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domingo, 13 de maio de 2007

Papa: tu és Pedro

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 470/2001)

por Georges Suffert

Em síntese: O jornalista Georges Suffert publicou um livro que pretende ser uma apologia da Igreja, a qual existe há dois mil anos, apesar de ter atravessado períodos de crise e tormentas. Todavia o estilo do autor é, por vezes, superficial: ao descrever as situações dolorosas por que passou a Igreja, não menciona fatores importantes que as elucidariam. É tendente a certo sarcasmo (moda jornalística). Engana-se quanto à Teologia da Libertação. Além do quê, a tradução deixa a desejar, especialmente quando se trata de nomes próprios, títulos de livros ... - o que todavia não impede a boa compreensão do texto.

***

Georges Suffert é jornalista, não historiador profissional, que escreve uma história da Igreja num volume único de 517 páginas.

1 Professa ser católico:

"O autor deste livro não é verdadeiramente neutro em relação à história que conta. Precisemos então que ele é católico; por isto tenderá a fazer das posições tomadas por Roma o eixo central de sua narrativa" (p. 18).

Todavia o estilo de jornalista, um tanto sumário e por vezes superficial, faz que o autor nem sempre entre no âmago das questões abordadas; omite certos tópicos que poderiam elucidar e amenizar situações dolorosas, tornando-se assim unilateral, mais propenso a pôr em relevo as sombras do que as luzes da história da Igreja.

Apesar disso, G. Suffert julga estar propondo aos leitores uma discreta apologia da Igreja:

'"O ópio do povo', diziam as pessoas avançadas do século XIX. Na verdade, essa longa procissão, essa oração única que continua através do tempo e do espaço, só tem uma razão compreensível: trata-se da luta dos vivos em face da morte. Jesus confiou aos homens o mistério da ressurreição; a sua, a deles...

O que permitiu que a Igreja durasse? Haverá um mistério, quem sabe... um milagre explicando essa sobrevida? Para nos convencermos disto, basta olhar para essa trajetória" (p. 16). 1 Tu és Pedro - Tradução de Adalgisa Campos da Silva - Ed. Objetiva, Rio de Janeiro 2001, 160 x 220 mm, 517 pp.

Analisemos alguns tópicos importantes abordados pelo autor.

Inquisição

O jornalista não trata da temática com a devida profundidade. Fala da "invenção da Inquisição" (p. 210), da "repressão ideológica e doença pavorosa" (p. 211)... Todavia à p. 212 escreve:

"É preciso tentar imaginar o clima intelectual da época (séculos XII a XIV). Ponto de partida: a existência aceita de uma sociedade cristã. Tanto nas instituições políticas como nas regras jurídicas, o universo era naturalmente cristão. Aquele que se afastava da norma parecia um transgressor, um provocador, talvez mesmo um louco. A idéia de que esse indivíduo pudesse, em alguma medida, ter razão não ocorria a ninguém; a idéia de que, recusando as normas da época, ele estivesse no seu direito era impensável. Desconfiava-se da intervenção do diabo" (p. 212).

Estas observações são muito válidas. Todavia o autor podia ter acrescentado que

- em virtude do mencionado regime de cristandade, a Inquisição nunca foi um tribunal meramente eclesiástico. O Estado sendo oficialmente cristão, a lesão de um artigo de fé era lesão da ordem pública, que o Estado julgava ter o dever de reprimir;

- os medievais eram mais dados à metafísica, os homens modernos são mais dados à psicologia. Isto quer dizer que, para o medieval, o erro era sempre erro inescusável, ao passo que, para o cidadão moderno, o erro pode ser desculpável em virtude de falta de responsabilidade do delituoso.

Estas observações complementares são muito importantes para se reconstituir o quadro da Inquisição. Não se pode julgar o passado aplicando-se-lhe categorias do pensamento contemporâneo que os antigos não conheciam.

Indulgências

Às pp. 249s o autor trata das indulgências, que ele não compreendeu. Escreve em estilo jornalístico um tanto sarcástico:

"Os cristãos em geral não gostam de dilapidar seu pecúlio. Para estimulá-los a ser mais generosos, a Igreja anuncia que os doadores vão se beneficiar nos limites razoáveis - da mansuetude de Deus no dia do Juízo. As indulgências acabam de ser inventadas...

A partir do século XV admite-se que as indulgências podem beneficiar as almas do purgatório. O que é bem espantoso: esse lugar indistinto que, como mostrou Lê Goff, tem como função precípua tirar o juízo final da regra terrível do tudo ou do nada - quer dizer, a danação eterna -, o Purgatório é uma invenção relativamente recente. Se o termo inventado parecer chocante, basta substituí-lo pelo de 'tomada de consciência'. A Igreja, em suma, acha que, por intermédio de Cristo, o perdão é possível, como Deus quiser, e quando Ele quiser. O Purgatório traduz, numa fórmula, essa esperança"
(p. 250).

O texto é confuso e errôneo, a começar pela afirmação de que o purgatório é um lugar; na verdade é um estado de alma. O purgatório está documentado já na Escritura do Antigo Testamento; cf. 2Mc 12, 38-45, texto que demonstra como os judeus anteriores a Cristo já acreditavam numa purificação póstuma. Os cristãos herdaram essa crença do povo israelita.

Quanto às indulgências, não são esmolas apenas; são boas obras enriquecidas pelos méritos de Cristo; supõem o perdão dos pecados previamente obtido, e contribuem para apagar os resquícios de pecado que ainda ficam após a absolvição sacramental; o amor a Deus e o ódio ao pecado com que alguém pratica uma obra indulgenciada (recitação do Rosário ou do terço, leitura da Bíblia, visita a um santuário, jaculatórias...) fazem que a "ferrugem" deixada pelo pecado (mesmo já absolvido) vá desaparecendo. A propósito ver PR 437/1998, pp. 497 ss; 442/1999, pp. 127 ss.

Donde se vê que a instituição das indulgências nada tem que ver com captação de dinheiro, nem o purgatório é uma invenção. G. Suffert se enganou flagrantemente a respeito.

Lutero e a Reforma

G. Suffert procura respeitar Lutero; apresenta as peripécias de sua obra reformadora.

Todavia o historiador objetivo não esqueceria de enfatizar um pouco mais o envolvimento de Lutero com os príncipes da nação alemã, aos quais escreveu um libelo, excitando o seu nacionalismo contra Roma; tornou-se assim o porta-bandeira de uma atitude política, que muito incentivou o cisma religioso. No fim da vida, em suas alocuções de mesa (de refeições) ou Tischreden, dizia ele: "Há mil anos, Deus a nenhum Bispo concedeu tão grandes dons quanto a mim. É preciso gloriar-se dos dons de Deus (In mille annis Deus nulii episcopo tanta dona dedit ut mihi. Gloriandum est enim de donis Deis)" (Tischreden 5494 V 189).

Seria também pertinente ao quadro apontar a proteção concedida por Frederico da Saxônia ao reformador, em troca da qual Lutero reconheceu a Filipe o direito à bigamia.

Lutero deve ter sido um homem profundamente religioso, mas nem sempre foi feliz em suas opções movidas por fortes paixões e afetos. Ver a propósito PR 437/1998, pp. 439-456; 439/1998, pp. 548-556.

Teologia da Libertação

O autor parece não ter compreendido o que é a Teologia da Libertação, que ele expõe nos seguintes termos (referindo-se à América Latina):

"Muitos padres consideravam que sua atitude, suas orações e seus ritos haviam se tornado totalmente incompreensíveis para essas multidões de marginais concentrados na periferia das cidades ou em zonas agrícolas arruinadas pelo empobrecimento das terras, os preços de custo da produção, etc. Essas massas haviam sido cristãs. Já não eram muito mais. Para se dirigir a elas, para despertá-las, era preciso usar nova linguagem. As mensagens confusas dos revolucionários - havia-os de todos os tipos - costumavam ser ouvidas por esses verdadeiros excluídos. A Igreja deveria agora usar um pouco da sua linguagem. Eis aqui, em linhas gerais, o que era a Teologia da Libertação.

A partir dessa constatação indiscutível é que padres e leigos começaram a elaborar uma nova teologia; sonhava-se enxertar a mensagem evangélica sobre o arbusto da revolução" (p. 482).

Na verdade, a Teologia da Libertação extremada não foi simplesmente "usar um pouco da linguagem do povo". Ela partia da análise marxista da sociedade, segundo a qual o homem é essencialmente carente de bens materiais; estes são disputados; quem deles se apodera passa a oprimir seus semelhantes, de modo que a sociedade consta de

opressores e oprimidos; haja então luta de classes para se chegar a uma sociedade igualitária, sem classes. Em função desta indiscutida premissa, o Evangelho é relido de maneira a se ver em Jesus Cristo o primeiro guerrilheiro e a considerar o pecado como sendo a não participação na luta política.

A questão, portanto, foi muito mais séria do que descreve o jornalista G. Suffert.

5. Outros tópicos

Várias outras imprecisões de linguagem e de julgamento se poderiam apontar na obra em pauta. Talvez o que mais chame a atenção, é o estilo leviano e, por vezes, sarcástico utilizado pelo autor. Sejam indicados ainda os seguintes pontos:

- em 1415 o Papa Gregório XII não "aceitou entregar sua demissão", mas renunciou ao pontificado (p. 233);

- o Concílio de Nicéia l (325) não "inventou" o Credo, mas formulou de maneira clara e definitiva a verdade já contida nas Escrituras, ou seja, a Divindade do Logos ou do Filho; cf. p. 73;

- as heresias não "fabricaram" a fé, mas contribuíram para estimular a reta formulação dessas verdades apregoadas pela tradição anterior; cf. p. 71;

- no fim da Idade Média terá havido "a corrupção generalizada da Igreja". Esta afirmação é leviana e tendenciosa, pois em todas as épocas sempre houve grandes Santos e Santas, que fizeram frente à fragilidade humana; cf. p. 17;

- à p. 161 o autor diz que, após o cisma bizantino (1054), "daí por diante serão duas Igrejas". A expressão é ambígua. Mais adequado é usar a imagem proposta por João Paulo II: a única Igreja de Cristo tem dois pulmões, dos quais um se separou em 1054.

- a centena de anos que vai de 301 a 400 constitui o século IV e não o século III, como está insinuado às pp. 72 e 74.

Em suma, a tradução do francês para o português deixa a desejar, principalmente ao se tratar de nomes próprios. Eis alguns espécimens:

- Godofredo de Bouillons não é Godofredo de Bolonhas; o sobrenome não se traduz; cf. pp. 178s;

- o Patriarca Fócio não escreveu em francês, mas em grego; por isto a tradutora bem poderia ter citado "A Mistologia do Espírito Santo" em vez de guardar a versão francesa "La Mystologie du Saint-Esprit"; cf. p. 158;

- à p. 253 ficaram em francês os nomes Cajetan (Caetano), Jean (João) Eck, Georges (Jorge) de Saxe;

- à p. 207, lê-se Pierre Lombard em vez de Pedro Lombardo;

- à p. 74, Mareei d'Ancyre em vez de Marcelo de Ancira;

- à p. 19, "La guerre juive" de Flávio José não é o título original da obra. Daí a conveniência de traduzir por "A Guerra Judaica".

Em suma, a intenção, do autor, de afirmar que a existência bimilenar da Igreja é algo de singular e portentoso, sinal da ação de Deus, que opera através dos homens, é válida e louvável. Todavia a maneira como G. Suffert apresenta a história é assaz falha; às vezes parece brincar com as coisas sérias mediante suas expressões inoportunas e omitindo muitos tópicos que dariam a compreender melhor o fio condutor ou o espírito que animava os personagens citados pelo autor.

O leitor da obra saberá fazer os descontos que ela exige.

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