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segunda-feira, 21 de maio de 2007

Purgatório: o purgatório

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 396/1995)

por Dolindo Ruotolo

Em síntese: Dolindo Ruotolo apresenta uma concepção do purgató­rio dantesca, baseada, em grande parte, em revelações particulares ou em aparições de almas do purgatório. Daí deduz ser o purgatório um cárcere com diversos compartimentos, nos quais flagelos indizíveis atormentam as almas, estando aí presentes os demônios. O autor imagina as almas do pur­gatório presentes à celebração da S. Eucaristia, da qual recebem grande alí­vio. Maria SS. desceria ao purgatório aos sábados e nos dias de festa maria­na para libertar almas ali sofredoras.

Toda esta maneira de ver é fantasiosa e destituída de fundamentos nas fontes da fé; as revelações particulares hão de ser consideradas com sá­bio discernimento. Já o Concílio de Trento admoestou os pregadores a guardarem sobriedade no tocante ao purgatório.

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Foi publicado pela Associação "Maria Porta do Céu" (Campinas) o li­vro de Dolindo Ruotolo intitulado "O Purgatório. A última das misericór­dias". É livro inspirado por grande piedade, mas pouco adequado à realida­de teológica do purgatório, visto que utiliza conceitos imaginosos, exube­rantes, derivados de visões particulares sem fundamento sólido e objetivo. Daí a conveniência de uma análise serena do livro.

O Pe. Dolindo Ruotolo nasceu e trabalhou na Itália, falecendo aos 19/11/1970. Deixou numerosas obras de espiritualidade e Moral, que testemunham vasta cultura. O seu livro sobre o purgatório apresenta con­cepções "dantescas" pouco condizentes com a doutrina oficial da Igreja, que deseja ser sóbria sobre o assunto para não incorrer em divagações da fantasia. Examinemos os principais traços da obra.

1. LINHAS CARACTERÍSTICAS DO LIVRO

0 autor parte da concepção de que "a imaginação de Dante está fun­damentada na realidade... Supõe corpos presos por correntes, oprimidos por pesos, gemendo por inércia... As descrições do poeta, por mais penosas que sejam, dão somente uma idéia relativa do verdadeiro tormento de uma alma" (pp. 40s).

0 purgatório é imaginado como um lugar ou, melhor, um cárcere (pp. 28. 46. 59). Os "demônios nauseabundos" atormentam e insultam as almas (p. 43). Todo tipo de tortura é infligido às almas: gelo, fogo, trevas, sofrimentos muito mais dolorosos do que os mais cruéis tormentos da vida presente...

0 autor quer mostrar a possibilidade de fogo no purgatório, basean­do-se em dados da Física nuclear:

"De que natureza é esse fogo e como pode atormentar a alma, que é espírito? --- É um grande problema e um grande mistério, que pode ser es­clarecido pelos modernos descobrimentos atômicos... " (p. 19).

'A separação de Deus, como na divisão do núcleo do átomo, gera um fogo terrível... gradualmente extinguível... à medida que as culpas da alma são purificadas pela amorosa inclinação para Deus, que lhe produz o mes­mo tormento" (p. 21).

A duração do purgatório é computada pelo tempo: "dez, vinte, cem anos" (p. 11 ; ver p.8).

A concepção que o autor propõe, é a de que a alma no purgatório tem uma dívida a pagar por pecados graves, já absolvidos, ou por pecados leves (pp. 80-82). Deus cobra essa dívida por misericórdia, ou seja, para possibilitar à alma o acesso à bem-aventurança celeste. Maria Santíssima pode obter anistia ou perdão da dívida, pois o autor diz mais de uma vez que Maria liberta almas do purgatório; assim, por exemplo:

"Lemos nas revelações dos Santos que o sábado, dia dedicado à Vir­gem, é dia de festa no purgatório, porque a Mãe da Misericórdia desce àquele penoso cárcere para visitar e consolar seus filhos e filhas.

Em virtude do privilégio sabatino, aqueles que usaram o escapulário da Virgem do Carmo e cumpriram as condições requeridas, são libertados do purgatório no primeiro sábado depois de sua morte.

Nas festas de Maria e, em especial, na Assunção, a Virgem SS. desce ao purgatório e liberta uma multidão de almas" (p. 59).

Os sufrágios feitos pelos cristãos na terra contribuem para amortizar essa dívida:

"Deus, pelo amor que tem às almas, aceita a oração como reparação das culpas da alma, como pagamento, ainda que parcial, das dívidas, como uma purificação que a capacita a alcançar a imensa graça da eterna felicidade" (p. 73).

Em suma, a leitura do livro é impressionante e suscita a interrogação:

2. QUE DIZER? QUE PENSAR A RESPEITO?

Devemos afirmar que as descrições de Dolindo Ruotolo, por mais bem intencionadas que sejam, não correspondem à realidade do purgató­rio. São poéticas, dantescas, antropomórficas, imaginando um Deus que cobra dos homens a expiação de suas faltas, como se esta fosse o pagamen­to de uma multa, e como a polícia cobra faltas dos réus para conceder-lhes posteriormente a liberdade. A base para tais concepções são histórias de aparições de almas do purgatório: "A constância dos testemunhos de vida além-túmulo faz positiva a ciência que a indaga e estuda" (p.17). Ao longo do livro, encontram-se numerosos casos de almas que, como se diz, apare­ceram e testemunharam os tormentos do purgatório.

A tendência a imaginar o lugar e o estado das almas do purgatório era tão forte no fim da Idade Média que o Concílio de Trento em 1563 recomendou sobriedade a respeito:

"Empenhem-se os Bispos para que os fiéis mantenham e creiam a sã doutrina sobre o purgatório... Sejam excluídas das pregações populares à gente simples as questões difíceis e sutis e as que não edificam nem au­mentam a piedade. Igualmente não seja permitido divulgar nem discorrer sobre assuntos duvidosos ou que trazem a aparência de falso. Sejam ainda proibidas como escandalosas e prejudiciais aquelas coisas que têm em vista provocar a curiosidade ou que têm o sabor de superstição ou torpe lucro" (Enquirídio dos Símbolos e Definições de Fé, aos cuidados de Denzinger­ Schönmetzer, n. 1820 [983]).

Tais recomendações são plenamente válidas ainda em nossos dias. A respeito do purgatório sabemos que:

- é um estado de alma real ou realmente existente; cf. 2Mc 12,39-45; 1Cor 3,10-15;

- nada tem que ver com local, muito menos com prisão dotada de compartimentos para os diversos tipos de réus;

- não consta de fogo, nem comporta a presença de demônios. É inú­til procurar nas explicações da ciência moderna o entendimento de um pretenso fogo do purgatório. O demônio não contribui para a purificação das almas, mas somente para a condenação das mesmas;

- o purgatório propicia a ocasião de repudiar os resquícios de pecado com que alguém morra, sem tormento algum de ordem física (gelo, peso deprimente, queimaduras, etc.);

- não se contabiliza em dias e anos a duração do purgatório, e sim em evo. O evo é a duração de um ser que teve começo, mas não terá fim (como é a alma humana), ao passo que o tempo é a duração de um ser que tem começo e fim (este mundo, por exemplo) e eternidade é a duração de quem não teve começo nem terá fim (só Deus). O evo consta de uma su­cessão de atos psicológicos de conhecimento e amor (ou des-amor);

- as almas do purgatório podem aparecer na Terra, manifestando-se aos homens. Mas isto só acontece por extraordinária permissão de Deus, permissão que não se deve supor com facilidade. Daí a necessidade de um olhar crítico sobre as histórias de aparições; mesmo que algumas sejam ti­das como genuínas, as imagens de que Deus se serviu para incutir aos ho­mens a realidade transcendental do purgatório, não podem, sem mais, ser tomadas ao pé da letra; existe um linguajar figurado que tem sentido cate­quético e que há de ser reconhecido como tal;

- Deus não é um policial justiceiro, cobrador de taxas ou provocador de castigos. Embora o Pe. Dolindo queira ressalvar a bondade e o amor de Deus, não deixa de transmitir a idéia de um Deus interessado em punições. O purgatório não decorre de um decreto de Deus punitivo (que poderia "fazer por menos"), mas é conseqüência da vocação da criatura a ver Deus face-a-face; esta visão facial requer absoluta pureza de coração, pureza esta que é uma exigência da ordem das coisas, e não uma imposição jurídica concebida arbitrariamente;

- as ciências naturais, como a Física nuclear, nada têm a dizer a res­peito do purgatório, pois este existe no plano espiritual e na linha da mo­ralidade, não no da corporeidade.

Ulteriores noções sobre o purgatório podem ser encontradas em PR 376/1993, p. 400, como também no opúsculo "Quinze Questões de Fé" e no Curso de Novíssimos publicados pela Escola "Mater Eclesiae", Caixa postal 1362, 20001-970 Rio (RJ).

Estêvão Bettencourt O.S.B.

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