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terça-feira, 27 de março de 2007

Confissão: e a confissão dos pecados?

(Revista Pergunte e responderemos, PR 273/1984)


Em síntese: A confissão dos pecados é praticada por indivíduos não cristãos a título de satisfação ou reparação. No Cristianismo ela tem fundamento nas palavras de Cristo consignadas em Jo 20,23; Mt 16,16-19; Mt 18,18: a reconciliação dos pecadores faz-se mediante a Igreja, pois o pecado de um cristão não é apenas ofensa a Deus, mas é também obra de um filho da Igreja contra a Igreja; Jesus quis, mediante o dom do Espírito Santo, comunicar aos sacerdotes a faculdade de reconciliar os homens com Deus e com os irmãos. Algumas denominações protestantes reconhecem hoje o valor da manifestação da consciência a pastores devida­mente credenciados.

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O sacramento da Penitência, incluindo a confissão dos peca­dos ao ministro habilitado, é um dos pontos contestados pelos irmãos separados e por outros muitos cristãos. Eis por que abordaremos a temática neste artigo, considerando 1) o funda­mento natural ou humano, 2) o embasamento teológico remoto, 3) as premissas bíblicas da confissão sacramental.

1 . Fundamento natural

A psicologia e as ciências humanas põem em evidência o valor da katharsis ou da purificação da consciência que se faz mediante o reconhecimento das próprias faltas. Reconhecendo suas falhas, o pecador, de certo modo, sai do emaranhado em que elas o envolvem; distancia-se das mesmas, deixa de se iden­tificar com suas faltas e começa a expiá-las. Tal atitude por certo liberta a pessoa em causa e fá-la viver a verdade,... a verdade que, no caso, é desagradável ou humilhante, mas que, em última análise, é um valor. Dizia muito a propósito S. Am­brósio (+ 397): «Pecar é comum a todos os homens, mas arre­pender-se é próprio dos santos (culpam incidisse, naturae est; diluisse, virtutis») (Apologia David ad Theodosium Augus­tum II, 5-6). Na verdade, ninguém tem motivo para se sur­preender pelo fato de que um semelhante peque, pois a condi­ção de pecador é comum a todos os homens. Há, porém, mo­tivo para surpresa e mesmo admiração quando alguém reco­nhece o seu pecado, pois tal sinceridade não é muito freqüente; ela exprime a nobreza que não existe em todo homem, embora em todo homem exista o pecado. A grandeza e a nobreza de caráter de alguém se manifestam não quando diz que não peca (isto geralmente é falso), mas quando aponta sinceramente o seu pecado e se distancia dele, em vez de o encobrir com más­caras. Pôr máscaras no plano moral é menos digno do que reconhecer a verdade quando necessário e propor reparar o que haja de falho.

Note-se ainda o seguinte: o pecado, por sua própria índole, tende a furtar-se à luz: «Todo aquele que comete o mal, odeia a luz, e não vem à luz para que as suas obras não sejam mani­festas. Mas aquele que pratica a verdade, vem à luz» (Jo 3,20). Mais: o pecado tende até a tomar as aparências do bem e da luz. Por conseguinte, a confissão do pecado ou a colocação do pecado sob a luz adequada vem a ser o primeiro antídoto do pecado: a confissão desvenda e desmascara o mal com suas simulações. Por isto toda conversão ou mudança de vida começa pela confissão das próprias faltas.

Não bastaria, porém, a confissão íntima, feita tão somente a Deus? - Em resposta, e à luz tão somente dos valores antro­pológicos, dizemos que a natureza psicossomática do homem exige atitudes que manifestem sensivelmente (somaticamente) o que ocorre em nosso psiquismo. A manifestação exterior do que trazemos na alma contribui para o amadurecimento dos nossos afetos íntimos e para o mais pleno conhecimento de nós mesmos. O que exprimimos sensivelmente, se imprime mais nítida e profundamente em nossa própria consciência: «O que só se projeta interiormente, não derruba os muros da solidão em que se fecha o mal e, por conseguinte, não liberta. É pre­ciso que o pensamento se encarne nas palavras para que ele se torne palpável e apareça aos nossos olhos em plena luz» (A. Brunner, Aus der Finsternis zum Licht. Ueber das Be­kenntnis der Stinden, em Geist und Leben, t. 23 [1950] p. 89).

Estas idéias são claramente ilustradas pelo seguinte depoi­mento do Mahatma Gandhi, que fala não como cristão, mas como homem reto:

«Eu tinha quinze anos. Cometi um furto. Tratava-se de um pequeno fragmento de ouro tirado do bracelete de meu irmão... Isto se tornou para mim pesado demais para que eu o pudesse suportar.

Tomei a resolução de não mais roubar. Mas não ousava falar do que tinha feito. Não por medo de ser esbofeteado por meu pai. Ele nunca nos espancava. Mas eu tinha receio de penalizá-lo. Toda­via eu sentia que tinha de arriscar, e que não podia purificar-me sem uma confissão completa.

Decidi-me, por fim, a redigir a confissão, a apresentá-la a meu pai e a pedir-lhe perdão. Escrevi-a sobre estreita faixa de papel, e apresentei-a a meu pai. Nessa nota, não somente eu admitia a minha culpa, mas pedia um justo castigo e terminava suplicando a meu pai que não se punisse ele mesmo por causa de mim. Prometia já não roubar no futuro.

Todo trêmulo, entreguei-lhe essa confissão. Meu pai então sofria de uma fístula e achava-se de cama, uma cama que não era senão uma simples prancha de madeira. Sentei-me do outro lado da prancha. Ele se pôs a ler, e as lágrimas corriam-lhe ao longo da face, molhando o papel... Essas pérolas de amor purificaram-me o coração e apagaram o meu pecado.

Essa espécie de sublime perdão não estava nos hábitos de meu pai. Eu julgara que ele se irritaria, diria palavras duras e bateria na testa. Mas ele permanecia estranhamente calmo; creio que isto era devido à minha confissão completa.

Uma confissão acompanhada do desejo de não mais pecar, quando ela é feita diante de alguém que tem o direito de a receber, é a mais pura espécie de arrependimento. Sei que a minha confissão tirou a meu pai toda inquietação a meu respeito e aumentou des­medidamente a sua afeição para comigo».

O testemunho de Gandhi pode ser completado por nume­rosos outros, colhidos nas tradições de diversos povos não cris­tãos e coletados por R. Pettazoni, na obra La confessione dei peccati, 3 vols. 1935-36. Tais depoimentos manifestam o valor psicológico da confissão ou do reconhecimento das próprias faltas, segundo a cultura das mais diversas populações.

As reflexões até aqui propostas preparam a subseqüente consideração do pecado e do perdão em perspectiva explicita­mente cristã.

2. O embasamento teológico remoto

O pecado não é ato que atinja Deus e o pecador apenas. Todo pecado, por mais secreto que seja, tem, aos olhos da fé, conseqüências comunitárias ou sociais. Com efeito; Deus fez os homens solidários entre si não só no plano natural (uns dependem dos outros), mas também no plano dos valores cris­tãos; os fiéis estão inseridos na chamada «Comunhão dos San­tos»; o que quer dizer: todos estão unidos com Cristo e entre si à semelhança de vasos comunicantes.

Por isto o Senhor quis que a remissão dos pecados no Cristianismo tenha também um aspecto comunitário. Ela é concedida a cada um mediante a Igreja ou por meio dos minis­tros da Igreja. Deus quer que os homens caminhem para Ele e se santifiquem não de maneira isolada, mas em comunhão. «Aprouve a Deus santificar e salvar os homens não singular­mente, sem conexão de uns com os outros, mas constituí-los num povo, que o conhecesse na verdade e santamente Lhe ser­visse» (Constituição Lumen Gentium n° 9).

Aliás, o mistério da Encarnação é central no Cristianismo; por isto todas as propostas da fé cristã reproduzem a índole da encarnação. Com outras palavras: a graça divina vem sem­pre por meio de canais humanos ou sensíveis, como a Divin­dade se comunicou aos homens mediante a humanidade do Se­nhor Jesus. Ora, em vista da santificação «encarnada» ou ecle­sial dos fiéis, Cristo instituiu os sacramentos, entre os quais se aponta o da Reconciliação ou Penitência, oferecido precisa­mente a quem necessita da graça de Deus após o pecado.

Está claro que, nos casos em que se torna impossível pro­curar a reconciliação sacramental, todo homem é recebido por Deus e pode confiantemente pedir, no íntimo do coração, o perdão dos seus pecados.

Dirá alguém: mas por que confessar precisamente a um sacerdote, e não a qualquer cristão, especialmente àqueles que se se distingam por sua santidade de vida?

A propósito observemos: pode e deve haver sacerdotes que se distingam pela santidade de vida; aliás, todo sacerdote tem o dever de cultivar as virtudes em grau eminente. Todavia, abstraindo deste tópico, notemos quanto segue:

O cristão que peca, peca como filho da Igreja e contra a Igreja. Por conseguinte, é normal que ele se confesse à Igreja e, por meio desta, receba o perdão. Aliás, a reconciliação exige mais do que o ministério de um sacerdote da Igreja; exige, sim, um sacerdote que tenha jurisdição explícita ou uma facul­dade especial que o bispo local lhe deve outorgar e sem a qual não lhe é lícito absolver os pecados. O pecador fere a comuni­dade; por isto, diante dela ou diante do seu pastor ou do repre­sentante credenciado desse pastor, deve procurar receber a absolvição.

Examinemos agora a maneira como a Bíblia apresenta a reconciliação do pecador com Deus e com os irmãos (a Igreja).

3. Fundamento bíblico

Citaremos três passagens principais.

3.1. Lc 15,11-32

O Evangelho, mediante a parábola do filho pródigo (Le 15,11-32), ensina que não há pecados irremissíveis. O jovem que voltou à casa paterna depois de haver esbanjado a sua porção de herança foi recebido de braços abertos pelo pai logo que reconheceu as suas faltas. O pai, tendo ouvido as palavras de arrependimento do filho, mandou colocá-lo no lu­gar que lhe competia antes que deixasse a casa paterna; houve festa por ocasião do retorno do filho que se perdera e voltava vivo (cf. Lc 15,24.32). A propósito podem-se considerar tam­bém as parábolas da ovelha perdida e da moeda perdida (cf. Le 15,1-10).

O Evangelho acrescenta algo sobre a maneira como o Pai quer perdoar os pecados dos homens. Com efeito, veja-se o seguinte texto:

3.2. Jo 20,22s

Na noite de Páscoa Jesus apareceu aos Apóstolos reunidos e disse-lhes: «Assim como o Pai me enviou, eu também vos envio». A seguir, soprou-lhes na face, e continuou:

«Recebei o Espírito Santo. Aqueles a quem perdoardes os pe­cados, serão perdoados. Aqueles a quem os detiverdes, serão detidos» (Jo 20,22s).

Estas palavras significam que

1) os Apóstolos, não por efeito de sua santidade própria, mas em conseqüência de um dom de Deus («Recebei o Espírito Santo»), são habilitados a perdoar os pecados.

2) A sentença proferida pelos Apóstolos é confirmada pelo próprio Deus. As formas passivas «serão perdoados», «serão detidos» são circunlóquios que os judeus utilizavam para não proferir o santo nome de Deus nas expressões «Javé os perdoará, Javé os reterá ou não os perdoará».

3) Trata-se de perdoar pecados propriamente ditos, fa­culdade esta que os israelitas atribuíam a Deus só. Jesus disse ao paralítico: «Os teus pecados te são perdoados» (Le 5,20). Declarou também à pecadora anônima: «Perdoados te são os teus pecados» (Le 7,48). - Ora em Jo 20,23 diz o Senhor: «Aqueles a quem perdoardes os pecados, serão perdoados». Nos três casos, a palavra perdoar traduz o verbo grego aphíemi; a palavra os pecados traduz o substantivo hamartíai (com o artigo definido hai ou tas). Vê-se que as mesmas palavras de Lc 5,20 e 7,48 voltam em Jo 20,23. Ora, como naqueles casos se tratava de pecados propriamente ditos, relacionados com a consciência da pessoa interpelada, assim em Jo 20,23 trata-se também de pecados no sentido estrito da palavra ou de culpas atinentes à consciência. Donde se deduz que um poder próprio de Deus («Quem pode perdoar pecados senão Deus?», Le 5,21; «Quem é este que até perdoa pecados?», Lc 7,49) é outorgado aos ministros do Senhor. Aquilo que Jesus fazia por si quando peregrino na terra de Israel, Ele continua a fazê-lo depois de glorificado mediante o serviço dos seus ministros.

4) O poder assim outorgado por Jesus não é concedido à Igreja inteira, mas apenas aos seus ministros. Com efeito; Jesus na noite de Páscoa soprou sobre a face dos Apóstolos apenas e somente a estes dirigiu as palavras subseqüentes; aliás, a estes tinha ele dito pouco antes: «Assim como o Pai me enviou, assim também eu vos envio». É a estes mesmos que Jesus também ordena consagrar o pão e o vinho em memória dele: «Fazei isto em memória de mim» (Le 22,19). Trata-se, pois, de pessoas especialmente chamadas por Jesus e, mais ainda, enriquecidas por um dom especial («Recebei o Espírito Santo...»), a fim de realizar um ministério singular dentro da Igreja.

5) Para que os Apóstolos e seus sucessores possam exer­cer a função de perdoar os pecados, devem ter conhecimento de causa. As razões para não absolver em nome de Deus são geralmente de ordem pessoal: falta de verdadeiro arrependi­mento, falta do propósito de emenda (tal é o caso da pessoa que leva vida dupla, mas não tem a intenção de se converter, ... o caso de quem guarda raiva, rancor e desejos de vingança deliberadamente alimentados... ) . Em tais casos, o ministro é obrigado e adiar a absolvição, para que o penitente se dispo­nha a recebê-la. Ora o exercício de tal discernimento supõe o conhecimento da matéria em pauta, conhecimento que só o próprio penitente pode oferecer mediante confissão. Eis por que a Igreja deduziu das palavras de Cristo a obrigatoriedade da confissão dos pecados para poder ministrar o perdão dos mesmos. Essa obrigação incumbe não somente aos fiéis leigos, mas também aos presbíteros, aos bispos e ao próprio Papa; não há quem não esteja sujeito ao sacramento da Reconcilia­ção. - A Igreja, ultimamente, tem permitido que, em circuns­tâncias muito especiais e com a devida autorização do Bispo, os sacerdotes possam absolver sacramentalmente sem confis­são prévia; cf. PR, 154/1972, pp. 435-444. Em tais casos, a confissão não é abolida, mas apenas postergada, pois fica sem­pre aos fiéis a obrigação de confessar posteriormente os peca­dos assim absolvidos; a confissão é apenas deslocada, visto que a Igreja não tem o poder de extinguir uma prática que lhe é imposta por direito divino (cf. Concílio de Trento, em Denzin­ger-Schánmetzer, Enquirídio... nº 1679. 1706).

6) Do que foi dito, segue-se que o cristão não confessa os seus pecados ao sacerdote porque julgue que este é isento de faltas (tem-nas, como todo indivíduo humano) ; nem é da san­tidade do ministro que ele espera receber absolvição. Não; o sacerdote, ao absolver, nada confere de seu, procede qual mero instrumento a quem o Senhor gratuitamente conferiu o Espí­rito Santo para discernir o estado de alma do penitente e pro­ferir em nome de Deus o perdão dos pecados. Desde que o sacerdote, devidamente habilitado pela Igreja, tenha a inten­ção de fazer o que Cristo faria, é realmente Cristo quem por ele absolve, independentemente das virtudes ou dos defeitos do respectivo ministro.

7) Estas noções também concorrem para evidenciar que a confissão sacramental não se pode confundir com psicoterapia religiosa. Verdade é que entre os seus efeitos pode estar o alí­vio do ânimo do penitente, alívio proporcionado pelo «desa­bafo» de consciência, pelos conselhos dados por um confessor compreensivo, douto, virtuoso, etc. Contudo, mesmo que falte ao sacerdote um tino psicológico esmerado (qualidade certa­mente preciosa), o seu ministério é válido e a confissão dos pecados frutuosa em virtude da absolvição sacramental, por­que o encontro do penitente com o sacerdote ocorre num plano transcendental, em que Deus age ultrapassando as capacidades meramente humanas do seu ministro.

Já se tem dito que «a sociedade moderna é uma fábrica de angustiados» (L. Cechinato). Muitos procuram alívio para seus males no consultório de um psicólogo ou de um analista. Este pode realmente ajudar o paciente a descobrir a causa de seus problemas e a superá-los. Todavia o cerne de não poucas angústias é o pecado; é a resistência à voz de Deus, que fala pela consciência. O pecado tira a paz de alma, pois é um Não dito ao Amor Infinito explícita ou implicitamente reconhecido. O genuíno sentimento de culpa não é algo de mórbido, mas algo que tem fundamento na realidade e denota nobreza de caráter. Tal sentimento não se dissipa mediante conversa com um profissional da psicologia, nem se extingue com calmantes ou com mudança de clima, mas exige que a pessoa se volte explicitamente para Deus no plano moral e receba do Senhor a certeza de que os pecados lhe estão absolvidos. É precisa­mente o que ocorre no sacramento da Reconciliação. - Infeliz­mente aqueles que recusam a este, procuram não raro um substitutivo do mesmo na «confissão psicanalítica», que não deixa de ser um desnudamento da personalidade do paciente diante de um profissional freqüentemente pansexualista e ma­terialista. Tal desnudamento, se pode ter seus resultados posi­tivos, em muitos casos não atinge o fundo do problema, que é de índole ética e religiosa, como já observamos.

8) Vê-se também que direção espiritual e confissão sacra­mental podem ser separadas uma da outra. A direção, que consiste em orientar os fiéis no andamento geral de sua vida interior, não pertence propriamente ao rito do sacramento; por isto a sua eficiência não é garantida pelo poder transcendente das chaves, mas depende, em grande parte, das aptidões natu­rais, do cabedal de cultura e principalmente do grau de união com Deus que o diretor possua. Donde se vê que, embora todo sacerdote aprovado pela Igreja possa ser confessor, não qual­quer um é apto diretor de consciência; tal há de ser escolhido de acordo com o estado de alma de cada um dos fiéis.

9) As verdades acima nos fazem ver também que a ati­tude de quem se chega ao sacramento da Reconciliação, está longe de ser uma atitude de auto-defesa, de reconhecimento «mercadejado» das próprias faltas. Muito ao contrário, para usufruir em grau máximo do perdão que lhe é oferecido, o penitente procura identificar-se, tanto quanto possível, com a Justiça de Deus; procura desfazer-se do seu egoísmo e trans­por-se para o lado do Senhor Santo, a fim de ver e apontar os seus defeitos como Deus os vê e aponta. É, pois, em espírito de sinceridade que não sabe encobrir o mal, mas o denuncia para dele se separar, que o cristão se acusa no confessionário.

10) A fim de salvaguardar a pureza e grandeza do sacra­mento da Reconciliação, a Igreja exige dos confessores estrito sigilo a respeito de tudo o que lhes seja confiado no foro sacra­mental. Ao ministro não é lícito, em hipótese alguma, fazer uso dos conhecimentos que lhe advêm pela confissão sacramen­tal; esteja disposto a sofrer os mais penosos danos para jamais violar o segredo do sacramento. A constante praxe da Igreja foi mais uma vez sancionada no novo Código de Direito Canô­nico, que reza:

«Cânon 1.388 - § 1° O confessor que viola diretamente o sigilo sacramental, incorre em excomunhão latae sententiae, reservada à Sé Apostólica; quem o faz só indiretamente, seja punido conforme a gravidade do delito».

Latae sententiae é a pena infligida em conseqüência mesma do delito sem necessidade de sentença proferida em tribunal.

2.3. Mt 16,16-19; Mt 18,18

Os dizeres de Jesus em Jo 20,22s devem ser lidos à luz de quanto o Senhor declara em Mt 16,16-19 e em Mt 18,18.

No primeiro destes textos o Senhor Jesus promete a Pe­dro as chaves do Reino dos céus, de tal modo que «tudo que ligares na terra, será ligado no céu, e tudo que desligares na terra, será desligado no céu».

Como se vê, a estrutura da frase é paralela à de Jo 20,23: o que Pedro fizer na terra, será ratificado no céu ou pelo pró­prio Deus.

Ora, como se sabe, «ligar-desligar» são expressões da lin­guagem rabínica, que significam, no plano disciplinar, «usar de rigor, excomungar« (ligar) ou «usar de brandura, suspen­der a excomunhão» (desligar). Ulteriormente significavam deci­sões doutrinárias ou jurídicas, que ou proibiam, declaravam ilícito (ligavam) ou permitiam, declaravam lícito (desligavam). Na casuística judaica, dizia-se comumente: «Neste ponto Rabi Chamai liga, Rabi Hillel desliga» - o que significava: «Cha­mai proíbe, Hillel permite».

Em Mt 18,18 Jesus outorga as mesmas faculdades de ligar e desligar não somente a Pedro, mas aos doze, ou seja, aos onze Apóstolos unidos a Pedro. O que quer dizer: o que Pedro pode exercer a sós na Igreja [1] em matéria doutrinária, jurídica e disciplinar, podem-no exercer também os onze Apóstolos uni­dos a Pedro. Todavia Pedro foi declarado Rocha sobre a qual Cristo edificaria a sua Igreja - o que confere a Pedro uma posição singular no conjunto da Igreja. Eis, porém, que uma observação se impõe:

As faculdades concedidas por Jesus a Pedro só e aos onze com Pedro são distintas daquelas outorgadas em Jo 20,23. Como se depreende dos verbos «ligar-desligar» (asar e sherá ou hithir, na linguagem rabínica), as faculdades mencionadas em Mt 16 e 18 dizem respeito ao governo da Igreja em seu foro disciplinar e doutrinário ou em seu foro externo; ao con­trário, as faculdades de que trata Jo 20,23, referem-se explici­tamente ao perdão dos pecados ou ao foro interno ou ao foro da consciência. Há contudo um paralelo entre tais textos no sentido de que mostram que Jesus quis servir-se do ministério dos homens para comunicar a sua graça e levar a termo a sua obra.

3. A posição da Reforma protestante

Embora Lutero tenha rejeitado a confissão sacramental, hoje em dia entre os evangélicos o reconhecimento de faltas diante de um representante de Deus é mais e mais valorizado. Tenha-se em vista o livro do pastor Max Thurian, La Confes­sion, 1953, que traz um prefácio do pastor M. Boegner.

Merece atenção também o VII Congresso Evangélico Ale­mão realizado em Francoforte de 8 a 12 de agosto de 1956: um dos relatores apresentou eloqüente dissertação sobre o valor da confissão, da qual se pode destacar o seguinte trecho:

«Pertence à essência do homem ser responsável. Nós, porém, tendemos a nos desfazer da responsabilidade por expedientes cômodos. Se confessamos nossas faltas a um irmão, então, e somente então, tomamo-las a sério, trazemo-las à luz; elas nos custam rubor e vergonha, somos obrigados a reconhecê-las e a reconhecer a nossa responsabilidade. Em tal caso, porém, o pecado deixa de ser agradá­vel, como agradável é a culpa acariciada e oculta; torna-se amargo. Separamo-nos dele. O pecado, uma vez trazido à luz, perde muito do seu poder sedutor.

Não diga alguém 'Pequei' apenas. Não te queiras entrincheirar atrás de tão generalizadas confissões como ‘Todos nós somos pecado­res’. Tais são muito freqüentemente meros subterfúgios mediante os quais o homem quer escapar a uma intervenção punitiva e santificante de Deus. Fala daquilo que cometeste pessoalmente. Faze, para isto, uma confissão individual. Esta ajuda o pecador a começar de novo; a confissão deve concorrer para que o pecado não continue a viver no indivíduo» (Herder Korrespondenz, Oktober 1956, XII).

Como se vê, são apenas razões psicológicas ou psicoterápi­cas que o orador cita em favor da confissão; não considera o seu aspecto sacramental, ou seja, a comunicação da graça que se faz independentemente do que o confessor e o penitente pos­sam «sentir e experimentar». Contudo já esta atitude repre­senta grande novidade, se se considera que é tomada por representantes de uma teologia que a princípio rejeitou peremp­toriamente a confissão individual dos pecados.

Por ocasião do mesmo Congresso de Francoforte, foram praticadas a confissão auricular e a abertura de consciência em trinta lugares diferentes da cidade, às vezes até altas horas da noite. Depois do Congresso, o pastor H. Schieber de Stutt­gart declarou aos seus fiéis que, a partir do dia 23 de setembro seguinte, na Paul-Gerhardt Kirche teriam diariamente a opor­tunidade de se confessar entre 7h e 30min e 8h e 30min, antes do Ofício religioso.

Tais fatos, inspirados pela sinceridade de pessoas que real­mente procuram a Deus, indiretamente atestam que a confis­são dos pecados não é instituição de homens prepotentes, mas é praxe espontânea à natureza humana, praxe que, além de conferir benefícios de ordem psicológica, foi elevada por Jesus Cristo à dignidade de sacramento ou canal pelo qual Deus nos vem ao encontro.

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NOTA

[1] Sabe-se, aliás, que Pedro e seus sucessores não costumam agir sem ouvir os seus irmãos no episcopado, os teólogos e a Tradição cristã em geral.

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