Em síntese: O Pe. Damião de Veuster (1840-1889) quis dedicar-se aos leprosos da ilha de Molokai (arquipélago do Havaí), destituídos de toda assistência médica e religiosa, internando-se no seu "campo de concentração compartilhando a vida dos mesmos. Reanimou os enfermos, procurando dar um sentido à vida daqueles que eram "sepultados vivos" em Molokai; ajudou-os a construir suas casas, a cultivar o artesanato, a formar bandas de música... Procurou remédios e instruções médicas para atender à moléstia dos seus leprosos. Isto lhe valeu a estima da opinião pública mundial já em vida, como também a inveja e a hostilidade de autoridades que, em sua inércia, se sentiam interpeladas pelas iniciativas do missionário. Acabou contagiado pela lepra, que ele suportou durante doze anos, procurando sempre reerguer o seu próprio ânimo e trabalhar energicamente. O rei e a rainha do arquipélago do Havaí o homenagearam e condecoraram no decorrer de sua vida, que foi a de um herói, cuja morte foi comemorada com admiração na data de seu primeiro centenário (15/04/1989).
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Comemora-se em 1989 nas diversas partes do mundo o primeiro centenário da morte do Pe. Damião de Veuster; havia-se internado na ilha de Molokai como capelão dos leprosos, e lá morreu afetado pela moléstia, que ele suportou heroicamente por amor a Cristo e aos irmãos durante doze anos. 0 testemunho de fé e coragem deixado por esse sacerdote merece ser recordado, pois os justos, ainda que falecidos, continuam a falar e ensinar aos seus irmãos na terra, como o atestam os numerosos ecos de sua vida até os nossos dias.
1. Antecedentes
1.1. A lepra outrora
A lepra é atualmente uma doença que pode ser curada ou estacionada se medicada em tempo oportuno; ainda hoje existem cerca de 15 milhões de leprosos no mundo. Mas há cinqüenta anos a lepra ainda era a doença mais horrenda que pudesse acometer alguém; terrificou durante milênios gerações e gerações humanas. O leproso presenciava diariamente o avanço da morte, cercado pelo espanto dos seus semelhantes, que o isolavam o mais possível. Aliás, já nas páginas do Antigo Testamento se prescrevia o isolamento dos leprosos: "Sua habitação será fora do acampamento" (Lv 13,45s). No Evangelho aparecem os leprosos a gritar à distância, pedindo a Jesus a cura (cf. Lc 17, 11-19).
O afastamento dos leprosos era a única medida de profilaxia conhecida pelos antigos. Mas devia-se também a uma concepção religiosa; o leproso era tido como ritualmente impuro, visto que, para os homens de outrora, a doença era freqüentemente considerada conseqüência de um pecado pessoal; especialmente a lepra, que desfigurava misteriosamente o ser humano, era vista como o estigma do pecado. Havia, pois, um tabu generalizado em torno da lepra, tabu que persistiu até os tempos atuais. Ora o Pe. Damião teve a coragem de quebrar esse tabu por amor a Cristo, a fim de servir
1.2. Molokai, a ilha “maldita”
O Havaí é um arquipélago que compreende cerca de 130 ilhas de origem vulcânica, no Oceano Pacífico; as principais se chamam Havaí, Mauí, Lanai, Molokai, Oahu, Kauai... A mais desenvolvida é Oahu, onde se encontra a base naval de Pearl Harbour e a capital chamada Honolulu. Em 1898 o arquipélago passou para a jurisdição dos Estados Unidos e hoje constitui o 50° Estado norte-americano. Os habitantes primitivos dessas ilhas era polinésios, aos quais sobrevieram outros grupos étnicos, especialmente após 1778 (quando o capitão James Cook descobriu o arquipélago). Até 1898 essa população era governada por uma monarquia aborígene.
Até
Foi escolhida a ilha de Molokai (= ilha da Amizade) para confinar os leprosos, arrancados violentamente do seio de suas famílias. A partir daquele momento, Molokai tornou-se a ilha do desespero, dos sepultados vivos, a ilha da vergonha para uma sociedade que só se preocupava com a sua sobrevivência e abandonava os enfermos numa espécie de campo de concentração.
Ao Norte da ilha, as aldeias de Kalaupapa e Kalawao tornaram-se o local dos leprosos, domiciliados em pobres cabanas, junto às quais foi erguida uma barraca com o pomposo título de "Centro de Observação" para recolher os enfermos mais contagiados. Nenhum médico, nenhuma assistência religiosa acompanhavam os doentes. Apenas se lhes garantia o transporte de alimentos e roupas mediante a nave Lehua, que em suas viagens carregava e descarregava carne destinada a morrer tragicamente.
Compreende-se que os doentes recusassem o confinamento na ilha da morte. Quando alguém suspeitava a doença, toda a família o cercava, ocultava e fugia para os bosques; preferiam morrer todos na floresta a ver o enfermo partir para o isolamento na ilha maldita. Havia, porém, os infelizes que não conseguiam escapar da Polícia e aqueles cuja família não lhes dava o afeto ou a proteção necessários para defender a vítima.
As notícias procedentes de Molokai eram espantosas. Os leprosos viviam entregues a si mesmos, sem leis nem regulamento. O ambiente do "campo de concentração" parecia desumanizá-los, apagando neles o senso de solidariedade. O desespero fazia que cada qual só pensasse em salvar a si mesmo; campeavam, pois, a violência, a arbitrariedade e a crueldade. Além disto,... o libertinismo sexual. Conscientes de que morreriam em breve, alguns procuravam ainda "desfrutar" aquilo que o momento lhes oferecesse em matéria de prazer... Pois foi precisamente nesse "inferno" que
2. O Pe. Damião: formação
Nasceu aos 03/01/1840 em Tremeloo (Bélgica). Era o sétimo dentre oito filhos e foi batizado com o nome de Joseph. As suas irmãs Eugénie e Pauline se fizeram Ursulinas; o seu irmão Augusto entrou na Congregação dos Padres de Picpus (dos Sagrados Corações).
Após uma missão pregada pelos PP. Redentoristas, Joseph resolveu consagrar-se ao Senhor. Pensou na Trapa, mas o irmão Augusto o encaminhou para a Congregação de Picpus. Já que não estudara latim, os Superiores o destinaram a ser Irmão leigo em 1859. Todavia, ao observarem sua inteligência, encarregaram Augusto de lhe ensinar o latim, de modo que Joseph em outubro de 1860 professou como aspirante ao sacerdócio, tendo tomado o nome de Damião. Em 19/10/1863 recebeu as Ordens Menores, precisamente na época em que seu irmão Augusto - já Padre Panfílio - devia partir como missionário para o Havaí; tendo este adoecido de tifo ainda na Bélgica, o Irmão Damião pediu que o enviassem em seu lugar. Após hesitações, o pedido foi aceito, de modo que Damião, tendo embarcado em Bremen (Alemanha) aos 02/11/1863, chegou em Honolulu cinco meses depois. Foi lá ordenado sacerdote aos 21/05/1864, com 24 anos de idade, cheio de saúde e pronto para tudo.
Enviado para a ilha do Havaí, a maior do arquipélago, o Pe. Damião fez as suas visitas apostólicas aos pontos mais pobres e desprovidos de assistência religiosa no distrito de Puna; construiu igrejas e viajou de piroga ou a cavalo para atingir grupos esparsos, enfrentando os mais diversos perigos.
Na primavera de 1865 foi encontrar-se com seu colega missionário na parte setentrional da ilha; lá esteve com o Pe. Clemente, adoentado e incapaz de percorrer a cavalo o seu vasto território; este propôs a Damião a troca do campo missionário. Clemente iria para Puna, região menor, e Damião ficaria com dois terços da ilha, ou seja, com os territórios de Kohala e Hamakua. O Pe. Damião sentia ter que abandonar o trabalho iniciado e começar de novo a evangelização. Mas não recusou (Escreveu ao seu irmão, Pe. Panfllio, aos 23/10/1865: "Tive que me separar dos meus caros cristãos. Esta separação pareceu-me mais penosa do que a de meus pais por causa do cordial afeto que eu sentia por aqueles caros neófitos.). Oito dias depois, assumiu a região
Em maio de 1873, o Vigário Apostólico Mons. Maigret convidou os missionários para uma reunião; eram sete em torno do prelado. Este lhes falou de Molokai, onde havia doentes abandonados, inclusive católicos; o Bispo conseguira construir lá uma pequena igreja dedicada a Santa Filomena; de vez em quando, um sacerdote oficiava lá, mas sempre por poucos dias. Disse então um dos padres presentes: "Excelência, queira designar um de nós para ser o missionário dos leprosos, e obedeceremos". Todos consentiram, exceto o Pe. Damião. Este pôs-se a refletir; recordou o Ritual de sua Profissão Religiosa, durante a qual se prostrara por terra e fora recoberto por uma mortalha, para significar que morria a si e aos prazeres do mundo, a fim de viver tão somente para Deus. Repetia com São Paulo: "A vossa vida está sepultada com Cristo em Deus" (C1 3,3). (O Pe. Damião escreveu ao seu irmão o Pe. Panfílio: "Foi por recordar-me de que estive sob o lençol mortuário no dia dos meus votos que resolvi desafiar o perigo de contrair a terrível doença, cumprindo a minha missão em
Após uma pausa em silêncio, disse finalmente: "Excelência, de todos os Distritos o meu é o que apresenta o maior número de leprosos. Muitos católicos, conhecidos meus, estão atualmente confinados
3. O pai dos leprosos
A chegada do Pe. Damião a Molokai surpreendeu, antes do mais, os leprosos: era a primeira vez que alguém lhes dedicava tanta atenção; o padre não era movido por interesses pessoais nem fora detido pelo medo. O Pe. Damião compreendia bem que o que humilhava e ofendia os leprosos, era a menção da sua doença; muitos visitantes, enfatizando antes do mais a moléstia, pareciam ignorar o ser humano que ela afetava; o leproso, por efeito de sua doença, era apenas um doente, um ser quase destituído de direitos; um morto que continuava a viver para dar trabalho aos sadios; era oportuno alimentá-lo, vesti-lo, contanto que ficasse longe e desaparecesse quanto antes.
Ciente disto, o Pe. Damião resolveu tratar os leprosos como tratava as pessoas sadias, embora estivesse certo de que assim podia contrair a doença: apertava-lhes as mãos, acariciava as crianças, comia do mesmo prato em que os leprosos colocavam os cotos gangrenados, bebia chá nas xícaras utilizadas pelos doentes... com a máxima naturalidade, como se não houvesse lepra. Assim o Pe. Damião lhes mostrava que eram dignos de amor fraterno, por mais que a sociedade os relegasse.
Certa vez, tendo reconhecido um dos seus leprosos da ilha de Havaí, saudou-o, abraçou-o, assim como a todos os que estavam com ele. Uma atitude tão ousada fez renascer a esperança no grupo, a tal ponto que o Superintendente Walsh repetia: "Incrível! Incrível! Mal chegou o padre e eles já não são os mesmos!".
Quando pela primeira vez entrou na igreja de Santa Filomena, sentiu repulsa por causa do mau cheiro lá existente. Mas Damião se conteve; foi-se habituando... Ficava longas horas atrás das grades do confessionário e a poucos centímetros da boca infecciosa dos enfermos.
Havia também que construir nova igreja e melhores alojamentos para os enfermos. Não o quis fazer a sós, consciente de que seria útil aos doentes tirá-los da inércia e restaurar neles o sentido de que eram pessoas de valor; não se detivessem tanto a pensar na doença e no fim da vida. O trabalho era uma forma de psicoterapia.
Por conseguinte, o Pe. Damião criou uma equipe de operários: havia carpinteiros, pedreiros, ferreiros..., cuja principal tarefa era construir pequenas casas de madeira para as famílias, em substituição dos seus abrigos infectos. Nem todos os leprosos estavam dispostos a isto, pois o hábito da inércia os dominava. Eis, porém, que uma tempestade sobreveio, derrubando numa noite a maioria das choupanas; todos então se sentiram mobilizados para o trabalho.
O Pe. Damião muito se preocupava com as crianças abandonadas. Daí a construção de dois Orfanatos - um masculino, e outro feminino - e uma escola.
As funções litúrgicas eram celebradas com a participação da comunidade, que cuidava das flores, das vestes, dos cantos, das procissões... Nos dias de festa, a igrejinha de S. Filomena já não bastava para conter os católicos, os protestantes e os pagãos.
O padre interessou-se também pela recreação dos doentes, de modo que constituiu uma banda musical, organizou desfiles, montou uma equipe de cavaleiros, que se exibiam nos dias solenes.
Dava o máximo de atenção ao hospital, onde jaziam os mais enfermos e os moribundos. Aprendeu a fazer os curativos, a desinfetar as chagas, a amputar com habilidade as partes do organismo putrefeitas. Até mesmo os mortos eram tratados com dignidade: não queria que fossem envolvidos em seu lençol fétido e enterrados às pressas (como era costume), mas o próprio padre confeccionava o caixão com suas mãos, lá punha o defunto e o mandava levar para a igreja. Assim os funerais vinham a ser ocasião de meditar sobre a morte e a própria morte recuperava sentido.
Na falta de médicos, o Pe. Damião improvisou-se como provedor de remédios. Mandou vir tratados de Medicina: entrou em contato com hospitais e cientistas, principalmente com aqueles de quem se dizia que tinham descoberto a cura da lepra. Precisamente no fim de 1873 desembarcou em Molokai numa leva de leprosos o Dr. Williamson, leproso, que trabalhava no hospital de Kaliki; foi de grande ajuda para o Pe. Damião, pois o orientou, adotou as técnicas mais recentes, mandou vir os remédios mais novos, às custas do próprio bolso.
O Bispo Mons. Maigret prometera em 1873 voltar a Molokai para ministrar a Crisma. Ele o fez realmente em 1875; ficou surpreso ao observar as mudanças ocorridas entre os leprosos; no lugar das choupanas miseráveis, ele via uma fila de pequenas casas brancas cercadas de jardins, com flores e coqueiros. Os leprosos que ele encontrava, já não tinham o semblante triste, sujo e desnutrido de dois anos atrás. Aplaudiam alegremente; uma banda de flautins e tambores acolheu o prelado. Um grupo de 135 enfermos recebeu o sacramento da Crisma, enquanto o coral cantava em latim e em kanaka.
Quando o Bispo se despediu da população, de novo os enfermos o saudaram com músicas, bandeirinhas e flâmulas.
4. Amigos e opositores
Quando se espalhou a notícia de que um padre católico se encerrava voluntariamente no Leprosário de Molokai, a opinião pública internacional se estarreceu. A primeira voz a romper o silêncio surpreso foi a do jornal Advertiser de Honolulu, ao anunciar:
'Muitas vezes observamos que os pobres leprosos retirados em Molokai, sem remédios nem assistência espiritual, ofereciam ao heroísmo cristão a ocasião de realizar um nobre holocausto. Estamos orgulhosos por ver e felizes por poder dizer que tal herói existe'
Estes dizeres tiveram por conseqüência o afluxo de donativos em dinheiro e bens naturais para o Leprosário. As Religiosas prepararam uma grande remessa de remédios, roupas, açúcar, biscoitos... Tanto da América como da Europa os amigos se fizeram assim presentes.
Mas não faltaram contestações. O Comitê de Higiene do Governo do arquipélago, movido por sentimentos mesquinhos, pôs-se a acusar o padre Damião: teria entrado na ilha de Molokai sem autorização, ter-se-ia comportado com temeridade e imprudência; ter-se-ia deixado levar pelo exibicionismo, levando consigo apenas o Crucifixo e o Breviário. Foram levantadas suspeitas a propósito do uso que o padre fazia dos donativos recebidos. Foi também impugnado por haver praticado a medicina sem o título correspondente. Mais tarde, ainda o caluniaram, dizendo que contraíra a lepra em virtude de contatos sexuais com os enfermos.
Por conseguinte, alguns meses após a chegada do missionário a Maiokai, o Comitê lhe enviou a determinação seguinte: visto que entrara no Leprosário e deste saía, ainda que em poucas e breves ausências, era um transmissor da moléstia; em conseqüência era-lhe proibido sair dos limites da zona infecta. O Pe. Damião assim viu-se prisioneiro; já não poderia ir a Honolulu nem mesmo para confessar-se. Compreendeu, porém, que o Comitê contava com a sua desobediência para expulsá-lo da ilha definitivamente. Por isto resolveu obedecer. O Pe. Modesto, Provincial e grande amigo de Damião, certa vez foi de navio a Molokai para entrevistar-se com o missionário, mas não o deixaram desembarcar; então o Pe. Damião foi de canoa até a nave e dentro desta se confessou em voz alta ao seu Superior.
Tempos depois, o Comitê enviou nova intimação ao Pe. Damião: não poderia mais entrar no hospital. O Missionário, desta vez, rebelou-se, pois seriam prejudicados os doentes mais atormentados. Em conseqüência foi mandada a Molokai uma Comissão de Inquérito. Interrogaram os doentes, dos quais só puderam ouvir elogios ao Pe. Damião. Depois disto, procuraram o próprio padre para acusá-lo de exercício ilegal da Medicina. Respondeu ele:
'Sim, pratiquei a cirurgia. Cheguei a amputar membros irrecuperavelmente gangrenados. Até hoje realizei cerca de vinte intervenções e todos os respectivos pacientes continuam vivos... Em Molokai não há um médico, um cirurgião, um enfermeiro. Se dois de vós se encontrassem num deserto e um fosse mordido por uma serpente, o outro não lhe prestaria ajuda?" Caso quisessem fazer algo pelos infelizes de Molokai, obtivessem do Governo médicos, enfermeiros, material sanitário, leitos, colchões, lençóis... Em Molokai faltava tudo.
Duas semanas após essa visita, o Comitê de Higiene retirava do padre a proibição de entrar no hospital. Ainda posteriormente, por pressão da opinião pública internacional, também foi cancelada a ordem de não sair da ilha.
Mas continuavam as hostilidades, que se estenderam aos confrades e aos Superiores do Pe. Damião, pois recebiam importantes donativos para os leprosos. Como eram utilizados? O Pe. Damião sofria não só por causa de tais suspeitas, mas pelo próprio alarde que faziam no estrangeiro em torno da sua pessoa: poderia provocar novas medidas de represália da parte das autoridades, que se sentiam culpadas por não terem assumido a si o cuidado dos leprosos, deixando-os ao zelo de um missionário estrangeiro.
O Pe. Damião pedia sempre aos Superiores ao menos um outro missionário e algumas Irmãs para se dedicarem aos orfanatos e ao hospital. Houve, sim, tentativas de ajuda, mas frustradas pelo insucesso. Somente no fim da vida o Pe. Damião viu a resposta para os seus anseios:
Em
Em 1888 (um ano antes da morte) a Providência enviou ao Pe. Damião outro colaborador: o enfermeiro irlandês católico James Sinnet. Já naquela época estavam superadas as hostilidades e suspeitas contra o missionário. Contava com a presença de mais dois colaboradores sacerdotes: o Pe. Wendelin Moellers e o Pe. Louis-Lambert Conrardy. Poucos meses antes de morrer, foi consolado pela notícia de que estavam para chegar Religiosas, que cuidariam do Leprosário.
Não faltou ao Pe. Damião o reconhecimento oficial das autoridades governamentais.
Em setembro de 1881 desembarcaram na ilha, em visita de inspeção, Sua Alteza a rainha-mãe e regente Liliukalani, acompanhada por sua irmã, a princesa Likelike, pelo Primeiro-Ministro J.M.Kapena e numerosas personalidades. A população os recebeu festivamente com flores e cantos. Mas a rainha e outros membros da comitiva caíram em prantos ao ver os leprosos, somente o Primeiro-Ministro conseguiu proferir breve discurso. Alguns dias depois chegava ao Pe. Damião e a seu Bispo a notícia de que a
5. O declínio físico
A doença havia de afetar o Pe. Damião. Ele o sabia: "Eu o tinha previsto desde a minha chegada ao Leprosário; eu o tinha aceito de antemão e de bom grado".
Os primeiros sintomas fizeram-se perceber em 1877 (doze anos antes da morte!): algumas manchas brancas apareceram nos braços e nas costas; o Padre as esfregou com uma esponja. No ano seguinte, porém, começou a sentir dores nos pulsos, calafrios e inchaço, dormência nas extremidades do corpo, etc. Pôs-se a caminhar manco, mas preferiu não pensar demais no assunto; podia tratar-se de artrose ou de elefantíase.
Em 1885 o Pe. Damião teve a certeza incontornável de estar leproso, pois o microbiólogo Prof. Arning, passando pela ilha para fazer pesquisas, examinou o missionário e lhe declarou a sua genuína situação. O padre a aceitou tranqüilamente; sentia-se ainda vigoroso e disposto para o trabalho. Uma noite, porém, ao voltar cansado das suas lutas, esquentou um pouco de água para lavar-se; então o pé esquerdo escorregou para dentro da bacia sem que o padre sentisse a mínima dor; o coração bateu forte e murmurou: "Estou leproso. Obrigado, meu Deus!"
Daquele momento em diante, apoderou-se dele uma estranha calma. Pôs-se a escrever cartas, das quais merecem atenção alguns extratos:
Ao Bispo: "Também eu estou leproso. Começam a notar-se os sinais nas faces e na orelha esquerda. Os cílios começam a cair. Em breve estarei totalmente desfigurado. Não tenha dúvidas sobre a índole da minha doença; estou calmo, conformado e muito sereno em meio à minha gente”.
Ao Pe. Provincial: “Não me pranteeis demais. Estou plenamente conformado com o que me toca. Só lhe peço um favor: suplique ao Pe. Geral queira enviar a este sepulcro alguém disposto a ouvir-me em confissão e a atender às capelas do outro lado da ilha, onde não há leprosos”.
Ao Superior Geral: "Não vos surpreendais nem entristeçais demais ao saber que um dos vossos filhos espirituais foi condecorado não somente com a Real Cruz de Kalakana, mas também com a cruz um pouco mais pesada e menos nobre da lepra, com a qual Nosso Senhor quis estigmatizar-me... Está claro, nada peço de melhor do que ficar e morrer
Ao irmão Pe. Panfílio escrevia aos 9/9/1887 (um ano e meio antes de morrer):
"Espero ser eternamente grato a Deus por este favor. A doença apressará um pouco e tornará mais direta a minha caminhada para a pátria celeste. Com esta esperança, aceito a minha cruz pessoal e esforço-me por carregá-la segundo o exemplo de Simão Cireneu, atrás do nosso Divino Mestre. Ajuda-me com as tuas orações, eu te suplico, a fim de que eu encontre a força para perseverar e chegar serenamente ao cume do Calvário. Embora a lepra já tenha causado danos ao meu corpo, desfigurando-me um pouco, continuo forte e robusto. As intensas dores que há tempos eu sofria nos pés,
desapareceram. A doença ainda não me atacou as mãos; continuo, pois, a celebrar a S. Missa. Esta graça me consola, seja por causa de meus interesses espirituais, seja por causa dos meus numerosos companheiros de desgraça”.
A notícia da doença do Pe. Damião espalhou-se pelo mundo. A única nota destoante foi a resposta do Pe. Provincial Léonor: censurava Damião por haver criado problemas para a missão pela sua imprudência e lhe ordenava que não fosse a Honolulu, para evitar que toda a missão fosse posta de quarentena. O Pe. Damião, porém, não se abalou; autodefinia-se como "o missionário mais feliz da terra".
Continuava a trabalhar. Em junho de 1886, as autoridades médicas pediram ao Bispo local que chamasse o Pe. Damião a Honolulu para um controle do seu estado de saúde. O padre se alarmou; respondeu que se ausentaria por duas semanas apenas. Se tivesse que ficar meses fora, pedia um substituto. Embarcou, pois, fazendo a sua última viagem,... viagem de um "réu" que a todo momento pensava seria censurado e finalmente devolvido ao campo de concentração para morrer com os banidos da sociedade.
Ao contrário, foi por todos acolhido com admiração. Falou com os médicos, que o informaram a respeito do tratamento da lepra. O rei foi visitá-lo, a fim de lhe agradecer, cercado dos médicos e responsáveis do hospital de Honolulu. Esteve também com o Bispo local, que o abraçou e ao qual disse: "Vim pedir-vos uma graça, a mesma que solicitei na minha última carta: a de não ter que me separar de meus leprosos".
Voltou tranqüilo para Molokai. As suas condições de saúde se agravaram; mas o missionário não capitulou. Ainda construiu um aqueduto com os numerosos donativos que recebia. Deu início à reconstrução da igreja danificada por uma tempestade. Em novembro de 1887 chegaram as primeiras três Irmãs para atender aos Orfanatos.
Em fevereiro de
Aos 31/03 recebeu os sacramentos. Disse: "Deus me chama para celebrar a Páscoa com Ele. A seguir, as chagas do rosto e das mãos começaram a fechar-se; a crosta tornou-se preta. Era o sinal do fim. Damião o sabia e o observou frente aos companheiros. No dia 03/04 experimentou ligeira melhora, de pouca duração. Na noite seguinte repetia: "Os meus caros leprosos!.. Os meus caros leprosos!.." Sabia que estavam frente à sua casa em multidão orando por ele.
Aos 14/04 tornou-se cego. Agonizava, mas continuava a rezar o rosário, apertando com força as mãos do Irmão José, do Pe. Conrardy e do Irmão Tiago. Durante a noite entrou em agonia, e aos 15/04/1889 expirou suavemente.
As citações incluídas neste artigo foram retiradas da resenha biográfica publicada pelo Pe. Alessandro Scurami S.J. sob o título Padre Damiano, Lebbroso per Cristo
O testemunho do Pe. Damião, no século passado, aproxima-se do do Pe. Maximiliano Kolbe em nosso século. Trata-se de duas pessoas que, por amor a Cristo, sacrificaram sua vida. Nem todo cristão é chamado por Deus a demonstrar seu amor ao Senhor e aos irmãos em Leprosário ou campo de concentração, mas todos são chamados a ter a disponibilidade para tanto, caso isto seja da vontade de Deus. Com outras palavras: todos são chamados ao amor perfeito ou à perfeição espiritual ou à santidade (ver Constituição Lumen Gentium c. V). A vivência dos dois heróis é sinal de que esse amor é possível ou de que Deus dá a graça quando chama alguém à perfeição (como realmente chama todos).
Por conseguinte, recordar a façanha do Pe. Damião não é apenas evocar o passado, mas é também avivar a consciência de que ninguém é chamado à mediocridade, mas todos têm, nas condições concretas e rotineiras em que se acham, a graça para viver de maneira santa e perfeita a sua existência de cada dia. A fim de ser santo, não é necessário ir para um campo de concentração, pois aí mesmo onde a Providência coloca cada qual, concede todos os subsídios necessários para que viva em perfeição.
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