Toda esta maneira de ver é fantasiosa e destituída de fundamentos nas fontes da fé; as revelações particulares hão de ser consideradas com sábio discernimento. Já o Concílio de Trento admoestou os pregadores a guardarem sobriedade no tocante ao purgatório.
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Foi publicado pela Associação "Maria Porta do Céu" (Campinas) o livro de Dolindo Ruotolo intitulado "O Purgatório. A última das misericórdias". É livro inspirado por grande piedade, mas pouco adequado à realidade teológica do purgatório, visto que utiliza conceitos imaginosos, exuberantes, derivados de visões particulares sem fundamento sólido e objetivo. Daí a conveniência de uma análise serena do livro.
O Pe. Dolindo Ruotolo nasceu e trabalhou na Itália, falecendo aos 19/11/1970. Deixou numerosas obras de espiritualidade e Moral, que testemunham vasta cultura. O seu livro sobre o purgatório apresenta concepções "dantescas" pouco condizentes com a doutrina oficial da Igreja, que deseja ser sóbria sobre o assunto para não incorrer em divagações da fantasia. Examinemos os principais traços da obra.
1. LINHAS CARACTERÍSTICAS DO LIVRO
0 autor parte da concepção de que "a imaginação de Dante está
0 purgatório é imaginado como um lugar ou, melhor, um cárcere (pp. 28. 46. 59). Os "demônios nauseabundos" atormentam e insultam as almas (p. 43). Todo tipo de tortura é infligido às almas: gelo, fogo, trevas, sofrimentos muito mais dolorosos do que os mais cruéis tormentos da vida presente...
0 autor quer mostrar a possibilidade de fogo no purgatório, baseando-se em dados da Física nuclear:
"De que natureza é esse fogo e como pode atormentar a alma, que é espírito? --- É um grande problema e um grande mistério, que pode ser esclarecido pelos modernos descobrimentos atômicos... " (p. 19).
'A separação de Deus, como na divisão do núcleo do átomo, gera um fogo terrível... gradualmente extinguível... à medida que as culpas da alma são purificadas pela amorosa inclinação para Deus, que lhe produz o mesmo tormento" (p. 21).
A duração do purgatório é computada pelo tempo: "dez, vinte, cem anos" (p. 11 ; ver p.8).
A concepção que o autor propõe, é a de que a alma no purgatório tem uma dívida a pagar por pecados graves, já absolvidos, ou por pecados leves (pp. 80-82). Deus cobra essa dívida por misericórdia, ou seja, para possibilitar à alma o acesso à bem-aventurança celeste. Maria Santíssima pode obter anistia ou perdão da dívida, pois o autor diz mais de uma vez que Maria liberta almas do purgatório; assim, por exemplo:
"Lemos nas revelações dos Santos que o sábado, dia dedicado à Virgem, é dia de festa no purgatório, porque a Mãe da Misericórdia desce àquele penoso cárcere para visitar e consolar seus filhos e filhas.
Em virtude do privilégio sabatino, aqueles que usaram o escapulário da Virgem do Carmo e cumpriram as condições requeridas, são libertados do purgatório no primeiro sábado depois de sua morte.
Nas festas de Maria e, em especial, na Assunção, a Virgem SS. desce ao purgatório e liberta uma multidão de almas" (p. 59).
Os sufrágios feitos pelos cristãos na terra contribuem para amortizar essa dívida:
"Deus, pelo amor que tem às almas, aceita a oração como reparação das culpas da alma, como pagamento, ainda que parcial, das dívidas, como uma purificação que a capacita a alcançar a imensa graça da eterna felicidade" (p. 73).
Em suma, a leitura do livro é impressionante e suscita a interrogação:
2. QUE DIZER? QUE PENSAR A RESPEITO?
Devemos afirmar que as descrições de Dolindo Ruotolo, por mais bem intencionadas que sejam, não correspondem à realidade do purgatório. São poéticas, dantescas, antropomórficas, imaginando um Deus que cobra dos homens a expiação de suas faltas, como se esta fosse o pagamento de uma multa, e como a polícia cobra faltas dos réus para conceder-lhes posteriormente a liberdade. A base para tais concepções são histórias de aparições de almas do purgatório: "A constância dos testemunhos de vida além-túmulo faz positiva a ciência que a indaga e estuda" (p.17). Ao longo do livro, encontram-se numerosos casos de almas que, como se diz, apareceram e testemunharam os tormentos do purgatório.
A tendência a imaginar o lugar e o estado das almas do purgatório era tão forte no fim da Idade Média que o Concílio de Trento em 1563 recomendou sobriedade a respeito:
"Empenhem-se os Bispos para que os fiéis mantenham e creiam a sã doutrina sobre o purgatório... Sejam excluídas das pregações populares à gente simples as questões difíceis e sutis e as que não edificam nem aumentam a piedade. Igualmente não seja permitido divulgar nem discorrer sobre assuntos duvidosos ou que trazem a aparência de falso. Sejam ainda proibidas como escandalosas e prejudiciais aquelas coisas que têm em vista provocar a curiosidade ou que têm o sabor de superstição ou torpe lucro" (Enquirídio dos Símbolos e Definições de Fé, aos cuidados de Denzinger Schönmetzer, n. 1820 [983]).
Tais recomendações são plenamente válidas ainda em nossos dias. A respeito do purgatório sabemos que:
- é um estado de alma real ou realmente existente; cf. 2Mc 12,39-45; 1Cor 3,10-15;
- nada tem que ver com local, muito menos com prisão dotada de compartimentos para os diversos tipos de réus;
- não consta de fogo, nem comporta a presença de demônios. É inútil procurar nas explicações da ciência moderna o entendimento de um pretenso fogo do purgatório. O demônio não contribui para a purificação das almas, mas somente para a condenação das mesmas;
- o purgatório propicia a ocasião de repudiar os resquícios de pecado com que alguém morra, sem tormento algum de ordem física (gelo, peso deprimente, queimaduras, etc.);
- não se contabiliza em dias e anos a duração do purgatório, e sim
- as almas do purgatório podem aparecer na Terra, manifestando-se aos homens. Mas isto só acontece por extraordinária permissão de Deus, permissão que não se deve supor com facilidade. Daí a necessidade de um olhar crítico sobre as histórias de aparições; mesmo que algumas sejam tidas como genuínas, as imagens de que Deus se serviu para incutir aos homens a realidade transcendental do purgatório, não podem, sem mais, ser tomadas ao pé da letra; existe um linguajar figurado que tem sentido catequético e que há de ser reconhecido como tal;
- Deus não é um policial justiceiro, cobrador de taxas ou provocador de castigos. Embora o Pe. Dolindo queira ressalvar a bondade e o amor de Deus, não deixa de transmitir a idéia de um Deus interessado
- as ciências naturais, como a Física nuclear, nada têm a dizer a
Ulteriores noções sobre o purgatório podem ser encontradas em PR 376/1993, p. 400, como também no opúsculo "Quinze Questões de Fé" e no Curso de Novíssimos publicados pela Escola "Mater Eclesiae", Caixa postal 1362, 20001-970 Rio (RJ).
Estêvão Bettencourt O.S.B.
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