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segunda-feira, 19 de março de 2007

Casamento: fidelidade..., mas a quem?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 276/1984)

Em síntese: A fidelidade é valor em crise nos nossos dias por três motivos principais: a fé religiosa é substituída pelo racionalismo e o hedo­nismo; o existencialismo e a filosofia freudiana solapam o ideal da adesão firme a valores que custem renúncia e sacrifício. Não obstante, verifica-se que o homem foi feito para ultrapassar infinitamente a si mesmo; é saindo de si para atingir nobres ideais que ele se realiza plenamente: ora este sair-de-si será sempre doloroso por causa do egoísmo e do egocentrismo existentes em todo homem; compreende-se então que a fidelidade a algo maior seja difícil, mas nem por isto se torna dispensável na vida de alguém. Mais; a fidelidade do homem é apenas resposta à fidelidade de Deus, que se dignou travar aliança com a humanidade; como Deus é infalivelmente fiel, Ele convida o homem a uma fidelidade magnânima e perseverante até o extremo.

De resto, o mundo de hoje, tão sujeito a casos de infidelidade, con­serva o respeito e a admiração pelos ideais da generosidade tenaz e firme até as últimas conseqüências. Todas as instituições que proponham tarefas árduas em vista de metas elevadas e dignas são pontos de atração para o homem contemporâneo, que deseja descobrir modelos de fidelidade.

* * *

Não há quem não sinta como se tem tornado difícil a fidelidade em nossos tempos: fidelidade ao casamento, fidelidade aos votos religiosos, fidelidade a vocação sacerdotal ou, simplesmente, à palavra empenhada... Numerosos são os casos que surpreendem: o compromisso solenemente assumido pouco tempo depois, é retratado há quem procure “racionalizar” ou justificar sua atitude ao passo que outros não se preocupam com isto, afetando mesmo um certo desdém.

A crise merece atenção. Um valor que outrora era uni­versalmente reconhecido, hoje em dia é discutido ou até mesmo menosprezado. Por quê? Quais as correntes de pensamento que motivam tal conduta? Como julgar a situação?

Comecemos por investigar.

1. As causas da problema

Enunciaremos três razões.

1.1. O declínio da fé

A palavra fidelidade vem, em última instância, de fides, fé (em latim).

Fé, no sentido religioso, é a adesão a Deus que se mani­festa ao homem, propondo-lhe a sua palavra e a sua vida. Fidelidade é a atitude decorrente de tal adesão; é a firmeza e a perseverança na adesão à fé.

Em sentido profano e amplo, fé pode ser entendida como adesão a algum valor que não seja Deus diretamente: o valor da palavra dada, da doação prometida, da dedicação a uma causa nobre... Em tais casos, a fidelidade é a atitude tenaz de quem mantém seus propósitos. Supõe um certo nível ético e os ditames da consciência moral.

Ora em nossos dias a fé de muitas pessoas está em crise ou mesmo apagada, o que não pode deixar de abalar os fun­damentos morais da sociedade. Certo racionalismo tem suplan­tado as atitudes de fé, que é sempre um salto do homem para dentro do Infinito ou do Absoluto; mesmo as pessoas religiosas 'são propensas, às vezes, a enquadrar as proposições da fé den­tro de categorias naturalistas (“Deus não pode exigir sacrifícios, renúncias.. ., os instintos naturais são critério de com­portamento....”). Em conseqüência, sempre que as exigências da fé ultrapassam as do mero “bom senso”, surge a crise da fidelidade.

O naturalismo é hoje acompanhado de forte tendência hedonista, que faz do prazer o critério do comportamento hu­mano; em tal perspectiva, a renúncia e a autodisciplina se tor­nam incompreensíveis. Como a fidelidade requer sempre alguma renúncia, é solapada por tal atitude hedonista.

De modo particular, duas escolas filosóficas contribuem para dificultar o exercício da fidelidade.

1.2. O existencialismo

O existencialismo é a atitude de pensamento que rejeita a metafísica, com seus princípios e valores perenes para privilegiar o homem na sua situação momentânea transitória; tal mentalidade é, como se compreende avessa a compromissos definitivos. Mais: dentro do existencialismo mais recente, Jean-Paul Sartre define o homem pela sua liberdade, liberdade para a qual não há modelo preexistente ou meta prefixada a atingir. A liberdade de cada um está habilitada a optar pelo Sim ou pelo Não no contexto das circunstâncias em que se ache. Cada qual, de acordo com as conveniências da sua situação, define para si o bem e o mal moral, sem que o homem se julgue devedor a alguma norma ou instancia superior que o obrigue a seguir valores perenes.

A juventude européia (e por repercussão a brasileira) sofreu especial influência da parte de Herbert Marcuse, “o filósofo dos hippies”. Este autor apresenta um existencialismo marxista, de inspiração freudiana - o que quer dizer: conjuga em si correntes de pensamento fortemente antitradicionalistas e anticristãs; segundo Marcuse, o princípio que deve reger o comportamento humano, há de ser o eros ou a espon­taneidade liberada, em lugar do logos ou do domínio metódico da razão sobre os instintos; é preciso por de lado todas as normas, para entregar-se aos impulsos do instinto sempre pronto para a criatividade.

Por isto não raro se ouve dizer, da parte de quem rompe algum compromisso: “Tenho que ser fiel a mim mesmo” ou ainda: “Se quero continuar a permaneceu fiel ao espírito de minha promessa (isto é, a fidelidade a mim mesmo) tenho que romper com a letra do que prometi...” O sujeito - e o sujeito situado em tais ou tais circunstâncias volúveis - tornar-se-á critério do novo conceito de fidelidade, realiza-se assim o sonho ateu de Ludwig Feuerbach († 1872), contemporâneo e mentor de Karl Marx, o homem é, sem mais, a sua própria finalidade e o seu próprio legislador.

A mentalidade existencialista dificulta também aos jovens assumir compromissos definitivos. Estes parecem desproposi­tados, visto que muitos põem a pergunta: “Como posso comprometer-me para sempre se não sei que tipo de homem ou de mulher serei daqui a vinte anos?” Seria mesmo errôneo na base destas premissas, querer ser fiel a um ideal preestabelecido. Há quem diga: “Tornei-me um outro homem, fundamentalmente diverso daquele que outrora prometeu fidelidade ao casamento ou ao celibato... Se quero ser realmente leal comigo mesmo, tenho que pôr fim à situação ambígua em que me acho”. Esse “pôr fim” nunca é entendido como uma trans­formação ou uma conversão do sujeito, mas, sim, como um abandono do compromisso.

Alguns cristãos tomam a mesma atitude usando lingua­gem aparentemente mais teológica, quando afirmam: “Tenho que ser fiel ao meu carisma... Este é sufocado pela lei e a instituição. .. Gozo da liberdade dos filhos de Deus”. Tais dizeres podem corresponder à verdade, como também podem ser ilusórios.

1.3. A filosofia de Freud

Para Sigmund Freud, o homem consta de um Ego, que é premido por seus instintos (Es ou Id) e controlado pelo Super-Ego ou a sociedade. O eu vive entre a pressão de baixo (dos afetos cegos) e a de cima (a censura do ambiente social) - A tendência daí decorrente é a de violar o controle ou censura, a fim de dar largas aos instintos. Muitas pessoas casadas, ao passar por uma crise emocional, recebem de profissionais da psicologia o conselho de procurar “sexo” fora de casa; aos jovens recomendam certos terapeutas que pratiquem o sexo antes do matrimônio; a solução dos problemas psíquicos estaria no dizer Sim a todos os instintos eróticos.

Neste contexto a fidelidade aparece associada à odiosa censura da sociedade; não há por que dar satisfação à socie­dade, que é sufocadora do verdadeiro eu do sujeito. Está assim legitimada a ruptura de qualquer compromisso.

Procuremos refletir sobre tão sério problema.

2. Ponderando...

Dois serão os nossos títulos de consideração.

2.1. Feito para se ultrapassar

1. O filósofo francês cristão Blaise Pascal († 1662) afirma: “O homem foi feito para ultrapassar infinitamente a si mesmo”. Estranha e sábia proposição: não é no fechamento sobre si mesmo que o homem atinge a sua grandeza, mas é precisamente quando sai de si. Com efeito; o homem não é o seu próprio fim; ele tem um Autor que o criou segundo um modelo exemplar e que o chama a realizar plenamente esse modelo. Há, pois uma vocação para cada homem, vocação à qual ele tem que responder. Verdade é que o Senhor Deus deixa certa margem de criatividade aqueles que O procuram; Ele não dita a resposta mas espera fidelidade a vocação

Quem quisesse fazer do homem o seu próprio fim, em vez de dignificar, rebaixaria a criatura. Esta traz em si aspira­ções grandes demais para poder bastar a si mesma. A plena realização do homem consiste precisamente em tender ao Absoluto.

Ora esta tendência por mais nobre que seja custa sacrifícios. Por isto ela encontra resistência no mais fundo de nós mesmos, que somos marcados pelo egoísmo e o egocentrismo. O homem é espontaneamente propenso a se auto-afirmar até em detrimento dos outros numa atitude de permanente competitividade. O pecado original configura todo ser humano levando-o ao narcisismo espontâneo.

Assim se explicam, de um lado, a lógica da fidelidade e, de outro lado, a dificuldade de a praticar.

2. Eis, porém, que se levantam dúvidas a respeito:

a) E a liberdade... liberdade tão apregoada pela corrente existencialista?

- Responderemos que a liberdade é um predicado precioso do ser humano, mas não é um fim nem um absoluto; é um meio para que o homem atinja seu fim não como um autômato, impelido cegamente, mas como um ser espontâneo.

Fulton Sheen ilustra o sentido da liberdade recorrendo às seguintes figuras: imaginemos um abridor de latas e uma gilete; cada qual desses instrumentos foi concebido e fabricado em vista de uma finalidade bem precisa. Ora, talvez alguém diga em nome da sua liberdade: “Vou deixar de fazer como todos fazem, e aplicarei a gilete à superfície da lata para tentar abri-la, e o abridor de lata à pele do rosto para tentar bar­bear-me”. Poderá fazê-lo; mostrar-se-á independente da rotina comum, mas na verdade nada lucrará; ao contrário, só perderá tempo e esforços; donde se vê que o uso da liberdade não é uma meta em si, mas apenas um recurso para atingirmos mais dignamente as metas que a natureza nos assinala e das quais não nos podemos afastar se nos queremos realizar ple­namente.

b) “Como posso assumir um compromisso para o resto da vida?” - Não há dúvida, na década dos vinte aos trinta anos de idade, nenhum jovem pode prever as chances e pers­pectivas que lhe serão oferecidas no decorrer dos decênios posteriores; nem pode avaliar a direção que seus impulsos tende­rão a assumir com o passar do tempo. Todavia cremos que isto não é motivo para que o jovem, na década dos vinte aos trinta anos, não assuma compromissos ... e compromissos de vida definitivos.

Com efeito. Viver comprometido, longe de ser diminuição da personalidade, é fator de engrandecimento. Para realizar-se plenamente, o ser humano tem que saber que não pertence a si, mas vive para uma grande causa na qual, perdendo-se a si mesmo, ele encontra de novo a si mesmo. É muito oportuno que o sujeito não seja sua própria regra de conduta, mas pro­cure pautar sua vida pelos ditames de uma nobre meta a atin­gir mediante doação ou dedicação (no casamento ou no celi­bato consagrado a Deus e ao próximo). - Está claro que essa meta e as normas que ela impõe, têm de ser bem ponde­radas e escolhidas com seriedade; por isto há sempre um pe­ríodo de preparação e de amadurecimento antes do contrato matrimonial ou da profissão religiosa; há o namoro e o noi­vado num caso, o noviciado ou os anos de formação sacerdotal no outro caso[1]. Depois dessa preparação, é bom que o jovem se decida e assuma o seu ideal de maneira plena ou sem reser­vas, deixando-se sacudir e despertar constantemente pelas exi­gências da meta proposta. A caminhada decorrente dessa deci­são poderá ser árdua; poderá ter suas surpresas, e sofrer ten­tações... É sadio, porém, correr um certo risco; aliás, não há grandeza sem risco; quem não aceita riscos, não pode crescer. - Ademais note-se que quem assume um ideal por amor a Deus, pode contar com a graça do Senhor, que não lhe há de faltar; o risco e os desafios aceitos pelo jovem para poder cres­cer em sua personalidade não são os de um estóico pagão, mas os de um filho de Deus, que jamais é abandonado pelo Pai.

c) A fidelidade não sufoca a personalidade? - Reflitamos... Antes de assumir um compromisso (tanto o do casa­mento como o de especial consagração a Deus), o indivíduo deve deliberar maduramente sobre o que está para fazer; exa­mine bem a proposta e compare-a com as suas aptidões. Não se comprometa precipitadamente nem para atender a injun­ções de familiares ou de estranhos. Por conseguinte, quando o jovem devidamente preparado se compromete, está afir­mando a sua personalidade livre e rica de aspirações. Pois bem; o exercício da fidelidade é a reafirmação dessa persona­lidade; é precisamente o sinal de personalidade forte (“renun­cio a meus caprichos e veleidades porque o quis e o quero; sei manter intrepidamente a decisão consciente e livre que tomei, apesar dos sacrifícios que isto exige”) - Ao contrário, aquele que viola seus compromissos não se submetendo a eles, dá pro­vas de personalidade fraca ou incapaz de se sustentar (embora, à primeira vista, pareça ser um tipo forte ou inquebrantável).

3. Observemos, de resto, que o sacrifício exigido pela fidelidade gera a paz interior,... não a paz que o mundo dá, mas a paz que o Senhor Jesus prometeu aos discípulos fiéis[2]'. É também penhor de profunda alegria,... alegria que o Se­nhor compara não à do mundo embriagado pelo prazer, mas à da mulher que, após haver sofrido as dores do parto, se rego­zija por ter dado um homem à luz (cf. Jo 16,21s)[3].

Ao contrário, a infidelidade gera a angústia, pois ela pro­voca o esvaziamento e a autodestruição da personalidade.

2.2. Aliança com Deus

1. A fidelidade da criatura deve ser considerada tam­bém à luz da Aliança de Deus com os homens. Ele é fiel à sua palavra. Aliás, o nome IAHWEH com que Deus se revelou a Moisés, quer dizer propriamente que Deus é sempre presente ao seu povo; Ele chama para uma árdua caminhada através do deserto, mas não deixará de acompanhar a sua gente. Na verdade, Ele amou o homem em primeiro lugar (cf. 1Jo 4,19) e o seu amor é irreversível (cf. Os 11,8s).

Freqüentemente os profetas do Antigo Testamento comen­tam a infidelidade da Filha de Sion ao Senhor Deus, seu Es­poso (cf Jr 3,9s; Os 1-3; Ez 16...); a criatura é, por vezes, leviana e fútil; esquece os bens principais para aderir a pro­postas de valor ilusório; cava cisternas incapazes de conter ....... O Senhor conhece sobejamente a fraqueza da nossa argila. Mas constantemente Ele convida ao retorno; se Israel foi infiel, o Senhor não é, nem se pode tornar infiel; é-lhe impossível dizer-nos Não depois de haver dito Sim; “Se lhe somos infiéis, Ele permanece fiel, pois, negar-se a si mesmo, Ele não o pode” (2Tm 2,13).

2. Há, porém, quem diga: a fidelidade a um compro­misso suprime a liberdade do dom; torna meramente formal o comportamento da criatura. Melhor seria dar a Deus sem compromissos. Em resposta, lembraremos que foi precisamente assim que pensaram os reformadores protestantes do século XVI com relação aos votos religiosos. Por isto aboli­ram a vida monástica. Todavia aos poucos o protestantismo está voltando atrás; tenha-se em vista o que ocorre em Taizé-Cluny, na França: aí precisamente alguns protestantes bem intencionados redescobriram a vida monástica com seus votos; a princípio os irmãos de Taizé queriam assegurar plena liber­dade ao seu comportamento monástico; aos poucos, porém, foram percebendo que promessas perpétuas tornam mais forte e desimpedido o amor a Deus. É Roger Schutz, o Prior de Taizé, quem escreve:

“Muitas vezes puseram-nos a pergunta: não será que adotastes os três votos tradicionais copiando o cenobitismo clássico? É-nos forçoso responder sem demora que tentamos sinceramente não nos deixar impressionar pela experiência do passado. Quisemos fazer tábua rasa para recomeçar tudo a partir da estaca zero. Não obstante, vimo-nos um dia diante da evidência seguinte: não poderíamos per­manecer em nossa vocação sem que nos comprometêssemos totalmente na comunhão de bens, na aceitação de uma autoridade e no celibato» (“Naissance de communautés dans l'Eglise de la Réforme», em Verbum Caro 1955, p. 20).

Vê-se assim que o valor da consagração ao Senhor e da conseqüente fidelidade se impõem ao cristão a partir de uma leitura sincera e serena do Evangelho.

Aliás, a propósito S. Anselmo de Cantuária sugere a seguinte imagem:

Um homem tinha uma macieira, e todos os anos entregava a um amigo os frutos produzidos por tal árvore. Um belo dia, porém, resolveu chegar-se ao amigo e dizer-lhe: “Eis que te ofereço não só os frutos, mas também a árvore com toda a potencialidade de produzir maçãs para o futuro”. Certamente o ato final do doador foi mais generoso do que os anteriores. Com efeito, nas ocasiões anteriores, o doador não guardava maçãs para si, mas guardava a faculdade de não oferecer a colheita seguinte, caso esta lhe parecesse mais saborosa ou caso precisasse dela. Entregando de uma vez só as frutas e a própria arvore, o doador correu um risco: o de não poder usu­fruir dos frutos futuros da macieira. Por isto o seu gesto foi especialmente magnânimo e não pode ter deixado de agradar mais vivamente ao homenageado. - Algo de semelhante se dá com quem entrega ao Senhor Deus não apenas cada um de seus dias à medida que ocorrem, mas de antemão oferece toda a sua vida, com tudo que ela tenha de incerto e surpreendente. A profissão religiosa é precisamente essa entrega feita ao Pai de antemão, em confiança filial, de toda a vida do(a) Reli­giosa (a) - Essa entrega assume o valor não de um ato espo­rádico, mas de um ato global e totalizante.

3. Conclusão

Verificamos que não poucas correntes filosóficas tendem a solapar o ideal da fidelidade, apresentando-a até como trai­ção do sujeito a si mesmo. Acontece, porém, que na realidade concreta o homem de hoje se mostra profundamente sensível aos valores da fidelidade, por vezes heróica, à palavra dada. Principalmente a juventude procura modelos de magnanimi­dade e fidelidade. Iludem-se aqueles que julgam poder atrair a juventude com “água de rosas” ou “água com açúcar”, isto é, com uma perspectiva de vida cristã sem renúncia e cheia de compensações. Será útil lembrar aqui uma experiência feita pelo autor destas linhas em maio de 1983: em visita à Polônia pôde observar que a juventude aflui em multidão para a Igreja e se desinteressa pelos programas do Partido Comunista, em­bora a prática cristã seja perigosa e arriscada porque perse­guida pelo Governo, ao passo que a filiação ao Partido é cheia de vantagens temporais. Ao contrário, na Holanda, que o autor destas linhas também pôde observar, a juventude abandonou a Igreja, embora esta nos Países-Baixos procure apagar todo sinal de austeridade e dureza nos seus programas de vida. Não seria de esperar que a comodidade e a vida “macia” atraíssem mais gente do que a vida arriscada e disputada? A explicação do fenômeno está precisamente no fato de que ainda existe bom senso na juventude e na humanidade de hoje: ainda há o reconhecimento de que renunciar a si e correr ris­cos em prol de uma causa nobre é muito mais belo e dignifi­cante do que fugir dos riscos e manipular a verdade para que ela não incomode o sujeito.

Qualquer instituição que julgue poder viver melhor em nossos dias a troco de ambigüidade, está fadada a perecer. Ao contrário, as instituições que cometam a “loucura» de propor programas de vida árduos, mas coerentes, em vista da conse­cução de nobre meta, têm a perspectiva de atrair adeptos. Precisamente o que falta aos homens de nossos dias, são mo­delos de coerência fiel e heróica até as conseqüências extremas.

Muito a propósito vêm as palavras do S. Padre João Paulo II proferidas no Rio de Janeiro (Maracanã) aos 2 de julho de 1980:

“Também, a juventude do nosso tempo sente poderosamente a atração para as alturas, para as coisas árduas, para os grandes ideais. Não vos iludais que a perspectiva de um sacerdócio menos austero nas suas exigências de sacrifício e de renúncia - como, por exemplo na disciplina do celibato eclesiástico - possa aumentar o número daqueles que pretendem comprometer-se no seguimento de Cristo. Pelo contrário. É antes uma mentalidade de fé vigorosa e consciente que falta e se faz necessário criar em nossas comunidades. Ali onde o sacrifício cotidiano mantém desperta o ideal evangélico e eleva a alto nível o amor de Deus, as vocações continuam a ser numerosas. Con­firma-o a situação religiosa do mundo. Os países onde a Igreja é perseguida são paradoxalmente aqueles em que as vocações florescem mais, algumas vezes até em abundância”.

Fale-nos, pois, o Evangelho mais uma vez nesta hora difí­cil e nos corrobore na certeza de que “aqueles que dão fruto cêntuplo, dão-no na paciência (= perseverança, fidelidade)”

(Lc 8,15).

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NOTAS:

[1] Sabemos que há muitas pessoas altamente dignas e respeitáveis que Deus não chama nem para o casamento nem para um tipo de vida explicitamente consagrada por um sacramento ou um sacramental. Tais pessoas, vivendo a vocação que Deus lhes deu, procurando construir algo de grande e nobre dentro do seu campo de irradiação própria, estão justificadas; não vivem egoistamente ou fechadas em si.

[2] “Deixo-vos a paz, a minha paz vos dou; não vo-la dou como o mundo a dá” (Jo 14,27).

[3] “Vós estareis na tristeza, mas a vossa tristeza se converterá em alegria. Quando a mulher está para dar à luz, fica triste, porque está chegando a sua hora; mas, nascida a criança, não se lembra mais das dores, pela alegria de ter vindo um homem ao mundo. Também vós estais tristes agora, mas eu vos tornarei a ver e vosso coração se alegrará, e ninguém poderá tirar vossa alegria” (Jo 16,20-22).

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