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quinta-feira, 3 de maio de 2007

Milagres: medicina e milagre

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 327/1989)


Em síntese: A Igreja sempre admitiu, e continua a admitir, a possibili­dade de que Deus faça milagres. Ela espera mesmo que isto aconteça quando se trata de proclamar publicamente a santidade de alguém em cerimônia de Beatificação ou Canonização. Tais verdades vêm à tona com ênfase atual­mente, quando se dá início ao inquérito diocesano para a Causa de Beatificação de Madre Maria José de Jesus, Religiosa carmelita falecida aos 17/03/1959 no Rio de Janeiro. - A Igreja, porém, é muito cautelosa diante de fa­tos tidos como milagrosos; pede a colaboração de peritos de diversas áreas, que investiguem a historicidade dos relatos, a índole portentosa dos fatos e as características religiosas dos mesmos. Com efeito; o milagre, em perspecti­va católica, nunca é mero fato extraordinário e surpreendente, mas é tam­bém um sinal de Deus que, de maneira mais eloqüente, atesta algo em res­posta às preces humildes e filiais de criaturas carentes de um benefício da Misericórdia Divina.

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O público em geral é, não raro, interpelado pela notícia de milagres obtidos em ambientes diversos (católicos e não católicos). Muitos desses ca­sos não são propriamente milagres, porque explicáveis pela ciência, mas, na medida em que se trata de fatos reais, podem ser chamados “graças” e “grandes graças”.

A admissão precipitada de milagres faz que os homens mais dotados de senso crítico sejam um tanto cépticos em relação a milagres; existiram e existem realmente? Ou não se trata de fenômenos naturais e raros que a ignorância humana, na sua insuficiência, qualifica como milagres? Eis as perguntas que surgem.

Tal é a temática que as páginas seguintes abordarão, tendo em vista especialmente as questões levantadas por ocasião da abertura do Inquérito Diocesano para a Causa de Beatificação e Canonização de Madre Maria José de Jesus (1882-1959), monja carmelita descalça do Convento de Santa Teresa do Rio de Janeiro. Por conseguinte, antes de abordarmos o tema “milagre”, parece oportuno dizermos algo sobre a pessoa e a obra de Madre Maria José.

1. Madre Maria José de Jesus

Honorina, filha do grande historiador incrédulo Capistrano de Abreu, nasceu aos 18/02/1882 no Rio de Janeiro. Em sua juventude brilhou na so­ciedade carioca, vestindo-se com elegância e encanto. - Aos vinte anos de idade, em meio a um baile, sentiu-se subitamente impelida a deixar o salão e voltar para casa; algo de misterioso ocorrera dentro dela, dando início à sua conversão. Ainda ficou nove anos no mundo, atendendo à sua avó idosa, en­quanto praticava a piedade e a caridade. Finalmente aos 29 anos de idade entrou no Carmelo de Santa Teresa no Rio de Janeiro, trocando o nome de Batismo, Honorina, pelo de Irmã Maria José de Jesus. Com seis anos apenas de Vida Religiosa, foi eleita Priora, fato este que se repetiu freqüentemente até a sua morte, ocorrida aos 11/03/1959, após alguns anos de graves enfer­midades físicas. Madre Maria José deixou escritos de espiritualidade, que atestam a profunda vida interior que levava, e justificam a fama de santidade que lhe toca.

Aos 11/05/1989 foi aberto o Inquérito Diocesano referente à Religio­sa; serão ouvidas testemunhas e examinados os escritos da Religiosa, a fim de se poder levar à Santa Sé ou à Congregação para as Causas dos Santos, dados precisos, que serão ulteriormente examinados. Se após nova análise dos fatos e documentos se der algum milagre judiciosamente reconhecido como tal ou como sinal de Deus, Madre Maria José poderá ser proclamada “Bem-aventurada”, e estará concluído o processo de Beatificação. Caso no­vo milagre se verifique, poderá ser canonizada ou ter o seu nome incluído no Cânon ou Catálogo dos Santos da Igreja. Este último ato é de importân­cia; ao realizá-lo, o Papa goza do carisma da infalibilidade, pois, canonizan­do alguém, propõe essa pessoa como modelo de vida cristã e fiel intercessora junto a Deus em favor dos homens. Por isto, para que proceda a uma Cano­nização, o Sumo Pontífice não somente pede o estudo solícito de seus cola­boradores, mas também dois sinais de Deus, que são os milagres.

Assim se vê que ainda hoje a Igreja acredita em milagres, não, porém, como simples demonstrações da Onipotência Divina, mas como sinais ou res­postas de Deus a um justo e sadio anseio dos homens. O milagre vem esclarecer as mentes dos fiéis e dissipar dúvidas que nelas possam existir; no caso das Causas dos Santos, vem confirmar os indícios de santidade profunda que parecem marcar tal ou tal Servo(a) de Deus. Somente quando se trata de mártires que evidentemente tenham dado a vida por causa da fé, a Igreja dis­pensa milagres, pois o martírio é autêntico testemunho de amor a Deus e perfeição espiritual.

A Igreja é muito cautelosa diante das proclamações de milagres que lhe são feitas. Visto que a fantasia humana se pode iludir a respeito, existem instâncias sucessivas para que finalmente a Igreja possa falar de milagre.

Examinemos algo do procedimento adotado pela Igreja para discernir os fatos extraordinários.

2. Igreja, Milagres e Medicina

2.1. Três exigências

Três são os requisitos para que a Igreja reconheça a autenticidade de um milagre:

1) Trate-se de um tato histórico ou realmente ocorrido (pois muitas vezes os casos apresentados como milagres não correspondem, em parte ou de modo nenhum, à realidade histórica). O exame da historicidade já elimi­na muitos portentos. Tal exame é efetuado no local mesmo onde o possível portento ocorreu; os peritos civis e eclesiásticos hão de ter todo interesse em não trabalhar sobre logros e ilusões.

2) O fato comprovado como histórico seja absolutamente inexplicável pela ciência nem se veja alguma possibilidade de que venha a ser explicado futuramente.

3) O fato cientificamente inexplicável deve ter ocorrido em contexto digno de Deus, de modo que possa ser tido como genuíno sinal ou resposta de Deus aos fiéis que o imploravam.

2.2 Lourdes

Um dos espécimens típicos do rigor com que a Igreja procede na apuração dos fatos tidos como portentosos, é o que se dá em Lourdes (França).

Existe nesta cidade o Bureau dês Constatations Médicales (Centro das Averiguações Médicas), que examina as pessoas que se dizem curadas por ocasião de peregrinações à Gruta de Massabielie; são trinta a cinqüenta casos por ano.[1] Após verificar a cura real e duradoura de algum paciente, esse Co­mitê envia o caso a Paris, onde uma Comissão Médica Internacional, composta de grandes especialistas de qualquer orientação religiosa ou filosófica, se reúne anualmente para estudar os casos que os médicos de Lourdes te­nham julgado inexplicáveis pela ciência. Tais casos são então minuciosamen­te analisados, discutidos e submetidos à votação para se definir se realmente podem ser considerados fora do alcance da Medicina. Dado que os médicos cheguem a esta conclusão, a autoridade eclesiástica iniciará o processo reli­gioso propriamente dito para averiguar se realmente tal ou tal portento pode ser tido como resposta ou sinal de Deus aos homens.

É de notar que, dentre 5.000 curas averiguadas em Lourdes, nem mesmo cem foram pela Igreja proclamadas milagrosas: sete entre 1858 e 1862; 23 entre 1907 e 1913; 24, de 1946 a 1970...

2.3. O Colóquio dos Médicos

Em começos de 1989 os médicos que analisam os casos de Lourdes se reuniram em Roma com os colegas que trabalham na Congregação para as Causas dos Santos. Com efeito; a Santa Sé tem entre os seus

Dicastérios,[2] uma Congregação encarregada dos processos relativos à Beatificação e à Canonização; uma das Comissões que funcionam nesse Departamento da Santa Sé, é a Consulta Médica ou uma Junta de Médicos que analisam fatos tidos como portentosos e atribuídos a este(a) ou aquele(a) servo(a) de Deus mor­to(a) em fama de santidade.

No decorrer desse Colloquium Medicorum (Colóquio de Médicos), fala­ram médicos, teólogos e canonistas expondo os seus pontos de vista e os cri­térios aplicados para examinar as curas milagrosas. O Prof. Dr. Rafaelle Cor­tesini apresentou então um relatório dos trabalhos da Consulta Médica, que analisou mais de cem casos entre 1982 e 1988 e chegou às seguintes con­clusões:

1) Mesmo em nossa época de grandes progressos da Medicina, existem casos nos quais a terapia mais adequada e a cirurgia moderna se mostram ineficazes. Não obstante, o paciente é realmente curado de seus males. Isto acontece de maneira que é cientificamente inexplicável.

2) Tais curas são quase instantâneas; são completas e duradouras. Em caso nenhum podem ser atribuídas a auto-sugestão nem são desencadeadas por mecanismos psicossomáticos.

3) As curas extraordinárias têm-se verificado no mundo inteiro e em qualquer ambiente: hospital, residência de família, comunidade religiosa...

4) Em todo e qualquer caso, os testemunhos dos médicos e das enfer­meiras são indispensáveis como dados informativos de primeira importância.

O Pe. René Latourelie S.J., Professor da Universidade Gregoriana (Ro­ma) e participante do Colóquio, enfatizou os dois níveis nos quais os fatos extraordinários são apreciados: o nível médico-científico e o nível teológico:

Da perícia médico-científica, a Igreja espera que o médico observe e julgue como homem de ciência, utilizando todos os recursos técnicos, mes­mo os mais sofisticados, que o progresso moderno lhe proporciona. A Igreja será sempre grata por uma análise bem feita, conscienciosa, sem preconcei­tos e sem distorções da realidade, Todavia, acrescentou, a consideração cien­tífica é apenas uma das duas facetas do processo: o milagre não é apenas um fato extraordinário; é um sinal religioso ou um discurso de Deus aos ho­mens. Daí a necessidade do exame teológico-canônico após o estudo científico de cada caso. Disse mais o Pe. Latourelle:

“Em última análise, o juízo a ser proferido sobre o milagre como sinal de Deus é um problema religioso; situa-se naquele nível de interioridade em que o homem já decidiu que ele basta a si mesmo ou, ao contrário, ele toma consciência de sua miséria, se reconhece pobre, frágil, carente e necessitado de salvação”,

O mesmo professor Latourelle insistiu nas três etapas que deve percorrer toda averiguação de milagre: 1) constatação de fato histórico realmente ocorrido e fielmente narrado; 2) verificação do caráter autenticamente pro­digioso desse fato; 3) reconhecimento do respectivo contexto religioso digno de Deus. A averiguação de um milagre é, portanto, obra interdisciplinar, na qual convergem as competências criteriosas do historiador, do médico, do físico, do filósofo, do teólogo, do canonista..., que devem fazer, por vezes, o papel de “advogado do diabo” para evitar qualquer ilusão científica ou reli­giosa. Em última instância porém só quem poderá falar de milagre como sinal de Deus, será a autoridade eclesiástica após ter levado em conta os laudos dos peritos e assistida pelas luzes do Espírito Santo. Por isto o reconhecimento de um milagre pode levar anos..., em alguns casos dez anos; os peritos podem solicitar novos e novos dados para emitir o seu laudo; especialmente os médicos fazem questão de se certificar de que a cura foi total e du­radoura através dos anos.

2.4. Um exemplo típico

A título de exemplo, eis o milagre reconhecido como tal para a cano­nização da Serva de Deus inserida no Catálogo dos Santos aos 11 de dezem­bro de 1988. Tratava-se de Maria Rosa Molas y Vallvé, fundadora da Congre­gação das Irmãs da Consolação (1815-1876).

Em setembro de 1981 um menino de cinco anos chamado William Guillén saiu a pescar com seu pai na Lagoa de Calcara. Quando segurava pela cauda um peixe com a mão direita, este lhe arrancou o dedo mindinho da mão esquerda. Regressando à terra, o pai conseguiu extrair do peixe o dedo, e a mãe do menino o enterrou. Levada ao Hospital de Calcara, a vítima foi atendida por um médico, que pediu que lhe levassem o dedo, sobre o qual as formigas já se haviam acumulado. O doutor sugeriu então que rezassem à bem-aventurada Maria Rosa Molas, implorando a sua intercessão em prol da recuperação da criança. E procedeu a um implante rudimentar do dedo nu­ma intervenção cirúrgica que durou apenas vinte minutos e que cientifica­mente não tinha probabilidade de êxito. Eis, porém, que ao cabo de seis dias o médico verificou que o dedo havia retomado o seu lugar exato na mão do menino como se absolutamente nada tivesse acontecido. - O caso foi levado à Junta Médica da Congregação para as Causas dos Santos, que aos 23/01/ 1987 declarou humanamente inexplicável a cura assim obtida. Em ulterior instância, os teólogos aos 15/03/1988, reunidos com os Cardeais e Bispos da mesma Congregação, houveram por bem reconhecer nesse fato extraordiná­rio um sinal de Deus que autenticava a santidade da bem-aventurada Maria Rosa Molas; o Santo Padre João Paulo II confirmou a sentença e resolveu ce­lebrar a respectiva cerimônia de Canonização aos 11/12/1988.

Neste episódio verifica-se que o evento extraordinário ocorrido em setembro de 1981 só foi reconhecido como milagre em 1988 após numerosos e meticulosos exames de peritos.

Aliás, não só curas físicas portentosas vêm ao caso quando a Igreja fala de milagres; outros benefícios, registrados no plano espiritual, podem tam­bém ser levados em consideração.

3. A palavra de João Paulo II

O Papa João Paulo II recebeu em audiência especial os participantes do Colóquio dos Médicos e lhes lembrou o significado dos milagres na pers­pectiva da fé católica: as curas, como dons extraordinários e sinais, podem ser o testemunho eloqüente de que Deus é Amor. E prosseguiu:

“Esses sinais têm suscitado numerosas conversões e incitaram muitos homens e mulheres a se doar mais generosamente....

Tratando-se das causas dos Santos, os milagres têm o papel de manifes­tar a voz de Deus no discernimento que a Igreja realiza em vista da Beatificação ou da Canonização de um servo ou de uma serva de Deus. Esclarecem e confirmam o julgamento que compromete a autoridade de Pedro na Igreja. Em Lourdes os milagres comprovam a mediação de Maria em favor dos en­fermos.

Em qualquer caso, as curas cientificamente inexplicáveis implicam uma mensagem e um convite a uma vida cristã mais fervorosa. Hoje em dia parece que a pedagogia divina ilumina os fiéis mais através de intervenções espirituais e interiores do que mediante graças físicas e corporais. É fato, po­rém, que Deus concede sempre os seus benefícios inesperados em resposta às preces feitas com fé e confiança na força do seu Amor'

Tal é o sentido dos milagres na visão católica dos fatos. Vê-se que dife­re profundamente das concepções e dos procedimentos que fora do Catoli­cismo apregoam curas e milagres.

Neste final alguém dirá: as Canonizações requerem sempre muito di­nheiro; são elitistas. Respondemos: é certo que a mobilização de peritos para os indispensáveis exames, no caso, exige quantias de dinheiro. Mas têm sido canonizados homens, mulheres e jovens de todas as classes sociais (tenhamos em vista a humilde Maria Goretti, com seus doze anos!). A Providência Divina suscita os meios para enaltecer quem ela quer exaltar; a santidade refulge por si mesma! De resto, não é a Canonização que faz os Santos, mas estes são tais com ou sem Canonização.

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NOTAS:

[1] Semelhante órgão foi recentemente criado em Fátima com a mesma fina­lidade, conforme notícia divulgada por La Documentation Catholique n°1984, 21/05/89, p. 513-

“No decorrer de uma entrevista coletiva à imprensa em Fátima aos 11/03/89, foi anunciada a criação de uma Comissão Médica Nacional encar­regada de averiguar eventuais curas extraordinárias atribuídas à intercessão de Nossa Senhora de Fátima ou às videntes Francisca e Jacinta Marta. Sob a direção do Prof. Daniel Pinto Serrão, ela consta de dez professores das Universidades de Lisboa, Porto e Coimbra, especialistas em diversos setores das ciências médicas, como a cardiologia, a pediatria, a cirurgia, a neurologia a psiquiatria, a radiologia... Declarou o respectivo presidente: A Comissão é estritamente independente tanto do ponto de vista eclesiástico como do reli­gioso'

[2] Quase Ministérios.

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