreja, guarda frente a eles o teu direito de crítica e de reforma. Mas não te é lícito exercer esse direito sobre aquilo que na Igreja é de origem divina, isto é, derivado da palavra de Jesus ou dos seus discípulos diretos. O que Deus ditou é palavra divina; permanece tão perto quanto possível dessa palavra e tu estarás dentro da verdade...
Fresnes, 7 de fevereiro de 1946"
Uma vez proferida a sentença de condenação à morte, as autoridades recusaram o pedido de indulto ou graça. Eis então o que foram os últimos momentos de Jean Luchaire, segundo o testemunho do Capelão que lhe assistiu e que tudo contou aos colegas de prisão:
"No dia da sua morte, ele subiu no camburão em companhia de um jovem miliciano de vinte anos, que acabara de comungar também ele. Estavam numa manhã de primavera, fresca e clara. Rotineiramente disse o jovem: 'Que manhã bonita!' Luchaire colocou sua mão fraterna sobre o ombro do mesmo e sorriu-lhe: 'Tu verás, meu filho. Tudo será ainda mais belo dentro de dez minutos no Paraíso!
O texto dispensa comentários. Colhido no fascículo Cahiers du Clan n° 3, agosto 1967, artigo La mort en face. Ver também Xavier Vallat, Feuilles de Fresnes. Obras citadas por Jacques Loew, em : La Vie à l'Ecoute das Grands Priants, Fayard Mame 1986, pp. 37-42.
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