Páginas

terça-feira, 22 de maio de 2007

Religião: para que ter religião?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 297/1987)

Em síntese: A religião é a única resposta cabal às aspirações fundamentais do ser humano, pois o eleva ao Transcendental e Absoluto. A tentativa de procurar na ciência e na técnica a solução para os anseios congênitos do homem tem decepcionado o cidadão de nossos dias: atesta-o o ressurgimento da religião nos países submetidos a regimes ateus como também o surto de novas e novas seitas; estas infelizmente são mais emotivas e fantasiosas do que racionais.

O indiferentismo religioso de muitas pessoas de nossos dias explica-se, em parte, pelo consumismo, que embota o senso religioso e dá ao homem a impressão de poder saciar-se com os bens materiais; cedo ou tarde, porém, os bens materiais falham, abrindo um vazio no coração do homem, que só Deus pode adequadamente ocupar. Verifica-se também que a agitação e as preocupações do ganha-pão, o barulho da civilização contemporânea dificultam ao homem o encontro consigo mesmo no silêncio; muitos não estão acostumados ao recolhimento e à reflexão - o que torna difícil aprofundar o senso religioso inato em tais cidadãos.

A perda da religião é grave dano para o homem, pois se observa que a “morte de Deus” vem a ser a “morte do homem”.

***

Não é raro encontrarmos pessoas que perguntam: “Por que ou para que ter religião?” Dizem não precisar de religião, pois vivem satisfeitas sem fé. Daí o indiferentismo, que não combate a religião, mas a menospreza como um derivativo oportuno para quem dele precise.

Tal fenômeno é novo na história da humanidade. Outrora ter religião era um fato normal. A partir do século XVIII, o ateísmo passou a impugnar a religião como algo de irracional, alienante e nocivo; a religião mereceria ser combatida, na concepção desses ateus. Atualmente, porém, há pessoas que nem concebem o problema religioso; por isto nem combatem a religião; esta, segundo elas, não merece atenção. Por isto há quem diga que vivemos numa época “pós-religiosa”; esta expressão é exagerada ou mesmo falsa, pois há sinais eloqüentes de retorno à religião em nossos dias, como se verá no decorrer deste artigo.

A seguir, examinaremos a questão: “por que ou para que uma religião”?

Procuraremos a resposta a dar-lhe e os porquês do indiferentismo.

1. O sentido da vida

1.1. A questão básica

Uma das necessidades fundamentais do ser humano é, conforme bons psicólogos, a de saber o sentido da vida: “por que vivo?... para que vivo?... por que sofro? Por que a morte?... por que o mal na história dos homens?... Afinal de contas, quem sou eu?”. A necessidade de resposta para tais perguntas se evidenciou especialmente nos campos de concentração: nestes os prisioneiros, sentindo-se condenados a trabalhos e condições de existência absurdas, deixaram-se, não raro, morrer ou perderam todo estímulo para viver; muitos não tinham sequer a coragem de se colocar de pé, apesar da pressão dos golpes e maus tratos, da fome e da sujeira em que jaziam. O psicólogo austríaco e judeu Viktor Frankl o narra muito vivamente em seu livro: “Piscoterapia e sentido da vida” (cf. PR 281/1985, pp. 329-340).

1.2. Tentativa de resposta sem Deus

O homem moderno se afastou de Deus e da Religião, tidos como elementos pré-científicos ou obscurantistas, para se entregar ao cientificismo: a ciência e a técnica, progredindo continuamente, lhe trariam todas as respostas e preencheriam todas as suas aspirações. O homem moderno teria deixado de ser criança, atingindo finalmente a sua maioridade (assim pensava Dietrich Bonhoeffer em suas cartas de prisão). Negar Deus seria a condição para que surgisse o Super-Homem, capaz de vencer as “fatalidades” da história. A fé no homem, traduzida na filosofia do progresso, do crescimento e do secularismo, substituiria a fé em Deus; foi ressuscitada a figura mitológica de Prometeu, que subiu aos céus, arrancou o fogo, monopólio dos deuses, e o trouxe para a terra, anunciando que ele doravante seria o doador do fogo para a humanidade.

1.3. A insuficiência do cientificismo

A ciência não responde às questões fundamentais do homem; ela estuda o que cai sob os sentidos ou o que se pode ver, tocar, medir, calcular, isto é, o mundo dos fenômenos. Os objetos que estejam para além do sensível e dos fenômenos fogem ao setor próprio da ciência. Ora os problemas concernentes ao sentido do homem e da vida já não são da área dos fenômenos sensíveis; não são problemas para os quais a ciência, como ciência (como investigação empírica), possa dar resposta. - Tenhamos em vista, por exemplo, a biologia: investiga tudo o que se possa observar empiricamente a respeito da vida (transmissão, leis da genética, do crescimento, da restauração...). Mas, depois que alguém estudou tudo o que a biologia lhe possa ensinar, ainda conserva as perguntas fundamentais: vale a pena viver? Por que viver? Qual o sentido da vida?

Ademais a ciência é assaz frágil em suas construções; está sujeita a se reformar e retratar constantemente; cada problema que parece resolver-se, abre vários outros problemas que desafiam o cientista. Eis o testemunho significativo de um grande pesquisador, o Professor Dr. Newton Freire-Maia, do Departamento de Genética da Universidade Federal do Paraná:

“Quando me lembro de que, ao longo de minha vida de professor, já ensinei meras hipóteses de trabalho como se fossem a mais pura verdade, ou relatei fatos que simplesmente não existiam - fantasia dos nossos sentidos - ponho-me a imaginar que, na maioria dos casos, nós passamos a vida a substituir uma fantasia por outra, na esperança de atingirmos, um dia, o pleno conhecimento da essência do universo...

Um amigo meu, professor de português e literatura numa Faculdade de Filosofia, com o fim de acentuar as dificuldades que encontrava no seu campo de trabalho, disse-me certa vez mais ou menos o seguinte:

“Vocês, cientistas, é que são felizes! Em ciência, o que é, é mesmo; o que não é, não é. No setor das línguas e das literaturas, as divergências de opiniões são tantas que a tarefa de um especialista se torna extraordinariamente pesada e difícil, uma vez que ali ele nunca encontra a segurança e a certeza que as ciências oferecem”.

...Para esse amigo, a ciência era uma fonte de verdades e, como os cientistas não são suficientemente loucos a ponto de negar verdades, todo o edifício das ciências seria um conjunto de proposições certas sobre as quais ninguém ousaria depositar a mais tênue das dúvidas: a água ferve a 100º C; a gravidade tudo atrai para o centro da terra; a lua não cai de sua órbita por causa da interação de forças gravitacionais com a inércia; a velocidade da luz é de 300.000 km por segundo; a molécula de água tem dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio; para formar um novo ser, é preciso que um espermatozóide fecunde um óvulo; o coração é o órgão central da circulação sangüínea; pensa-se com o cérebro e não com o fígado; as plantas absorvem gás carbônico e liberam oxigênio (e isto se chama fotossíntese ou função clorofiliana); a tuberculose é produzida pelo bacilo de Koch (a lepra, pelo de Hansen); os antibióticos e a sulfamida matam micróbios; a asma é uma doença alérgica. etc. Todas essas ‘verdades’ (nem sempre verdadeiras ou apenas ‘meias verdades’) seriam ‘científicas’, por isto, não poderiam ser postas em dúvida. Por este motivo é que os anúncios de pasta dental usam, muitas vezes, como prova da eficácia de uma marca, a fórmula mágica: ‘A ciência comprovou’. Se a ciência comprovou, é verdade...

A ciência está repleta de hipóteses (provisórias) e, comumente, o próprio cientista não tem consciência da precariedade das suas proposições. Quando estudamos história da ciência e ali encontramos as hipóteses que foram alijadas para o porão e substituídas por outras, ficamos aturdidos com a possibilidade de que muitas das nossas hipóteses de hoje possam tomar o mesmo destino (pp. 102-104).

Em nossos dias, assistimos ao desabamento da ideologia do progresso, que seria uma “religião leiga” (sem Deus), baseada sobre o pressuposto da infinita perfectibilidade do homem. A definição do homem em função da eficiência e da produtividade já não satisfaz; procuram-se outros modelos para o ser humano. Aqueles que acreditavam no poder, sem limites, da ciência e da técnica, recuam; verificam que o gigante Prometeu está abalado; o mito do Progresso cede à consciência de que a humanidade está em crise, sob o signo de um futuro cada vez mais ameaçador ou marcado pela perspectiva de um holocausto nuclear. Pode-se, portanto, falar do fim do otimismo histórico que caracterizou a primeira metade do século XX. Há quem diga que lá entramos - ao menos no Ocidente - na fase da pós-modernidade e do pós-racionalismo.

1.4. A resposta da Filosofia

A própria filosofia, que por definição indaga a respeito das causas últimas, e procura formular o sentido do homem e do mundo, apresenta um leque de respostas que, se não são contraditórias entre si, são incertas e insuficientes (não indo ao fundo das questões). Para os pensadores, mesmo para os mais sagazes, o homem fica sendo um mistério, que a razão só consegue decifrar em parte e com grandes dificuldades.

Precisamente - e com muita lógica - os maiores pensadores reconhecem a radical­ incapacidade da razão para penetrar, na sua profundidade, o mistério do homem e, por isto, não raro acenam para outra fonte de conhecimentos ou seja, para “uma divina revelação”. É o caso, por exemplo, de Platão, que no diálogo Fedon aborda a questão da imortalidade da alma: afirma então que sobre tal assunto é impossível ou muito difícil chegar a uma conclusão clara; é preciso, por conseguinte, que nos contentemos com a teoria menos obscura que a razão possa construir, para atravessarmos numa jangada o perigoso mar da vida. E acrescenta: “...a menos que alguém esteja em condições de fazer o trajeto mais seguro e menos perigosamente sobre um barco mais sólido, confiando-se a uma divina revelação”.

Na realidade, o mistério do homem é tão profundo que só Deus, que criou o homem e lhe deu a sua vocação, pode dar-lhe a conhecer o sentido da vida mediante “uma divina revelação”. Ora na revelação cristã Deus não revela apenas o mistério de sua vida, mas manifesta o homem ao homem, oferecendo-lhe a resposta para as suas indagações: “Donde venho? Para onde vou? Qual o sentido da minha vida sobre a terra? Por que sofro? Por que há tantas desgraças no mundo?

Por que hei de morrer?” Mais: Deus não somente ilumina a noite escura do homem; Ele também realiza o que revela, tornando o homem participante da vida do próprio Deus; não somente projeta luz sobre o mistério do sofrimento e da morte, mas livra o homem do mal e da morte. Sim; a religião não é mera filosofia ou uma mensagem de ordem puramente intelectual, mas é uma realidade de ordem vital, portadora de nova vida ou de novo modo de ser. Assim é que a religião dá um sentido à vida humana.

1.5. O ressurgimento da religião

É precisamente neste contexto que se registra um retorno das questões relativas a Deus e aos valores transcendentais. Este retorno se dá na Rússia Soviética, na China comunista e em outros países, onde o ateísmo tentou extirpar a fé dos cidadãos e camponeses. Dá-se também no pulular de seitas e correntes religiosas, que encontram eco fácil na sociedade de hoje, sequiosa de descobrir o sentido da vida e da morte do homem. Nada de mais significativo do que esse despertar do senso religioso da humanidade (embora se deva lastimar que se faça não raro à custa de charlatanismo e exploração da credulidade de pessoas infelizes). Na verdade, dentro da inteligência e da vontade do homem há uma capacidade de Infinito e somente a Verdade Plena e o Bem Absoluto podem saciar adequadamente esse potencial; sabiamente dizia o filósofo francês Blaise Pascal que existe no homem “um abismo infinito que não pode ser preenchido senão por um objeto infinito e imutável, isto é, por Deus mesmo” (Pensées n.º 300). É essa aspiração inata ao Infinito que suscita constantemente o problema religioso, mesmo quando o homem o quer sufocar; é a própria natureza do homem, e não algum fator externo, de cultura contingente, que provoca esse anseio. O homem é um ser espontaneamente inquieto e insatisfeito procura aquilo que não tem e quando o consegue, experimenta o fastio e o dissabor porque nada o satisfaz. O motivo profundo desta constante sofreguidão é que ele não foi feito para as coisas transitórias e limitadas, mas para o Infinito ou para Deus: “Senhor, Tu nos fizeste para Ti e inquieto é o nosso coração enquanto não repousa em Ti” (S. Agostinho, Confissões I, 1, 1).

Nisto o homem se diferencia nitidamente do animal irracional. Com efeito; este, tendo atendido às suas necessidades biológicas, se dá por saciado e nada mais pede. Não atinge o transcendental, ao passo que o homem, mesmo satisfeito no plano biológico, não pára: quer conhecer sempre mais, quer experimentar situações novas, que dilatem seus horizontes. É por isto, aliás, que muito sabiamente se aponta a atitude religiosa como característica do humano, isto é, da inteligência e da dignidade do homem. Em conseqüência, um dos sinais típicos da passagem do homem na pré-história são os símbolos ou as manifestações religiosas: especialmente o sepultamento dos mortos (expressão da crença na vida do além e na existência de Deus) é tido como um dos mais rudimentares sinais que caracterizam o ser humano.

Em conseqüência também, verifica-se que a religião é um fenômeno universal, isto é, de todas as tribos e de todas as épocas; nunca houve povos arreligiosos ou não religiosos; mesmo as populações mais primitivas descobertas recentemente na África ou na Oceania manifestam senso e culto religioso; verdade é que a religião por vezes sofre aí o contágio da magia, da bruxaria e das superstições, mas é sempre perceptível. Tal fato é reconhecido por todos os historiadores e etnólogos, por mais diferentes que sejam as concepções filosóficas de cada um.

Em síntese, pode-se dizer que é a própria estrutura do homem que põe o problema de Deus. Desde que reflita um pouco sobre si mesmo e suas aspirações, ele descobre em si a sede de algo que está além de tudo o que ele experimenta com os seus sentidos. Muitas vezes ele não sabe dar o nome a esse algo mais, nem pode explicar essa sede, que se volta para o Transcendental. Se ele a quer acalmar com o gozo dos prazeres materiais, intelectuais, culturais - que esta vida lhe oferece, sente em breve o vazio, pois tudo lhe escapa de entre as mãos: “É coisa horrível sentir que nos escapa tudo o que possuímos” (Pascal, Pensées n.º 152). Auscultando um pouco mais a si mesmo, o homem verifica que a sua sede é de Absoluto ou de Infinito ou de Deus; com todo o dinamismo do seu ser, o homem tende para Deus. Por conseguinte, Deus nunca é estranho à criatura humana, mas lhe está muito próximo; antes diríamos que Deus lhe é mais íntimo do que o que o homem tem de mais íntimo. Bem dizia S. Agostinho: “Deus superior summo meo, intimior intimo meo”. - “Deus é mais elevado do que o que tenho de mais elevado e mais íntimo do que o que tenho de mais íntimo”.

2. A consciência das limitações

Além de experimentar a necessidade de conhecer o sentido da vida para poder motivar sua existência, o homem faz a experiência inevitável de certas limitações que o afetam no mais profundo do seu ser.

2.1. Nascimento e morte

Nem o começo nem o fim da existência do homem sobre a terra estão em seu poder. Não é o homem quem dá a si a existência; esta lhe é outorgada; nem o homem é senhor da mesma, pois ela lhe é retirada. Isto torna evidente a cada indivíduo a respectiva contingência: ao nascer, o homem, que não existia, vem a ser; ao morrer, o homem, que existia, deixa de existir sobre a terra; realmente o ser humano é alguém que não tem em si mesmo a razão da sua existência; esta não é, por si mesma ou por sua definição, necessária.

Entre o nascer e o morrer, também o agir do homem é limitado: condicionado pelos traços da sua personalidade e influenciado por fatores internos e externos, o homem experimenta a fragilidade do seu labor.

A mais dolorosa experiência de limitação é a que a morte impõe: dir-se-ia que ela não rouba algum pertence ao homem, mas rouba o próprio homem a si mesmo. Esta convicção é tão brutal que muitos fazem tudo para não pensar na morte; entregam-se a atividades frenéticas, que não lhes deixam o tempo de se encontrarem consigo mesmos.

A experiência da finitude leva o homem a querer superar os seus próprios limites. Este desejo está impregnado no mais profundo do ser humano; ele aspira a ser plenamente livre e feliz numa vida sem fim ou sem ameaças de morte. De todos os anseios do homem, este é certamente o mais intenso e profundo; ele quer beber da fonte da vida imortal. Mas onde a encontrará? - A resposta só pode ser uma: junto Àquele que é, por definição, a Vida e, por isto, pode dar ao homem a vida sem fim. Voltando-se para Deus, e só assim, o homem encontra a resposta para a sua demanda. Deste modo a experiência da finitude - especialmente a da morte - põe para o homem o problema religioso como problema fundamental. Com efeito, a religião, como religação do homem com Deus, é o caminho para a Vida..., e para a Vida no sentido pleno da palavra. Dir-se-ia mesmo que, sem dimensão religiosa, o homem é uma demanda clamorosa que não encontra eco ou ressonância no universo.

2.2. As limitações do erro

Além da experiência da finitude e da morte, o homem faz a experiência do erro.

Criado para a verdade o ser humano se vê envolvido na ignorância e no erro; no tocante ao mundo material, tem alcançado sem dúvida níveis elevados de conhecimento, embora caminhe sempre às apalpadelas; no setor moral e no espiritual porém é-lhe difícil conhecer o que e verdade, o que é reto, o que é justo, o que e o bem, facilmente propõe o erro como verdade, o mal como bem, a ponto que muitas pessoas são cépticas com relação aos valores espirituais e morais; não haveria aí verdade propriamente dita nem padrão de bem. O ceticismo tem sido uma permanente tentação para o homem.

Mais trágica ainda é a experiência do pecado. Este não somente atrai o homem, mas escraviza-o, tornando a mente obcecada, a ponto de não reconhecer os males que comete ou, se os reconhece, não conseguir evitá-los; o ser humano é arrastado a fazer o que não quisera; já notava o Apóstolo São Paulo, fazendo eco aos filósofos romanos: “O querer o bem está ao meu alcance, não, porém, o praticá-lo. Com efeito, não faço o bem que eu quero, mas cometo o mal que não quero” (Rm 7,18s).

Essa sujeição ao erro e ao mal suscita no homem a aspiração a livrar-se do erro e da escravidão do pecado, aspiração que não é superficial, mas brota do mais profundo do ser humano. Este porém verifica que por si só não consegue libertar-se pois apesar dos melhores propósitos, é constantemente solicitado a recair e cede a tentação Quem pode então salvar o homem de tal humilhação? Não outra criatura sujeita também ela à falência, mas sim o Ser absoluto, que é a própria Verdade e o próprio Bem: Deus. Assim o homem chega a noção e a necessidade de Deus. Este não é um Rei Todo-Poderoso que se oporia à grandeza do homem, mas, ao contrário, é aquele Ser Perfeito que, por ser perfeito, ajuda o homem a superar suas limitações, fazendo-o participar da plenitude da vida divina; é Aquele que liberta o homem do erro e do pecado.

Eis, pois, o sentido da religião: é o caminho mediante o qual o homem, movido pelas mais profundas exigências do seu ser, se põe em contato com Aquele que é o Absoluto e vem a ser a Resposta aos grandes anseios da pessoa humana; tira o homem de suas servidões humilhantes e da própria morte, fazendo-o viver na verdade, na liberdade e na alegria.

Temos assim os elementos para responder à pergunta: por que “ser religioso”? -

Porque, mediante a religião - e só desta maneira - o homem se realiza plenamente ou encontra o cumprimento das suas aspirações mais profundas. Por conseguinte, ao homem a-religioso falta algo de essencial para o total desdobramento das suas virtualidades e a consecução dos objetivos. A religião não é uma dimensão secundária ou acidental da vida humana, mas está arraigada no íntimo da pessoa; quem deseje prescindir dela, não pode deixar de se prejudicar. Por isto o ateísmo e a irreligiosidade não são opções equivalentes a outras no horizonte da filosofia, mas são atitudes extremamente graves, porque põem em perigo a realização e a consumação do ser humano.

Tenham-se em vista, aliás, as considerações de psicólogos recentes, dos quais Carl Gustav Jung é um representante significativo; ao contrário de Freud, que desprezava a religião, Jung valorizou a dimensão de fé como integrante do psiquismo humano, sem o qual a saúde mental é afetada. A propósito, queira conferir PR 289/1986, pp. 277s.

3. Mas por que tanta indiferença?

Apesar do papel capital do encontro com Deus na vida do homem, registra-se grande faixa de indiferença religiosa na sociedade contemporânea. - Por quê?

As causas são múltiplas. Poremos em relevo algumas que parecem mais importantes.

Muitas e muitas pessoas são tão absorvidas pelos problemas imediatos e urgentes da vida que não têm as disposições de ânimo necessárias para refletir sobre o sentido da própria vida: encontram-se sempre fora de si mesmas, emaranhadas em dificuldades que não lhes deixam tempo e gosto para a reflexão.

Ademais a civilização contemporânea é rumorosa; provoca trepidação contínua e dos mais diversos tipos, que dificulta ao cidadão o recolhimento silencioso; o bombardeio de fatos e o suceder-se de imagens ocupam-lhe a imaginação e o pensamento. Isto tudo faz que o homem de hoje esteja pouco habituado a entrar em si mesmo, embora muito precise desse exercício. Ora, para aprofundar a questão religiosa, é indispensável a capacidade de refletir e fazer silêncio interior; sem esta, a pessoa é tragada pelo turbilhão dos bens transitórios, podendo mesmo esquecer que tudo passa, mas as aspirações congênitas do ser humano não passam.

2) Outras pessoas há que são absorvidas não por problemas de subsistência, mas pelo afã de gozar a vida, ganhar dinheiro, conseguir êxito na sua carreira, a ponto de não conceberem nem o gosto nem o interesse pelos problemas do espírito. O materialismo e o consumismo têm o triste poder de extinguir no homem a aspiração para Deus e a têmpera religiosa, que são constitutivas do psiquismo humano. Quem é tomado pelo anseio de possuir sempre mais bens materiais, fica embotado para os valores transcendentais; já não experimenta necessidade religiosa nem vê utilidade na fé. Isto explica que a crise religiosa seja hoje mais forte não nos países em que a fé é perseguida e sufocada, mas nos países ricos do Ocidente materialista e consumista.

Dirá alguém: mas há pessoas que afirmam ser felizes sem religião.

Perguntamos: será realmente assim? Há momentos em que a vida mostra seu rosto dramático mediante uma doença grave, uma desgraça, um revés financeiro, um luto, a dissolução do casamento, um sério insucesso na carreira... Em tais momentos parece que os sonhos se dissipam como um castelo de cartas, caem as certezas que pareciam inabaláveis, tudo dá a impressão de ser vazio e sem sentido. É então que surge a questão: que significado tem a vida? Na verdade, o homem toma consciência de que é mesquinho e volúvel tudo o que lhe acarretava segurança e bem-estar; é amarga a condição do homem. Faz-se então sentir a necessidade de algo que, em meio à volubilidade geral, seja estável, ou entre as incertezas seja verdade firme. Em última análise, esta é a necessidade de Deus, que por definição é o Bem Absoluto e Imutável.

Por conseguinte não é plenamente verdade que alguém possa viver feliz sem religião. Por algum tempo talvez isto possa acontecer mas o passar dos anos encarrega se de fazer sentir a todo homem a necessidade de Deus. Verdade é que tal necessidade pode ser interpretada erroneamente; o homem pode procurar em cisternas furadas aquilo de que carece (cf. Jr 2,13); pode bater em portas falsas à procura da verdadeira resposta para seus anseios. Isto não impede que cedo ou tarde o indivíduo seja, de algum modo posto diante do problema Religioso.

O desinteresse de muitos também se pode explicar como efeito da luta que o racionalismo vem movendo contra os valores da fé desde o século XVIII. Com efeito, a religião tem sido acusada de ser desarrazoada, infantil ou um conjunto da fábulas e mitos..., de ser alienante e, por isto, prejudicial à sociedade, ... de alimentar o fanatismo e a intolerância..., de ser contrária à ciência ou obscurantista, responsável pelo subdesenvolvimento de seus adeptos. A polêmica anti-religiosa suscitou em torno da religião um clima de ceticismo, suspeitas e aversão; em conseqüência, para muitos, quem abraça a religião dá provas de pouca cultura, fraqueza de personalidade, infantilismo, medo, falta de senso crítico... Em tal contexto compreende-se que o número de pessoas “sem religião” tenda a aumentar.

Na verdade, algumas destas acusações têm seu fundamento na conduta deficiente de pessoas ou grupos religiosos; deram à sua fé expressões inadequadas ou caricaturais, que provocaram o desdém dos racionalistas. Além disto, é preciso que não se apliquem critérios do presente a épocas passadas; o que para os homens de hoje é evidente no plano da ciência, da moral, não o era aos antepassados, de modo que estes, de boa fé, disseram ou praticaram coisas que hoje não seriam repetidas (assim a insistência no geocentrismo contra Galileu, os feitos da Inquisição, das Cruzadas, etc.). Uma serena consideração do que é a religião como tal e do conteúdo da mensagem cristã, evidencia que tais acusações não afetam o valor da religião. Só servem para empalidecer ou apagar na consciência humana a imagem de Deus, o que redunda em eclipse do próprio homem. Pois, na verdade, à “morte de Deus” se segue inevitavelmente a “morte do homem”.

Este artigo muito deve ao editorial de La Civiltà Cattolica n.º 3260, de l5/04/86, pp. 105-114.

Nenhum comentário: