Em síntese: Há quem diga que o homem não é mais do que um macaco aperfeiçoado; nada de específico e próprio haveria no homem. Eis, porém, que a observação atenta das manifestações do ser humano e do macaco dá a ver que no homem existe a faculdade de conceber o universo
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No artigo anterior deste fascículo, fez-se referência as páginas da revista VEJA (28/9/1994), que insinuavam ser o homem tão simplesmente o descendente do macaco. Aliás, em nossos dias registra-se forte tendência a despojar o ser humano de todos os predicados que sempre foram tidos como características exclusivamente suas. Charles Darwin (+ 1882) insinuava que o ser humano não vem a ser senão um macaco aperfeiçoado; Sigmund Freud (+ 1939) gloriava-se de haver reduzido o homem a joguete de instintos cegos, ao passo que a filosofia estruturalista decompõe o homem em elementos estruturais sem conteúdo específico; proclama assim a morte do homem, como passo conseqüente à "morte de Deus".
Já foi dito à p.55 deste fascículo que, ao se tratar de tal assunto, urge distinguir entre corpo e alma do homem (este não é um bloco monolítico); o corpo, sendo matéria, pode ter vindo de matéria viva preexistente; ao contrário, a alma, sendo espiritual, é criada por Deus para cada ser humano no momento da fecundação do óvulo pelo espermatozóide ou, se nos referimos aos primeiros pais,... no momento em que o organismo do primata evoluído devia tornar-se sede da vida humana.
Nas páginas subseqüentes, continuaremos a estudar valores-específicos do homem, que o distinguem dos animais infra-humanos por serem expressões da alma espiritual (que os animais não possuem). Assinalaremos cinco traços, que complementarão quanto foi dito no artigo precedente.
INTELIGÊNCIA DO HOMEM E INSTINTO DO ANIMAL
1.1 Domesticação do animal e educação da criança
Há certos animais domesticados que parecem tão espertos ou "inteligentes" quanto um ser humano. Tal é o caso, por exemplo, dos macaquinhos de circo, que executam exercícios em trapézio, montam a cavalo, andam de bicicleta, tocam acordeão, fumam cigarro, comem à mesa com fidalguia, etc. Dir-se-ia que entre esses animais e um homem educado há mais afinidade do que entre um índio das selvas e um cidadão do séc. XX.
Observando de mais perto, porém, o estudioso verifica que, aquilo que o macaco executa de estupendo, ele o faz unicamente para imitar o comportamento do homem, sem perceber o significado intrínseco de seus atos (não foi em vão que os antigos deram ao macaco o nome de "simus", isto é, simulador ou imitador). Em outros termos: a conduta do macaco se deve a mera associação de imagens e impressões; ele aprende cegamente (isto é, sem saber por que) a realizar tal gesto ou a efetuar tais e tais ações desde que seja impressionado por tal estímulo.[1] Com efeito, o animal que aprendeu alguma "arte", nunca evoluiu nem se aperfeiçoa na execução da mesma; jamais chega ao limite máximo de suas possibilidades; ele apenas tolera a arte que lhe ensinaram, sem perceber a finalidade da mesma. Desde que se veja emancipado do seu domesticador, liberta-se dos costumes que aprendeu, ou emprega despropositadamente os instrumentos que ele antes parecia manejar com sabedoria.
Assim um macaco pode aprender a comer com a colher; desde, porém, que o homem o deixe entregue a si mesmo, tal animal usará da colher para brincar ou para qualquer outra atividade, não, porém, para comer. O macaco que toca acordeão, assim que o pode, serve-se deste instrumento como se fora um trampolim, um projétil ou um bastão para atingir determinada fruta. O símio que veste trajes humanos, não consegue deixar de comer seus próprios excrementos, apesar dos muitos castigos que lhe são infligidos.
Estes dados mais uma vez mostram que o irracional não possui a capacidade de apreender proporções ou de perceber as relações vigentes entre meio e fim ou entre causa e efeito.
A criança, ao contrário, após aprender a manejar determinado instrumento, tende a perscrutar as leis do seu funcionamento, chegando a desmontar tal objeto, a fim de se tornar consciente das causas dos respectivos efeitos. Se possível, a criatura humana, tendo percebido as relações que existem entre as diversas partes do instrumento, ainda procura aperfeiçoar a este, tornando-o mais adaptado à sua finalidade.
Em outros termos dir-se-á: o irracional vive exclusivamente no presente; utiliza, sim, conhecimentos adquiridos no passado, mas apenas na medida em que beneficiam a situação presente; não possui a capacidade de se emancipar das circunstâncias atuais para conceber de algum modo também o futuro; é isto que comunica à conduta do animal a índole prática e realista que por vezes suscita a nossa admiração. - O homem, ao invés, tende a abarcar os acontecimentos passados e presentes numa só visão de conjunto, na qual o futuro já é previsto e contemplado; ao desenrolar sucessivo dos acontecimentos o homem costuma dar uma interpretação, procurando os fios condutores ou as linhas-mestras da história; e é por essa interpretação ou por essa "filosofia" que a pessoa humana costuma, antes do mais, guiar a sua conduta; a situação concreta de determinado momento não toma então senão valor secundário.
Ainda duas experiências vêm ao caso para mostrar a diferença entre inteligência e instinto. Aquela apreende o invisível; este, não.
O prof. G. Révesz apresentou a macacos, crianças e homens oito caixas fechadas, das quais uma continha chocolate. Na primeira experiência colocou o chocolate na primeira caixa; na segunda experiência, deslocou-o para a segunda caixa; na terceira experiência... para a terceira caixa; assim, de cada vez, na caixa sucessiva. Ora homens e crianças dos seis, sete anos em diante descobriram sem demora a lei que regia essas experiências: importava saber que o alimento se encontrava na caixa n + 1, sendo n o número da experiência anterior. Ao contrário, os macacos, submetidos ao mesmo teste, não descobriram a lei abstrata geral (n + 1), mas de cada vez se precipitaram sobre a caixa que na experiência anterior fora "premiada". Isto quer dizer que o animal infra-humano é incapaz de superar o concreto, material, para perceber o abstrato, universal. Donde se conclui que lhe falta a capacidade de conhecer espiritual, imaterial, ou a inteligência.
A análoga conclusão chegou o Prof. Hamilton: fez uma mesma experiência com dez indivíduos humanos (um adulto normal, um adulto deficiente, seis crianças normais de dez a cinco anos, uma criança de 26 meses, uma criança anormal de onze anos) e 27 animais (cinco macacos, dezesseis cães, cinco gatos e um cavalo). A experiência consistia em introduzir os indivíduos num recinto fechado
1.3. Desenvolvimento do macaco e da criança
0 fato de que a conduta da criancinha não se diferencia da do macaco nos seus primeiros meses, não quer dizer que o bebê não seja verdadeiro ser humano desde os seus primeiros dias, mesmo desde a concepção no seio materno. Apenas as suas faculdades intelectivas permanecem latentes em grau maior ou menor, enquanto não estão plenamente desenvolvidos o cérebro e, em geral, os sentidos, que fornecem à inteligência os elementos sobre os quais ela raciocina. A medida que o desenvolvimento se dá, a criança manifesta a presença e as qualidades do seu intelecto.
Os estudiosos têm realizado experiências muito significativas neste setor. Assim, por exemplo, o casal Kellog permitiu que seu filhinho, Donald, dos dez aos dezenove meses de idade, fosse educado ao lado de uma criazinha de macaco chamada "Gua", a qual, no início da experiência, contava sete meses de idade. Os observadores submeteram o filhote de macaco e a criança exatamente às mesmas provas (necessidade de fazer um desvio ou um circuito para alcançar o seu alimento, subir sobre um tamborete, manejar um objeto, obedecer a uma ordem, etc.). Após minucioso confronto, verificaram que durante alguns meses Donald e Gua apresentavam semelhantes reações aos estímulos extrínsecos; respondiam aos mesmos testes com sucesso variável, mas geralmente obtendo empate final; apenas o macaco se mostrava mais hábil e ligeiro nos seus movimentos físicos, enquanto a criança manifestava mais capacidade de prestar atenção. Após determinado prazo, porém, observaram que a criança, por seus progressos, se distanciava do concorrente, de sorte a tornar vã qualquer ulterior comparação. A criança começou a falar propriamente; transpôs o limiar da linguagem, que a caracterizaria como ser humano.
Experiência semelhante à do casal Kellog foi empreendida pela cientista russa Sra. Kohts, que confrontou o comportamento de seu filho com o de seu chimpanzé a partir de um ano e meio até os quatro anos de idade. Observou que o chimpanzé aprendia, sim, certas façanhas, mas de modo mecânico e rotineiro, sem manifestar tendências a se aperfeiçoar; ao contrário, o menino demonstrava a propensão a realizar trabalho cada vez mais produtivo, ou seja, a superar continuamente os dados que aprendia. Isto é, mais uma vez, indício de que a criança estava consciente do significado ou das proporções das artes que assimilava, ao passo que o macaco não percebia tais proporções.
Assim a faculdade de falar constitui o sinal de demarcação colocado entre o reino dos irracionais e o do homem; essa demarcação é intransponível, mesmo ao mais perfeito dos viventes meramente sensitivos.
O chimpanzé e o gorila não podem falar nem aprender a falar linguagem sonora desenvolvida, como demonstram todas as tentativas até agora realizadas. Em conseqüência, os experimentadores têm procurado ensinar aos chimpanzés e aos gorilas alguns sinais, que se assemelham aos da linguagem dos surdo-mudos. A aprendizagem surtiu efeitos, como se depreende do relatório publicado por Francine Patterson com o título Conversations with a Gorilla
Notemos também que os chimpanzés podem transmitir uns aos outros certos artifícios: assim na ilha japonesa Koshima, que não é habitada por seres humanos, uma fêmea de macaco descobriu certa vez que, para limpar batatas, não é necessário esfregá-las entre as mãos, mas basta mergulhá-las na água e lavá-las. Quatro anos mais tarde, a metade dos indivíduos do grupo a que pertencia tal gêmea, praticava o rito de lavar as batatas; no decorrer de dez anos, 71% dos membros do grupo haviam adotado tal costume por via de imitação. Deve-se, porém, observar que esta propagação de artifício não se deve ao desejo de educar, ensinar ou de comunicar aos semelhantes alguma novidade; ela se assemelha muito mais à difusão por contágio ou por imitação.
3. O SENSO ÉTICO
Já Charles Darwin em 1871 procurava enumerar os caracteres que distinguem o ser humano de maneira típica, permitindo assim estabelecer a linha divisória entre o homem e o animal inferior. Dizia então:
“Sem restrição, subscrevo a tese dos especialistas que afirmam que, dentre todas as diferenças existentes entre o homem e o animal inferior, o senso moral ou a consciência é a mais importante" (Die Abstammung des Menschen, p. 144).
Observações efetuadas em pessoas surdas e cegas de nascença revelaram que ao homem a consciência é inata, ou seja, anterior a qualquer experiência.
Somente o homem tem a noção do bem e do mal. Somente o homem pode tornar-se réu ou culpado. Em conseqüência, só o homem tem responsabilidade.
A responsabilidade, por sua vez, supõe liberdade de opção, faculdade esta que falta aos animais inferiores.
Não há dúvida, o animal tem uma bondade espontânea, a qual se manifesta principalmente no instinto materno; todavia não se pode dizer que essa bondade resulte de uma opção consciente. É inconsciente e indeliberada; o animal reage espontaneamente a certos estímulos como é o caso da prole ou dos filhotes. O ser humano também reage espontaneamente a tais estímulos; haja vista como as crianças gostam de brincar com bonecas, cachorrinhos, coelhinhos, etc. Todavia, à diferença dos animais, o homem é capaz de proceder contra os seus instintos; assim fazendo, ele se perverte ou... segue um ideal e cultiva valores que ele julga superiores à satisfação proporcionada pelos instintos. Só o homem pode assumir certas atitudes aparentemente paradoxais ou antitéticas aos instintos: a paciência, a misericórdia, o amor aos inimigos, a compaixão e a benevolência com os criminosos e perversos; tais virtudes estão fora do alcance dos animais, mas elas não são sobre-humanas; são, ao contrário, profunda e tipicamente humanas.
Mais: o animal não é capaz de assumir deveres ou compromissos; não se lhe podem impor normas, mesmo que se lhe imponha determinada aprendizagem. Por isto também a educação é fenômeno especificamente humano; sem educação não só o psiquismo do homem é prejudicado, mas também o próprio desenvolvimento biológico e corporal do homem sofre detrimento.
Tais ponderações evidenciam como o senso moral caracteriza o ser humano, distinguindo-o especificamente dos animais, e colocando o homem em posição singular no reino dos viventes.
Ainda ao estudar as diferenças entre o ser humano e os animais inferiores, Darwin apontava a consciência que o homem tem de si mesmo: esta é a chamada consciência psicológica, à diferença da consciência moral[2].
Quais as conseqüências deste fato?
1) Por sua consciência psicológica, o homem é capaz de refletir sobre si mesmo, sobre o seu presente, o seu passado e o futuro. Essa capacidade de refletir é característica do ser humano, pois só este é sujeito de recordação propriamente dita; com efeito, um animal pode reconhecer o seu
2) É precisamente a capacidade de recordar realidades ausentes que permite a formação de conceitos universais e de uma linguagem tal como o homem possui: linguagem que exprime noções universais, como homem, criança, belo, justo, injusto..., recorrendo aos mais diversos sons (francês, russo, chinês, bantu, tupi, etc.).
3) Notemos outrossim: um ser para o qual só existe o presente imediato, não pode cultivar a história, como o homem a cultiva...
4) ... Nem pode ter responsabilidades, porque não pode prever as conseqüências de determinado comportamento seu...
5) ... Nem pode ter Religião como o homem tem, visto que a Religião põe o homem em contato com a transcendência ou com os valores históricos e trans-históricos. A Religião vem a ser, pois, um sinal típico e inconfundível do ser humano.
Detenhamos-nos um pouco mais sobre esta afirmação.
5. O SENSO RELIGIOSO
O senso religioso, pondo o homem em contato com valores transcendentais,
Ora entre os homens a atenção aos mortos é uma característica das mais antigas.
Os fósseis do homo erectus (devidamente identificado) encontrados na Europa e na Ásia atestam esta verdade. O homem de Neandertal, por exemplo, sepultava seus mortos na posição de quem está dormindo, com a cabeça pousada sobre uma pedra; sobre o cadáver lançava pó de ocre, que tem a cor da vida (pardo, amarelo, vermelho, castanho...); junto ao defunto colocava alimentos, armas, instrumentos diversos e figuras ornamentais, que lhe serviriam na viagem para o além... O homem de Cromagnon também adotava tais costumes. Estes atestam a fé numa vida póstuma ou numa realidade transcendente.
Chamam outrossim a atenção dos estudiosos as pinturas encontradas nas cavernas da pré-história: representam motivos da caça ou da magia. Ora todo cultivo da arte está originariamente associado à Religião: esta sempre inspirou os pintores, os poetas, os músicos...
Ora a Religião, voltada para os valores transcendentais, é certamente uma característica do espírito; ela é tão antiga quanto o homem, pois se manifesta desde a pré-história até hoje, e nunca foi cultivada pelo animal irracional. A existência, no homem, de sentimento religioso e de expressões correspondentes abre um hiato entre o ser humano e o macaco, hiato este que não foi superado ou transposto até hoje. Nem há possibilidade de superação, visto que a Religião supõe, no ser humano, a realidade do espírito ou da alma espiritual, ao passo que o princípio vital dos irracionais é meramente material. É a alma espiritual ou não material que faculta ao homem ter expressões de si que transcendem os dados concretos, materiais, a que está confinado o ser irracional. Pela religião, o homem se eleva aos valores invisíveis e ao Infinito, procurando assim a resposta às suas aspirações mais espontâneas que são aspirações à Verdade, ao Amor, à justiça, à Vida, à Felicidade sem limites. É tão somente através do caminho da Religião e da Mística que o homem encontra os verdadeiros bens para os quais foi feito e dos quais o animal irracional não tem a mais pálida noção.
. A Religião é inspirada pela necessidade que o homem experimenta, de dar sentido à sua vida ou de justificar, perante a sua consciência, a sua luta, o seu trabalho, o seu sofrimento e a sua morte. Na verdade, se não existem valores transcendentais que respondem às aspirações congênitas de todo homem, a presente realidade é vazia e frustrativa; o homem se torna um absurdo, perdido em meio às coisas passageiras que o cercam. E o homem-absurdo seria uma exceção no conjunto do universo, visto que este reflete ordem e harmonia - expressões de uma Inteligência Suprema.
Em nossos dias, a Religião continua sendo um fator típico da inteligência humana. Mesmo os que se dizem ateus, cultivam o Absoluto sob formas leigas ou secularizadas; é o caso do comunismo, ao qual o judeu Karl Marx deu a estrutura de um messianismo sem Deus; o proletariado sacrificado na luta de classes seria o Messias, que, morrendo, prepararia o surto de um homem novo, morigerado e pacífico. As categorias religiosas do judaísmo foram transpostas por Karl Marx para o plano da sociologia e da política; sobrevivem, porém, no esquema de pensamento marxista. - O marxismo cultua religiosamente certos valores meramente humanos ou profanos; este esquema caricatural já não satisfaz a muitos cidadãos, que hoje em dia se afastam do marxismo e das suas pantominas para procurar a verdadeira fé e autênticas expressões religiosas. O senso religioso, inato em todo homem, vem de novo à tona apesar das tentativas de erradicação a que o marxismo o submeteu. Este fenômeno bem evidencia quanto o senso religioso é característico do ser humano. São sempre válidas as palavras de S. Agostinho (+430): "Senhor, Tu nos fizeste para Ti, e inquieto é o nosso coração enquanto não repousa em Ti" (Confissões I 1).
Atraído irresistivelmente pelo Senhor Deus, o homem “ateu” de nossos dias cria suas místicas, seus "absolutos" seus deuses, suas superstições, que inadequadamente lhe fazem as vezes do único Deus.
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NOTAS:
[1] Ver a propósito o artigo de PR 387/1994, pp. 338-352 (a "inteligência" dos animais).
[2] A consciência moral é a faculdade que temos, de julgar o que convém ou não convém fazer em vista da consecução do nosso fim supremo; a consciência manda, a consciência aprova, a consciência censura nossos atos
morais.
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