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sábado, 12 de maio de 2007

Personalidades: Padre Damião: o leproso de Cristo

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 331/1989)


Em síntese: O Pe. Damião de Veuster (1840-1889) quis dedicar-se aos leprosos da ilha de Molokai (arquipélago do Havaí), destituídos de toda assistência médica e religiosa, internando-se no seu "campo de concentração compartilhando a vida dos mesmos. Reanimou os enfermos, procurando dar um sentido à vida daqueles que eram "sepultados vivos" em Molokai; ajudou-os a construir suas casas, a cultivar o artesanato, a formar bandas de música... Procurou remédios e instruções médicas para atender à moléstia dos seus leprosos. Isto lhe valeu a estima da opinião pública mundial já em vida, como também a inveja e a hostilidade de autoridades que, em sua inér­cia, se sentiam interpeladas pelas iniciativas do missionário. Acabou conta­giado pela lepra, que ele suportou durante doze anos, procurando sempre reerguer o seu próprio ânimo e trabalhar energicamente. O rei e a rainha do ar­quipélago do Havaí o homenagearam e condecoraram no decorrer de sua vi­da, que foi a de um herói, cuja morte foi comemorada com admiração na da­ta de seu primeiro centenário (15/04/1989).

***

Comemora-se em 1989 nas diversas partes do mundo o primeiro cen­tenário da morte do Pe. Damião de Veuster; havia-se internado na ilha de Molokai como capelão dos leprosos, e lá morreu afetado pela moléstia, que ele suportou heroicamente por amor a Cristo e aos irmãos durante doze anos. 0 testemunho de fé e coragem deixado por esse sacerdote merece ser recordado, pois os justos, ainda que falecidos, continuam a falar e ensinar aos seus irmãos na terra, como o atestam os numerosos ecos de sua vida até os nossos dias.

1. Antecedentes

1.1. A lepra outrora

A lepra é atualmente uma doença que pode ser curada ou estacionada se medicada em tempo oportuno; ainda hoje existem cerca de 15 milhões de leprosos no mundo. Mas há cinqüenta anos a lepra ainda era a doença mais horrenda que pudesse acometer alguém; terrificou durante milênios gerações e gerações humanas. O leproso presenciava diariamente o avanço da morte, cercado pelo espanto dos seus semelhantes, que o isolavam o mais possível. Aliás, já nas páginas do Antigo Testamento se prescrevia o isolamento dos leprosos: "Sua habitação será fora do acampamento" (Lv 13,45s). No Evangelho aparecem os leprosos a gritar à distância, pedindo a Jesus a cura (cf. Lc 17, 11-19).

O afastamento dos leprosos era a única medida de profilaxia conheci­da pelos antigos. Mas devia-se também a uma concepção religiosa; o leproso era tido como ritualmente impuro, visto que, para os homens de outrora, a doença era freqüentemente considerada conseqüência de um pecado pessoal; especialmente a lepra, que desfigurava misteriosamente o ser humano, era vista como o estigma do pecado. Havia, pois, um tabu generalizado em torno da lepra, tabu que persistiu até os tempos atuais. Ora o Pe. Damião teve a coragem de quebrar esse tabu por amor a Cristo, a fim de servir abnegada­mente aos seus irmãos leprosos. Nisto consistem o seu mérito e a sua gran­deza.

1.2. Molokai, a ilha maldita­”

O Havaí é um arquipélago que compreende cerca de 130 ilhas de ori­gem vulcânica, no Oceano Pacífico; as principais se chamam Havaí, Mauí, Lanai, Molokai, Oahu, Kauai... A mais desenvolvida é Oahu, onde se encon­tra a base naval de Pearl Harbour e a capital chamada Honolulu. Em 1898 o arquipélago passou para a jurisdição dos Estados Unidos e hoje constitui o 50° Estado norte-americano. Os habitantes primitivos dessas ilhas era poli­nésios, aos quais sobrevieram outros grupos étnicos, especialmente após 1778 (quando o capitão James Cook descobriu o arquipélago). Até 1898 es­sa população era governada por uma monarquia aborígene.

Até 1823 a lepra era desconhecida no Havaí. O alarme relativo à sua existência foi lançado pelo missionário norte-americano protestante Rev. Stewart. A partir de 1850 tornou-se um autêntico flagelo, denominado Mai-Paké, o mal chinês (pois se julgava oriunda da China). Em 1850 consti­tuiu-se um Comitê de Higiene, encarregado de debelar a doença mediante medicamentos e conselhos. Em 1863, o Dr. Hildebrand denunciou o perigo de contágio - o que suscitou, da parte do rei Liholiho, medidas drásticas para conter a epidemia; a opinião pública mundial estava seriamente impres­sionada com o fato.

Foi escolhida a ilha de Molokai (= ilha da Amizade) para confinar os leprosos, arrancados violentamente do seio de suas famílias. A partir daquele momento, Molokai tornou-se a ilha do desespero, dos sepultados vivos, a ilha da vergonha para uma sociedade que só se preocupava com a sua sobre­vivência e abandonava os enfermos numa espécie de campo de concentração.

Ao Norte da ilha, as aldeias de Kalaupapa e Kalawao tornaram-se o local dos leprosos, domiciliados em pobres cabanas, junto às quais foi erguida uma barraca com o pomposo título de "Centro de Observação" para recolher os enfermos mais contagiados. Nenhum médico, nenhuma assistên­cia religiosa acompanhavam os doentes. Apenas se lhes garantia o transporte de alimentos e roupas mediante a nave Lehua, que em suas viagens carregava e descarregava carne destinada a morrer tragicamente.

Compreende-se que os doentes recusassem o confinamento na ilha da morte. Quando alguém suspeitava a doença, toda a família o cercava, oculta­va e fugia para os bosques; preferiam morrer todos na floresta a ver o enfer­mo partir para o isolamento na ilha maldita. Havia, porém, os infelizes que não conseguiam escapar da Polícia e aqueles cuja família não lhes dava o afe­to ou a proteção necessários para defender a vítima.

As notícias procedentes de Molokai eram espantosas. Os leprosos vi­viam entregues a si mesmos, sem leis nem regulamento. O ambiente do "campo de concentração" parecia desumanizá-los, apagando neles o senso de solidariedade. O desespero fazia que cada qual só pensasse em salvar a si mesmo; campeavam, pois, a violência, a arbitrariedade e a crueldade. Além disto,... o libertinismo sexual. Conscientes de que morreriam em breve, al­guns procuravam ainda "desfrutar" aquilo que o momento lhes oferecesse em matéria de prazer... Pois foi precisamente nesse "inferno" que desembar­cou o Pe. Damião de Veuster aos 10/05/1873.

2. O Pe. Damião: formação

Nasceu aos 03/01/1840 em Tremeloo (Bélgica). Era o sétimo dentre oito filhos e foi batizado com o nome de Joseph. As suas irmãs Eugénie e Pauline se fizeram Ursulinas; o seu irmão Augusto entrou na Congregação dos Padres de Picpus (dos Sagrados Corações).

Após uma missão pregada pelos PP. Redentoristas, Joseph resolveu consagrar-se ao Senhor. Pensou na Trapa, mas o irmão Augusto o encami­nhou para a Congregação de Picpus. Já que não estudara latim, os Superiores o destinaram a ser Irmão leigo em 1859. Todavia, ao observarem sua inteli­gência, encarregaram Augusto de lhe ensinar o latim, de modo que Joseph em outubro de 1860 professou como aspirante ao sacerdócio, tendo tomado o nome de Damião. Em 19/10/1863 recebeu as Ordens Menores, precisamente na época em que seu irmão Augusto - já Padre Panfílio - devia partir como missionário para o Havaí; tendo este adoecido de tifo ainda na Bélgica, o Ir­mão Damião pediu que o enviassem em seu lugar. Após hesitações, o pedido foi aceito, de modo que Damião, tendo embarcado em Bremen (Alemanha) aos 02/11/1863, chegou em Honolulu cinco meses depois. Foi lá ordenado sacerdote aos 21/05/1864, com 24 anos de idade, cheio de saúde e pronto para tudo.

Enviado para a ilha do Havaí, a maior do arquipélago, o Pe. Damião fez as suas visitas apostólicas aos pontos mais pobres e desprovidos de assis­tência religiosa no distrito de Puna; construiu igrejas e viajou de piroga ou a cavalo para atingir grupos esparsos, enfrentando os mais diversos perigos.

Na primavera de 1865 foi encontrar-se com seu colega missionário na parte setentrional da ilha; lá esteve com o Pe. Clemente, adoentado e incapaz de percorrer a cavalo o seu vasto território; este propôs a Damião a troca do campo missionário. Clemente iria para Puna, região menor, e Damião ficaria com dois terços da ilha, ou seja, com os territórios de Kohala e Hamakua. O Pe. Damião sentia ter que abandonar o trabalho iniciado e começar de novo a evangelização. Mas não recusou (Escreveu ao seu irmão, Pe. Panfllio, aos 23/10/1865: "Tive que me separar dos meus caros cristãos. Esta separação pareceu-me mais penosa do que a de meus pais por causa do cordial afeto que eu sentia por aqueles caros neófi­tos.). Oito dias depois, assumiu a região seten­trional da ilha, onde permaneceu sete anos: construiu seis igrejas, cinco esco­las, três casas paroquiais, trabalhando pessoalmente com as mãos. Somente em 1868 o Pe. Provincial lhe mandou um auxiliar, que era o Pe. Gulstano.

Em maio de 1873, o Vigário Apostólico Mons. Maigret convidou os missionários para uma reunião; eram sete em torno do prelado. Este lhes fa­lou de Molokai, onde havia doentes abandonados, inclusive católicos; o Bis­po conseguira construir lá uma pequena igreja dedicada a Santa Filomena; de vez em quando, um sacerdote oficiava lá, mas sempre por poucos dias. Disse então um dos padres presentes: "Excelência, queira designar um de nós para ser o missionário dos leprosos, e obedeceremos". Todos consenti­ram, exceto o Pe. Damião. Este pôs-se a refletir; recordou o Ritual de sua Profissão Religiosa, durante a qual se prostrara por terra e fora recoberto por uma mortalha, para significar que morria a si e aos prazeres do mundo, a fim de viver tão somente para Deus. Repetia com São Paulo: "A vossa vida está sepultada com Cristo em Deus" (C1 3,3). (O Pe. Damião escreveu ao seu irmão o Pe. Panfílio: "Foi por recordar-me de que estive sob o lençol mortuário no dia dos meus votos que resolvi desa­fiar o perigo de contrair a terrível doença, cumprindo a minha missão em Molokai").

Após uma pausa em silêncio, disse finalmente: "Excelência, de todos os Distritos o meu é o que apresenta o maior número de leprosos. Muitos católicos, conhecidos meus, estão atual­mente confinados em Molokai. tenho uma certa prática de lepra. Peço a V. Excia. que me envie". O silêncio tornou-se ainda mais tenso, e o Bispo o rompeu dizendo: "Eu nunca teria ousado impor a alguém uma tarefa tão di­fícil. Mas diante da generosidade da tua oferta, aceito-a com alegria. Partire­mos juntos; eu mesmo te apresentarei aos nossos leprosos católicos."

3. O pai dos leprosos

A chegada do Pe. Damião a Molokai surpreendeu, antes do mais, os leprosos: era a primeira vez que alguém lhes dedicava tanta atenção; o padre não era movido por interesses pessoais nem fora detido pelo medo. O Pe. Damião compreendia bem que o que humilhava e ofendia os leprosos, era a menção da sua doença; muitos visitantes, enfatizando antes do mais a mo­léstia, pareciam ignorar o ser humano que ela afetava; o leproso, por efeito de sua doença, era apenas um doente, um ser quase destituído de direitos; um morto que continuava a viver para dar trabalho aos sadios; era oportuno alimentá-lo, vesti-lo, contanto que ficasse longe e desaparecesse quanto antes.

Ciente disto, o Pe. Damião resolveu tratar os leprosos como tratava as pessoas sadias, embora estivesse certo de que assim podia contrair a doença: apertava-lhes as mãos, acariciava as crianças, comia do mesmo prato em que os leprosos colocavam os cotos gangrenados, bebia chá nas xícaras utilizadas pelos doentes... com a máxima naturalidade, como se não houvesse lepra. Assim o Pe. Damião lhes mostrava que eram dignos de amor fraterno, por mais que a sociedade os relegasse.

Certa vez, tendo reconhecido um dos seus leprosos da ilha de Havaí, saudou-o, abraçou-o, assim como a todos os que estavam com ele. Uma atitude tão ousada fez renascer a esperança no grupo, a tal ponto que o Su­perintendente Walsh repetia: "Incrível! Incrível! Mal chegou o padre e eles já não são os mesmos!".

Quando pela primeira vez entrou na igreja de Santa Filomena, sentiu repulsa por causa do mau cheiro existente. Mas Damião se conteve; foi-se habituando... Ficava longas horas atrás das grades do confessionário e a poucos centímetros da boca infecciosa dos enfermos.

Havia também que construir nova igreja e melhores alojamentos para os enfermos. Não o quis fazer a sós, consciente de que seria útil aos doentes tirá-los da inércia e restaurar neles o sentido de que eram pessoas de valor; não se detivessem tanto a pensar na doença e no fim da vida. O trabalho era uma forma de psicoterapia.

Por conseguinte, o Pe. Damião criou uma equipe de operários: havia carpinteiros, pedreiros, ferreiros..., cuja principal tarefa era construir pequenas casas de madeira para as famílias, em substituição dos seus abrigos infectos. Nem todos os leprosos estavam dispostos a isto, pois o hábito da inércia os dominava. Eis, porém, que uma tempestade sobreveio, derrubando numa noite a maioria das choupanas; todos então se sentiram mobilizados para o trabalho.

O Pe. Damião muito se preocupava com as crianças abandonadas. Daí a construção de dois Orfanatos - um masculino, e outro feminino - e uma escola.

As funções litúrgicas eram celebradas com a participação da comunidade, que cuidava das flores, das vestes, dos cantos, das procissões... Nos dias de festa, a igrejinha de S. Filomena já não bastava para conter os católicos, os protestantes e os pagãos.

O padre interessou-se também pela recreação dos doentes, de modo que constituiu uma banda musical, organizou desfiles, montou uma equipe de cavaleiros, que se exibiam nos dias solenes.

Dava o máximo de atenção ao hospital, onde jaziam os mais enfermos e os moribundos. Aprendeu a fazer os curativos, a desinfetar as chagas, a amputar com habilidade as partes do organismo putrefeitas. Até mesmo os mortos eram tratados com dignidade: não queria que fossem envolvidos em seu lençol fétido e enterrados às pressas (como era costume), mas o próprio padre confeccionava o caixão com suas mãos, lá punha o defunto e o mandava levar para a igreja. Assim os funerais vinham a ser ocasião de meditar sobre a morte e a própria morte recuperava sentido.

Na falta de médicos, o Pe. Damião improvisou-se como provedor de remédios. Mandou vir tratados de Medicina: entrou em contato com hospitais e cientistas, principalmente com aqueles de quem se dizia que tinham descoberto a cura da lepra. Precisamente no fim de 1873 desembarcou em Molokai numa leva de leprosos o Dr. Williamson, leproso, que trabalhava no hospital de Kaliki; foi de grande ajuda para o Pe. Damião, pois o orientou, adotou as técnicas mais recentes, mandou vir os remédios mais novos, às custas do próprio bolso.

O Bispo Mons. Maigret prometera em 1873 voltar a Molokai para ministrar a Crisma. Ele o fez realmente em 1875; ficou surpreso ao observar as mudanças ocorridas entre os leprosos; no lugar das choupanas miseráveis, ele via uma fila de pequenas casas brancas cercadas de jardins, com flores e coqueiros. Os leprosos que ele encontrava, já não tinham o semblante triste, sujo e desnutrido de dois anos atrás. Aplaudiam alegremente; uma banda de flautins e tambores acolheu o prelado. Um grupo de 135 enfermos recebeu o sacramento da Crisma, enquanto o coral cantava em latim e em kanaka.

Quando o Bispo se despediu da população, de novo os enfermos o saudaram com músicas, bandeirinhas e flâmulas.

4. Amigos e opositores

Quando se espalhou a notícia de que um padre católico se encerrava voluntariamente no Leprosário de Molokai, a opinião pública internacional se estarreceu. A primeira voz a romper o silêncio surpreso foi a do jornal Advertiser de Honolulu, ao anunciar:

'Muitas vezes observamos que os pobres leprosos retirados em Molokai, sem remédios nem assistência espiritual, ofereciam ao heroísmo cristão a ocasião de realizar um nobre holocausto. Estamos orgulhosos por ver e felizes por poder dizer que tal herói existe'

Estes dizeres tiveram por conseqüência o afluxo de donativos em dinheiro e bens naturais para o Leprosário. As Religiosas prepararam uma grande remessa de remédios, roupas, açúcar, biscoitos... Tanto da América como da Europa os amigos se fizeram assim presentes.

Mas não faltaram contestações. O Comitê de Higiene do Governo do arquipélago, movido por sentimentos mesquinhos, pôs-se a acusar o padre Damião: teria entrado na ilha de Molokai sem autorização, ter-se-ia comportado com temeridade e imprudência; ter-se-ia deixado levar pelo exibicionismo, levando consigo apenas o Crucifixo e o Breviário. Foram levantadas suspeitas a propósito do uso que o padre fazia dos donativos recebidos. Foi também impugnado por haver praticado a medicina sem o título correspondente. Mais tarde, ainda o caluniaram, dizendo que contraíra a lepra em virtude de contatos sexuais com os enfermos.

Por conseguinte, alguns meses após a chegada do missionário a Maiokai, o Comitê lhe enviou a determinação seguinte: visto que entrara no Le­prosário e deste saía, ainda que em poucas e breves ausências, era um trans­missor da moléstia; em conseqüência era-lhe proibido sair dos limites da zo­na infecta. O Pe. Damião assim viu-se prisioneiro; já não poderia ir a Hono­lulu nem mesmo para confessar-se. Compreendeu, porém, que o Comitê con­tava com a sua desobediência para expulsá-lo da ilha definitivamente. Por is­to resolveu obedecer. O Pe. Modesto, Provincial e grande amigo de Damião, certa vez foi de navio a Molokai para entrevistar-se com o missionário, mas não o deixaram desembarcar; então o Pe. Damião foi de canoa até a nave e dentro desta se confessou em voz alta ao seu Superior.

Tempos depois, o Comitê enviou nova intimação ao Pe. Damião: não poderia mais entrar no hospital. O Missionário, desta vez, rebelou-se, pois se­riam prejudicados os doentes mais atormentados. Em conseqüência foi man­dada a Molokai uma Comissão de Inquérito. Interrogaram os doentes, dos quais só puderam ouvir elogios ao Pe. Damião. Depois disto, procuraram o próprio padre para acusá-lo de exercício ilegal da Medicina. Respondeu ele:

'Sim, pratiquei a cirurgia. Cheguei a amputar membros irrecuperavel­mente gangrenados. Até hoje realizei cerca de vinte intervenções e todos os respectivos pacientes continuam vivos... Em Molokai não há um médico, um cirurgião, um enfermeiro. Se dois de vós se encontrassem num deserto e um fosse mordido por uma serpente, o outro não lhe prestaria ajuda?" Caso qui­sessem fazer algo pelos infelizes de Molokai, obtivessem do Governo médi­cos, enfermeiros, material sanitário, leitos, colchões, lençóis... Em Molokai faltava tudo.

Duas semanas após essa visita, o Comitê de Higiene retirava do padre a proibição de entrar no hospital. Ainda posteriormente, por pressão da opi­nião pública internacional, também foi cancelada a ordem de não sair da ilha.

Mas continuavam as hostilidades, que se estenderam aos confrades e aos Superiores do Pe. Damião, pois recebiam importantes donativos para os leprosos. Como eram utilizados? O Pe. Damião sofria não só por causa de tais suspeitas, mas pelo próprio alarde que faziam no estrangeiro em torno da sua pessoa: poderia provocar novas medidas de represália da parte das au­toridades, que se sentiam culpadas por não terem assumido a si o cuidado dos leprosos, deixando-os ao zelo de um missionário estrangeiro.

O Pe. Damião pedia sempre aos Superiores ao menos um outro missio­nário e algumas Irmãs para se dedicarem aos orfanatos e ao hospital. Houve, sim, tentativas de ajuda, mas frustradas pelo insucesso. Somente no fim da vida o Pe. Damião viu a resposta para os seus anseios:

Em 1886 a Providência enviou-lhe um ex-oficial do Exército norte-­americano: o Inspector Ira Barns Dutton. Aos quarenta anos de idade, con­vertera-se ao Catolicismo e fizera a experiência da vida trapista por dois anos. Tendo deixado o mosteiro, leu uma notícia sobre Molokai, vendeu tu­do o que tinha e partiu para a ilha, colocando-se ao inteiro dispor do Pe. Damião. Gozava de excelente saúde, e durante vinte anos serviu aos leprosos como carpinteiro, pedreiro, professor, sacristão...; em suma, era o braço di­reito do padre.

Em 1888 (um ano antes da morte) a Providência enviou ao Pe. Da­mião outro colaborador: o enfermeiro irlandês católico James Sinnet. Já na­quela época estavam superadas as hostilidades e suspeitas contra o missioná­rio. Contava com a presença de mais dois colaboradores sacerdotes: o Pe. Wendelin Moellers e o Pe. Louis-Lambert Conrardy. Poucos meses antes de morrer, foi consolado pela notícia de que estavam para chegar Religiosas, que cuidariam do Leprosário.

Não faltou ao Pe. Damião o reconhecimento oficial das autoridades governamentais.

Em setembro de 1881 desembarcaram na ilha, em visita de inspeção, Sua Alteza a rainha-mãe e regente Liliukalani, acompanhada por sua irmã, a princesa Likelike, pelo Primeiro-Ministro J.M.Kapena e numero­sas personalidades. A população os recebeu festivamente com flores e can­tos. Mas a rainha e outros membros da comitiva caíram em prantos ao ver os leprosos, somente o Primeiro-Ministro conseguiu proferir breve discurso. Al­guns dias depois chegava ao Pe. Damião e a seu Bispo a notícia de que a rai­nha lhes conferia as insígnias de Cavaleiros Comendadores da Ordem de Ka­lakana.

5. O declínio físico

A doença havia de afetar o Pe. Damião. Ele o sabia: "Eu o tinha pre­visto desde a minha chegada ao Leprosário; eu o tinha aceito de antemão e de bom grado".

Os primeiros sintomas fizeram-se perceber em 1877 (doze anos antes da morte!): algumas manchas brancas apareceram nos braços e nas costas; o Padre as esfregou com uma esponja. No ano seguinte, porém, começou a sentir dores nos pulsos, calafrios e inchaço, dormência nas extremidades do corpo, etc. Pôs-se a caminhar manco, mas preferiu não pensar demais no as­sunto; podia tratar-se de artrose ou de elefantíase.

Em 1885 o Pe. Damião teve a certeza incontornável de estar leproso, pois o microbiólogo Prof. Arning, passando pela ilha para fazer pesquisas, examinou o missionário e lhe declarou a sua genuína situação. O padre a aceitou tranqüilamente; sentia-se ainda vigoroso e disposto para o trabalho. Uma noite, porém, ao voltar cansado das suas lutas, esquentou um pouco de água para lavar-se; então o pé esquerdo escorregou para dentro da bacia sem que o padre sentisse a mínima dor; o coração bateu forte e murmurou: "Es­tou leproso. Obrigado, meu Deus!"

Daquele momento em diante, apoderou-se dele uma estranha calma. Pôs-se a escrever cartas, das quais merecem atenção alguns extratos:

Ao Bispo: "Também eu estou leproso. Começam a notar-se os sinais nas faces e na orelha esquerda. Os cílios começam a cair. Em breve estarei totalmente desfigurado. Não tenha dúvidas sobre a índole da minha doença; estou calmo, conformado e muito sereno em meio à minha gente”.

Ao Pe. Provincial: “Não me pranteeis demais. Estou plenamente con­formado com o que me toca. Só lhe peço um favor: suplique ao Pe. Geral queira enviar a este sepulcro alguém disposto a ouvir-me em confissão e a atender às capelas do outro lado da ilha, onde não há leprosos”.

Ao Superior Geral: "Não vos surpreendais nem entristeçais demais ao saber que um dos vossos filhos espirituais foi condecorado não somente com a Real Cruz de Kalakana, mas também com a cruz um pouco mais pesada e menos nobre da lepra, com a qual Nosso Senhor quis estigmatizar-me... Está claro, nada peço de melhor do que ficar e morrer em Kalawao. Leproso ou não, deixai-me correr a minha carreira até o fim. Estou contente e feliz com tudo e não me queixo de ninguém”.

Ao irmão Pe. Panfílio escrevia aos 9/9/1887 (um ano e meio antes de morrer):

"Espero ser eternamente grato a Deus por este favor. A doença apres­sará um pouco e tornará mais direta a minha caminhada para a pátria celes­te. Com esta esperança, aceito a minha cruz pessoal e esforço-me por carre­gá-la segundo o exemplo de Simão Cireneu, atrás do nosso Divino Mestre. Ajuda-me com as tuas orações, eu te suplico, a fim de que eu encontre a for­ça para perseverar e chegar serenamente ao cume do Calvário. Embora a le­pra já tenha causado danos ao meu corpo, desfigurando-me um pouco, con­tinuo forte e robusto. As intensas dores que há tempos eu sofria nos pés,

de­sapareceram. A doença ainda não me atacou as mãos; continuo, pois, a cele­brar a S. Missa. Esta graça me consola, seja por causa de meus interesses espi­rituais, seja por causa dos meus numerosos companheiros de desgraça”.

A notícia da doença do Pe. Damião espalhou-se pelo mundo. A única nota destoante foi a resposta do Pe. Provincial Léonor: censurava Damião por haver criado problemas para a missão pela sua imprudência e lhe ordena­va que não fosse a Honolulu, para evitar que toda a missão fosse posta de quarentena. O Pe. Damião, porém, não se abalou; autodefinia-se como "o missionário mais feliz da terra".

Continuava a trabalhar. Em junho de 1886, as autoridades médicas pe­diram ao Bispo local que chamasse o Pe. Damião a Honolulu para um con­trole do seu estado de saúde. O padre se alarmou; respondeu que se ausenta­ria por duas semanas apenas. Se tivesse que ficar meses fora, pedia um subs­tituto. Embarcou, pois, fazendo a sua última viagem,... viagem de um "réu" que a todo momento pensava seria censurado e finalmente devolvido ao campo de concentração para morrer com os banidos da sociedade.

Ao contrário, foi por todos acolhido com admiração. Falou com os médicos, que o informaram a respeito do tratamento da lepra. O rei foi visi­tá-lo, a fim de lhe agradecer, cercado dos médicos e responsáveis do hospital de Honolulu. Esteve também com o Bispo local, que o abraçou e ao qual dis­se: "Vim pedir-vos uma graça, a mesma que solicitei na minha última carta: a de não ter que me separar de meus leprosos".

Voltou tranqüilo para Molokai. As suas condições de saúde se agrava­ram; mas o missionário não capitulou. Ainda construiu um aqueduto com os numerosos donativos que recebia. Deu início à reconstrução da igreja dani­ficada por uma tempestade. Em novembro de 1887 chegaram as primeiras três Irmãs para atender aos Orfanatos.

Em fevereiro de 1889 a doença recrudesceu, atacando-lhe o nariz, as faces e o pescoço. Mas o padre não se entregou ao desânimo, que facilmente acomete os leprosos terminais. Sofria e rezava. A custo conseguiram que ele trocasse a esteira em que jazia no chão, por uma cama normal. Foi, acompa­nhado, até a estrebaria; acariciou o seu cavalo: "Deveremos separar-nos, meu amigo!" Colocou a cabeça sobre o focinho do animal em silêncio e depois disse: "Pe. Conrardy, eu lhe entrego o cavalo com a sela e as rédeas; já não é um animal jovem, mas está forte e poderá prestar-lhe excelentes serviços". No dia seguinte, designou como administrador da sua obra o Pe. Wendelin e lhe entregou 2.700 dólares. Ele, que havia administrado tantos bens em fa­vor dos leprosos, podia dizer: "Morro pobre. Nada mais tenho de meu".

Aos 31/03 recebeu os sacramentos. Disse: "Deus me chama para cele­brar a Páscoa com Ele. A seguir, as chagas do rosto e das mãos começaram a fechar-se; a crosta tornou-se preta. Era o sinal do fim. Damião o sabia e o observou frente aos companheiros. No dia 03/04 experimentou ligeira me­lhora, de pouca duração. Na noite seguinte repetia: "Os meus caros lepro­sos!.. Os meus caros leprosos!.." Sabia que estavam frente à sua casa em multidão orando por ele.

Aos 14/04 tornou-se cego. Agonizava, mas continuava a rezar o rosá­rio, apertando com força as mãos do Irmão José, do Pe. Conrardy e do Irmão Tiago. Durante a noite entrou em agonia, e aos 15/04/1889 expirou suave­mente.

As citações incluídas neste artigo foram retiradas da resenha biográfica publicada pelo Pe. Alessandro Scurami S.J. sob o título Padre Damiano, Lebbroso per Cristo em La Civiltà Cattolica de 5-19/08/1989, pp. 223-237

O testemunho do Pe. Damião, no século passado, aproxima-se do do Pe. ­Maximiliano Kolbe em nosso século. Trata-se de duas pessoas que, por amor a Cristo, sacrificaram sua vida. Nem todo cristão é chamado por Deus a de­monstrar seu amor ao Senhor e aos irmãos em Leprosário ou campo de con­centração, mas todos são chamados a ter a disponibilidade para tanto, caso isto seja da vontade de Deus. Com outras palavras: todos são chamados ao amor perfeito ou à perfeição espiritual ou à santidade (ver Constituição Lumen Gentium c. V). A vivência dos dois heróis é sinal de que esse amor é possível ou de que Deus dá a graça quando chama alguém à perfeição (como realmente chama todos).

Por conseguinte, recordar a façanha do Pe. Damião não é apenas evo­car o passado, mas é também avivar a consciência de que ninguém é chama­do à mediocridade, mas todos têm, nas condições concretas e rotineiras em que se acham, a graça para viver de maneira santa e perfeita a sua existência de cada dia. A fim de ser santo, não é necessário ir para um campo de con­centração, pois aí mesmo onde a Providência coloca cada qual, concede to­dos os subsídios necessários para que viva em perfeição.

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