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terça-feira, 29 de maio de 2007

Personalidades: você conhece Beethoven?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 194/1976)


Em síntese: Ludwig van Beethoven (1770-1827) é um testemunho de que alguém pode ser grande no plano da personalidade apesar das traições e ciladas da saúde e da natureza. Surdo desde os trinta anos de idade, Beethoven produziu as suas maiores obras musicais durante os vinte e cinco e mais anos de surdez. Atingiu o auge de sua carreira em 1814. Morreu como autêntico cristão, reconfortado conscientemente pelos sacramentos da Igreja, após ter levado uma vida de luta contra a moléstia, a pobreza material e a agressividade do seu próprio temperamento.

Nas páginas que se seguem, além de breve esboço biográfico de Beethoven, são apresentados alguns textos do compositor que demonstram algo da grandeza de sua alma.

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Comentários: A nossa revista PR tem abordado temas de psicologia e, de modo especial, a conciliação de neurose e santidade; cf. PR 188/1975, pp. 344-355. Considerou também a grafologia; esta evidencia que os santos também foram «de argila»; sujeitos a más inclinações e paixões, que o amor de Deus neles conseguiu sublimar e superar; cf. PR 188/1975, pp. 356-371.

Propomos agora a figura de Ludwig van Beethoven, um dos maiores gênios da música, que se tomou grande apesar do terrível mal de surdez que paradoxalmente o acometeu. Aliás, não só a surdez atormentou Beethoven; a falta de recursos materiais o ameaçou freqüentemente. Todavia esse gigante da arte soube superar o desânimo que não raro o tentou e, com forte espírito cristão, desenvolveu o seu talento musical. A IX Sinfonia e a «Missa solemnis» de Beethoven dão testemunho dessa vitória do espírito do compositor sobre as intempéries da matéria.

Abaixo apresentaremos dados biográficos de Ludwig van Beethoven, seguidos de alguns textos mais característicos desse mestre.

1. Esboço biográfico

Ludwig van Beethoven nasceu aos 16 de dezembro de 1770 em Bonn (Alemanha) num miserável sótão de casa pobre. Era de origem flamenga. O pai exercia a profissão de tenor, mas sofria do vício da embriaguez. A mãe era filha de cozinheiro; casara-se em primeiras núpcias com um camareiro, de quem enviuvara.

Assim Ludwig teve infância muito severa. O pai quis fazer dele um astro da música, de modo que, aos quatro anos, obrigava o filho a duros e prolongados exercícios de piano e violino, constrangendo-o com tapas e bofetões. Ludwig, assim educado, quase rejeitou para sempre a arte que tinha de aprender.

Em novembro de 1792, foi Beethoven para Viena, a metrópole musical da Áustria, onde estudou com grandes mestres (Mozart, Haydn e Aibrechtsberger). Obteve notáveis sucessos musicais naquela cidade, atraindo para si a admiração de amigos aristocratas; estes resolveram oferecer-lhe valiosa ajuda de custo, que permitiu ao artista permanecer na Áustria e dedicar-se inteiramente à música.

Beethoven cedo foi desiludido do amor, de modo que não chegou a constituir o lar que ele tanto desejava. Por conseguinte, viveu a sós a vida inteira — o que deve ter concorrido para torná-lo melancólico e fazê-lo sentir especialmente as inclemências da vida.

Entre 1796 e 1800 começou a ensurdecer; zoavam-lhe os ouvidos dia e noite. A audição enfraquecia-se progressivamente. Por muitos anos a ninguém o disse, nem mesmo aos amigos mais caros. Fugia do mundo para que não fosse notada a sua enfermidade. Mas em 1801 já não a podia esconder.

Desesperado, Beethoven chegou a redigir o seu testamento; estava disposto a suicidar-se. Tal foi a primeira reação à moléstia que se avultava. Todavia conseguiu superar a crise, pois tinha formação católica. Em conseqüência, prosseguiu a sua carreira, que chegou ao auge em 1814. Depois disto, a surdez foi piorando, de modo que ficou quase totalmente isolado do mundo.

Beethoven soube fazer da surdez a porta para a interiorização; assim é que conseguiu produzir até o fim da vida obras grandiosas.

Nos últimos meses, ou seja, a partir de janeiro de 1827, tinha à sua mesa de cabeceira a «Imitação de Cristo». Sofria duramente em seu leito de enfermo; mas, apesar disto, poucos dias antes de morrer ainda pensava na X Sinfonia, que ele desejava compor. Aos 18/III/1827, vendo-o ainda muito esperançoso a ocupar-se com suas obras musicais (na medida do possível), o Dr. Wawruch escreveu-lhe um bilhete em que lhe anunciava a proximidade da morte. Os efeitos dessas linhas são assim descritos pelo médico:

"Beethoven leu-as com singular domínio de si, com lentidão e reflexão; seu semblante transfigurou-se. Ofereceu-me a mão com cordialidade e seriedade, pedindo-me: 'Mande chamar o sacerdote'. A seguir, calou-se e, pensativo, acenou-me com a cabeça e disse: 'Eu o reverei em breve'... Recaiu então no silêncio e na meditação".

O sacerdote administrou ao enfermo os últimos sacramentos, que ele recebeu com fervor; terminado o rito, exclamou: «Obrigado, padre; o Sr. me trouxe a consolação... A agonia foi angustiada e dolorosa, terminando entre cinco e seis horas da tarde de 26 de março de 1827, quando uma tempestade de neve se abatia sobre a cidade de Viena. Enorme afluência da população assistiu aos funerais.

Romain Rolland saudou Beethoven como «a mais resplandecente vitória jamais obtida pelo espírito: um desgraçado, um pobre solitário enfermo, dor feita homem, a quem o mundo recusou a alegria, criou ele próprio a alegria para dá-la ao mundo. Ele a forjou com a sua miséria, como disse numa frase orgulhosa em que resumiu a sua vida, frase que é a divisa de toda alma heróica: 'Durch Leiden Freude' (Pelo Sofrimento à alegria)».

Ludwig van Beethoven é digno de atenção não somente pela genial obra musical que deixou, mas também pelo tipo de sua personalidade: privado de afeto e carinho na infância, teve sempre um temperamento forte e agressivo; este era aguçado pelas inclemências ocorrentes em sua carreira, como a surdez e a penúria de recursos. Não obstante, foi um homem de fé, que deixou testemunhos de sua grandeza de alma e de sua tenacidade na luta em prol do ideal que ele acalentava.

Vamos, pois, abaixo reproduzir algumas passagens seletas dos escritos de Ludwig van Beethoven, aptas a mostrar a fortaleza de espírito desse grande vulto da humanidade.

2. Antologia

1. Diz-se que Beethoven tinha duas paixões: a arte e a virtude (= honestidade).

Eis o retrato do artista, que ele deixou em carta a uma pianista:

"O verdadeiro artista não tem orgulho. Ele sabe, infelizmente, que a arte não conhece limites; sente obscuramente quanto está afastado da meta e, enquanto outros talvez o admirem, ele deplora não ter ainda chegado aonde um gênio melhor brilhe como um sol longínquo" (texto transcrito de "La vie de Beethoven" de Edouard Herriot, p. 262).

2. Apesar da sua têmpera violenta, Beethoven soube ser solícito para com os outros.

Em carta a Franz Gerhard Wegeler datada de 29 de junho de 1901, escrevia:

"Se o conforto não aumentou um pouco em minha pátria, deve minha arte consagrar-se a melhorar a sorte dos pobres...

Minhas composições se vendem bastante; digo até que, de tão numerosas, nem posso satisfazer às encomendas recebidas. Para cada obra, tenho seis, sete editores e mais ainda, se me quero dar trabalho. Não se discute comigo: fixo o preço e pagam-me.

Vê como é encantador! Por exemplo, encontro um amigo em necessidade, e minha bolsa não me permite auxiliá-lo. Nada mais tenho que fazer senão sentar-me à minha mesa de trabalho para em pouco tempo livrá-lo do apuro" (transcrito do livro "Beethoven" de Romain Rolland, trad. brasileira de José Lannes, p. 126).

Exercia certa tutela sobre seu sobrinho Carlos, cuja mãe indigna não lhe merecia confiança. Por isto escreveu:

"Meu Deus, meu amparo, minha defesa, meu único refúgio! Tu lês nas profundidades da minha alma e conheces as dores que experimento quando é preciso que eu faça sofrer os que me querem disputar meu Carlos, meu tesouro. Ouve-me, Ser que não sei como nomear! Atende à súplica da mais infeliz das tuas criaturas. Socorre-me, ó Deus! Tu me vês abandonado pela humanidade inteira por não querer pactuar com a injustiça. Atende à súplica que te faço, ao menos para o futuro, de viver com o meu Carlos! Sorte cruel, implacável destino! Não, não, minha desgraça jamais findará" (transcrito de "Beethoven" de Romain Rolland, p. 67s).

3. Na doença, Beethoven expandiu o seu íntimo diante de Wegeler aos 29/VI/1801:

"Meu caro e bom Wegeler, quão grato te sou pela tua lembrança! Bem pouco a mereço e bem pouco faço por merecê-la...

Desgraçadamente, um demônio ciumento, minha má saúde, veio-se interpor inopinadamente. Há já três anos que meu ouvido se torna dia por dia mais fraco. A causa disso deve ter sido uma afecção do ventre, de que eu já sofria outrora, conforme sabes, mas que piorou muito nestes últimos tempos: sou continuamente afligido pela diarréia, à qual se segue extraordinária fraqueza. Frank quis fortificar-me com reconstituintes e tratar-me o ouvido com óleo de amêndoas. Mas prosit! Não adiantou nada: o ouvido está sempre pior e o ventre continua no mesmo estado. Isso vem durando desde o último outono, e muitas vezes senti-me à beira do desespero. Um asno de um médico aconselhou-me banhos frios; outro, mais avisado, banhos tépidos do Danúbio: este tratamento operou maravilhas; o ventre melhorou, mas meu ouvido ficou na mesma ou talvez tenha piorado ainda mais. Neste inverno, meu estado era deplorável: sofria cólicas medonhas e tive uma recaída completa. Assim andei até o mês passado, quando fui ver Vering, pois pensava que o meu mal reclamava sobretudo um cirurgião e, de resto, sempre tive confiança nele. Ele conseguiu cortar quase completamente a diarréia violenta; prescreveu-me banhos tépidos do Danúbio, nos quais me fazia derramar um frasquinho de licores tonificantes; não me deu remédio algum, salvo, há cerca de quatro dias, umas pílulas para o estômago e uma espécie de chá para as orelhas. Acho-me melhor e mais forte conquanto tenha nos ouvidos, noite e dia, uma ronqueira incessante. Posso dizer que a vida que levo, é uma vida miserável. Já faz dois anos que evito toda sociedade, pois não posso dizer às pessoas: 'Sou surdo'. Se tivesse qualquer outro ofício, isso seria ainda possível, mas, no meu ofício, é uma situação terrível. Que diriam disso os meus inimigos, cujo número não é pequeno ? !

Para te dar uma idéia dessa estranha surdez, digo-te que, no teatro, tenho de sentar-me bem perto da orquestra para compreender os atores. Não ouço os sons agudos dos instrumentos e das vozes, se me coloco, um pouco que seja, longe deles. É surpreendente que haja pessoas que não o tenham percebido ainda na conversação. Como sou muito distraído, atribuem tudo à minha distração. Quando falam baixinho, mal consigo ouvir. Sim, ouço bem os sons, mas não as palavras; por outro lado, quando gritam, é-me intolerável. O que irá acontecer, só o Céu o sabe. Vering disse que isso melhorará com certeza, se não sarar de vez. - Muitas vezes eu maldisse minha existência e o Criador. Plutarco me conduziu à resignação. Quero, se isto todavia é possível, arrostar o meu destino, mas há momentos na vida em que sou a mais miserável das criaturas de Deus.

- Suplico-te que nada digas do meu estado a ninguém, nem mesmo a Lorchen; é confidencialmente que te conto tudo isto. Gostaria de que escrevesses a tal propósito a Vering. Se meu estado não se alterar, virei, na próxima primavera, para junto de ti; alugar-me-ás, nalguma bela região, uma casa de campo: quero tornar-me campônio durante seis meses. Talvez isso me faça bem. Resignação! Que triste refúgio! E, no entanto, é o único que me resta! - Perdoa-me por trazer mais esta preocupação de amigo para os teus já muitos aborrecimentos".

Beethoven soube reagir ao desânimo, manifestando prodigiosa energia (passou mais de vinte e cinco anos na surdez!). Eis o que mais tarde escrevia ainda a Wegeler:

"Mais do que nunca, minha força física aumenta com minha força intelectual. Minha mocidade como que principia. Cada dia me aproxima do alvo que antevejo, sem o poder definir. Oh ! Se me livrasse desse mal, eu abraçaria o mundo. Nenhum repouso! Não conheço outro senão o sono. E sou bastante infeliz por lhe dispensar mais tempo do que dantes. Ficasse eu livre unicamente da metade do meu mal, e então... Não; eu não o suportarei. Quero agarrar o destino pelas goelas. Ele não conseguirá dobrar-me inteiramente. Oh! É tão belo viver mil vezes a vida!" (transcrito de "Beethoven" de R. Rolland p. 38).

Estes dizeres dão testemunho de magnanimidade rara. Beethoven se impôs à posteridade não somente por seu talento musical, mas também pelo seu perfil de homem interior, capaz de lutar denodadamente em prol de um ideal. Se a Providência não o quis isentar de conhecer a fraqueza humana, ele soube vencer as misérias do corpo e da alma com o auxílio da graça de Deus. A leitura das palavras de Beethoven sugere algumas verdades básicas para a formação de toda personalidade, principalmente de um cristão:

1) os grandes homens não foram privilegiados por natureza. Ao contrário, fizeram-se com a graça de Deus, apesar das traições e armadilhas que a sua natureza mesma lhes preparou;

2) os males físicos não impedem a grandeza de alma de quem os suporta. Ao contrário, são muitas vezes a ocasião para que essa pessoa cresça mais rapidamente em sua estatura interior e definitiva.

Que o exemplo de Ludwig van Beethoven a muitos aproveite!

À guisa de bibliografia:

Romain Rolland, "Vida de Beethoven". São Paulo.

de Rezende Martins, "As nove sinfonias de Beethoven". São Paulo.

Rodolpho Josetti, "Beethoven e suas nove sinfonias". Rio de Janeiro 1945.

Roberto Menna Barreto, "Beethoven e sua sexta Sinfonia". Rio de Janeiro 1954.

Edouard Herriot, "La vie de Beethoven". Paris 1928.

Vincent d'lndy, "Beethoven". Paris 1911.

Richard Specht, "Ritratto di Beethoven". Milano 1947.

Fritz Zobeley, "Ludwig van Beethoven". Reinbek bei Hamburg 1965.

Alfred Amenda, “Appassoinata. Ein Lebensroman Beethovens”. Berlin 1962.

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