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sexta-feira, 28 de maio de 2010

Alma Humana: Espiritualidade (II)

ESCOLA "MATER ECCLESIAE"



CURSO DE FILOSOFIA POR CORRESPONDÊNCIA


IV. PSICOLOGIA FILOSÓFICA


MÓDULO 20: A ALMA HUMANA — ESPIRITUALIDADE (II)

Continuando a examinar os argumentos em favor da espiritualidade da alma humana, abordaremos agora o da linguagem, tema este complexo.

Começamos por indagar:

Lição 1: Em que consiste o falar?

— A linguagem é a capacidade que temos de formular conceitos universais e exprimi-los mediante sons concretos, que variam de idioma para idioma. Assim os conceitos de pai e mãe, por exemplo, são conceitos universais, que todo ser humano concebe espontaneamente, mas que cada povo ou cada grupo lingüístico exprime de modo diferente. O homem é capaz de emancipar-se de determinado som associado a determinado conceito universal para propor exatamente o mesmo conceito mediante outra expressão fonética; é o que se dá com os tradutores, que procuram guardar exatamente as mesmas mensagens intelectuais através de diversas sonorizações: pai, père, padre, father, Vater, pater, 'ab...

Quem olha para a cavidade bucal de um homem e a de um macaco, é propenso a dizer: se o homem fala, o macaco também fala, pois organicamente este dispõe de tudo o que o homem possui para falar. Não obstante, o macaco não fala. Isto só se pode explicar pelo fato de que no homem há algo mais do que no macaco; esse algo mais é a espiritualidade do seu princípio vital. Com efeito; o homem só pode falar porque é capaz de perceber que diversos sons não significam sempre diversos conceitos ou porque é capaz de distinguir entre o som concreto e o conceito universal, imaterial. Isto denota no homem a presença de uma alma imaterial ou espiritual.

Aprofundando a temática, perguntamos:

Lição 2: Como teve início a linguagem?

A linguagem humana em seus inícios deve ter tido índole estritamente emotiva. Tratava-se possivelmente de simples canto que ritmava os passos do viandante ou o trabalho executado por mãos de caçador ou de coletor de frutas e raízes; devia asseme-lhar-se aos gritos dos animais a exprimir dor ou deleite, receio ou desejo. Aos poucos esses sons terão tomado o valor de sinais ou símbolos, aptos a ser repetidos por diversos indivíduos postos em idêntica situação: tal som foi associado (em virtude de afinidade espontânea, natural ou por. um artifício convencional) a tal tipo de sentimento ou idéia.1 Em outros termos: verificou-se no plano da fonética o que se deu no do comércio: outrora o comércio se fazia pela troca de bens naturais (cereais, gado, verduras, etc), tendo sido estes posteriormente substituídos pela moeda de metal e até pelo papel-moeda; assim também aos sons foi atribuído, por um acordo tácito entre os interessados, um valor de símbolo; na mente dos ouvintes, o "valor som" foi sendo trocado por outro valor (de ordem mental); o som sugeria uma idéia precisa... Uma vez que se despertou nos homens a consciência do "som-valor" ou do "som-símbolo", a descoberta foi sendo mais e mais explorada a aperfeiçoada; cada indivíduo foi retendo na memória, para seu uso pessoal, o simbolismo dos diferentes sons postos em circulação. — A vida em sociedade tornou-se poderoso estimulante do desenvolvimento da linguagem: em atos e cerimônias coletivas impunham-se aos membros do mesmo clã certas manifestações vocais previamente estabelecidas por convenção; quanto mais se acentuou o progresso da vida social, tanto mais se foi aprimorando a linguagem.

"Tal hipótese, embora não possa ser demonstrada, não carece de verossimilhança. Ela tem a vantagem de fazer compreender como a linguagem é um produto natural da atividade humana..., é um resultado da adaptação das faculdades do homem às neces­sidades sociais. Para entender a explicação acima dada, basta admitamos que o homem primitivo tenha um dia tomado consciência de que o som pode ser sinal. Uma vez adquirida esta consciência, a linguagem se foi desenvolvendo por via de diferenciações sucessivas" (J. VENDRYES, Le langage. Paris 1950, 17).

Convém sublinhar que o ato lingüístico primordial consistiu em atribuir ao som o valor de símbolo. É este processo psicológico que distingue a linguagem humana da dos animais irracionais. Com efeito, no homem o som natural (que o irracional também poderia emitir) adquiriu uma função objetiva, variável em larga escala segundo convenções previamente estabelecidas pelos indivíduos ou pelos povos. O cão, o macaco, o pássaro emitem, sem dúvida, gritos e cantos que correspondem claramente a estados psíquicos de bem-estar, espanto, furor, desejo, apetite, etc, e que são entendidos como tais pelos animais congêneres e pelo próprio homem. O pássaro sabe lançar um clamor, por exemplo, para chamar a si a mão de alguém que lhe apresente uma folha de alface; tal objeto nele provoca tal som concreto (como reflexo condicionado); som e objeto material estão, para ele, intimamente associados entre si. E não há vestígios de progresso e adaptação da "linguagem" do animal irracional no decorrer dos tempos, apesar das numerosas tentativas que os estudiosos e domesticadores têm feito neste sentido... Verifica-se, sim, que os animais aprendem numerosos atos assaz complicados, não, porém, o de falar ou atribuir significado simbólico, universal, a determinado grito: é justamente por não perceber o valor do "som sinal de..." que o papagaio repete mecani­camente, com ou sem propósito, as mesmas "frases". Há contudo animais, como o chimpanzé, cujos órgãos faciais seriam perfeitamente capazes de proferir palavras como o homem as profere; o macaco, por mais que imite o seu dono, jamais imita a fala deste.

Somente o homem sabe atribuir a tal som um valor independente da presença de tal ou tal estímulo externo. Esta arte supõe no indivíduo humano a inteligência, ou seja, a faculdade de abstrair do concreto e material, para conceber noções gerais, aplicáveis a muitos indivíduos análogos entre si; a inteligência, e somente ela, é capaz de apreender o que há de essencial e uno sob as múltiplas notas sensíveis que caracterizam objetos concretos.

Na base destas observações é que, com toda a razão, se diz que a faculdade de falar caracteriza a natureza racional ou intelectiva do homem, natureza de que carecem os animais inferiores, incapazes de conceber noções universais.

Os estudiosos têm efetuado experiências muito significativas no terreno da lingua­gem. Chegaram a educar, um ao lado do outro, nas mesmas condições de vida, um filhote de macaco e uma criancinha (ser humano), de modo a poder acompanhar minuciosamente o desenvolvimento de suas funções. Verificaram que até os dezoito meses de idade um e outro reagiam aos estímulos extrínsecos de modo semelhante; respondiam aos mesmos testes com sucesso variável, mas geralmente obtendo empate final; apenas o macaco se mostrava mais hábil e ligeiro nos seus movimentos físicos, enquanto a criança manifestava mais capacidade de prestar atenção. Após determinado prazo, porém, verificaram que a criança, por seus progressos, se distanciava do concorrente de sorte a tornar vã qualquer comparação ulterior. A criança começou a falar propriamente, transpôs o limiar da linguagem, que a caracterizaria como ser humano.

De modo geral, a criança, com poucos anos de idade, coloca as impressões recebidas pelos sentidos (vista, ouvido, tato, olfato...), impressões que também o animal irracional colhe, a serviço de uma faculdade de conhecimento superior: a razão. Esta, e só esta, percebe o significado intrínseco de cada situação, sabe também concatenar os acontecimentos da vida, estabelecendo entre eles relações de causa e efeito, meio e fim. Em conseqüência, emite sons concebidos bem a propósito, palavras e frases que têm valor perene, universal..., coisa que o animal infra-humano não faz, porque não tem razão ou inteligência.

Lição 3: Uma objeção

Nos últimos anos, a psicóloga norte-americana Francine Patterson fez surpreen­dentes experiências com uma fêmea de gorila chamada Koko; terá conseguido ensinar a este animal 375 sinais ou gestos correspondentes a ideias variadas. Outros pesquisa­dores, na base de semelhantes afirmações, julgam que o homem não é mais do que um macaco aperfeiçoado.

— Esta conclusão merece atenção.

Em primeiro lugar, observamos que, quando fatos concretos são apresentados à discussão dos filósofos, psicólogos, antropólogos..., importa, antes do mais, ter relatos objetivos e fidedignos de tais ocorrências. Ora quem refere as suas experiências, não raro tende a interpretá-las simultaneamente ou, com outras palavras, refere-as a partir das premissas filosóficas que lhe são próprias; assim o leitor recebe não somente a notícia fria e objetiva das ocorrências, mas é, ao mesmo tempo, sugestionado a aceitar determi­nada interpretação de tais fatos ou dados empíricos.

Ora a Psicologia moderna apresenta, entre outras correntes, a do empirismo, que se difundiu principalmente nos países de língua inglesa. Está outrossim muito influenciada pelo Positivismo e o Neopositivismo. Estas escolas apenas registram dados empíricos ou fenômenos e renunciam a procurar causas não empíricas (metafísicas) para os mesmos; verificam que o fenômeno B se segue ao fenômeno A e renunciam a procurar saber se existe relação de causalidade entre A e B e, eventualmente, qual seria essa causalidade. De modo especial, note-se: a psicologia que o empirismo inspira, é uma psicologia sem "anima" ou sem sujeito definido dos fatos psicológicos; ela se limita à descrição fenomenológica dos fatos psíquicos. Por isto, quando Francine Patterson diz que o comporta­mento do gorila é semelhante (ou mesmo idêntico) ao do ser humano, guardando apenas diferença gradativa em relação a este, põe-se legitimamente a pergunta: que entende a psicóloga por "semelhante" ou "idêntico" no caso? — Reconhecemos, sim, a semelhança das atitudes que ela atribui à gorila com aquilo que o ser humano geralmente pratica. Trata-se de semelhança de fenômenos ou de dados experimentais, que não implica necessariamente identidade de essência ou de consciência psicológica. Dizemos que o animal pré-humano e o homem são capazes de exprimir sentimentos e afetos, mas só o homem emite conceitos ou tem pensamentos e linguagem conceituais. Com outras palavras: o homem e o gorila são aptos a dizer que concebem afetos de simpatia ou que sentem dor, mas somente o homem é capaz de dissertar sobre a simpatia, o amor e a dor. O animal é capaz de pedir água para beber, para refrescar-se ou para lavar-se, porque efe pode experimentar os efeitos da água e, por conseguinte, pode desejar experimentá-los; todavia só o homem é apto a discorrer sobre a água, enunciando, de maneira teórica e especulativa (não pragmática), o que a água é e aquilo de que ela se compõe.

Ora um psicólogo empirista contenta-se com a descrição dos fenômenos experi­mentados ou averiguados e, na base de tais averiguações, estabelece confrontos e afirma semelhanças ou identidades. Todavia o filósofo que não seja meramente empirista, mas que, através dos fenômenos, analisa as estruturas do ser e sonda as essências de cada qual, poderá ver diferenças essenciais por detrás de idênticos comportamentos fenome­nais ou empíricos. Ora, se Francine Patterson adota a filosofia empirista, entender-se-á que ela tenha conceito de linguagem diferente daquilo que se entende por linguagem humana em filosofia clássica. Em conseqüência, o seu relatório não será suficiente para se dizer que o gorila e o homem diferem entre si apenas por graus de perfeição no tocante à linguagem.

* * *

[1] Algo de semelhante se dá com a linguagem dos surdo-mudos: em vez de recorrer a sons, servem-se de gestos. Estes são associados a conceitos ou idéias, na base de afinidade ou de convenção arbitrária - o que permite boa comunicação de sentimentos, afirmações e perguntas entre tais deficientes

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