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domingo, 18 de março de 2007

Bioética: a clonagem e sua implicações

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 428/1998)


Em síntese: A clonagem ou reprodução sem o concurso do ele­mento masculino é lícita quando se trata de animais infra-humanos e ve­getais. Merece séria reprovação na medida em que pretende atingir a pessoa humana; esta se reproduz em função do amor, de um ideal de vida e uma doação comprometida de homem e mulher. Tal é a lei da natureza, que é lei do Criador, e não pode ser violada sem graves conse­qüências para a própria humanidade. Nem mesmo a alegação de que a clonagem poderá ser útil à medicina, coonesta tal processo, pois o fim não justifica os meios; não se pode manipular a genitalidade humana (o que é um mal) para obter alguma finalidade boa.

O ser clonado, se tiver autênticas características de ser humano, terá alma humana, pois não há homem verdadeiro sem alma intelectiva

O Dr. Silvio VaIle, médico veterinário, chama a atenção para os aspectos de marketing que acompanham o alarido acerca da clonagem.

* * *

Está na ordem do dia o tema "clonagem" com suas implicações de ordem biológica e ética. As páginas subseqüentes abordarão o assunto, levando em conta as questões que o público geralmente levanta.

Antes do mais, impõe-se sumária explanação do que seja a clonagem.

1. Clonagem: de que se trata?

Distingamos a clonagem simplesmente dita e a clonagem transgênica.

1.1 Clonagem simplesmente dita: a ovelha Dolly

Este tipo de experiência consiste em reprodução de um vivente sem o concurso de elemento masculino ou unicamente a partir do femini­no. Sumariamente pode ser assim descrita:

O cientista serve-se de uma ovelha A, da qual extrai uma célula da glândula mamaria.

De outra ovelha, B, são retirados óvulos não fecundados.

A célula da glândula mamaria é cultivada em laboratório e o seu núcleo é extraído.

Do óvulo da ovelha B se retira o núcleo ou genoma, que contém a informação genética.

Faz-se a fusão entre o núcleo da glândula mamaria da ovelha A e o óvulo (sem núcleo) da ovelha B.

Tratado quimicamente, o óvulo desenvolve-se até o estágio de embrião. Através de descarga elétrica, o processo de divisão celular é iniciado.

Uma terceira ovelha, C, recebe o embrião desenvolvido.

Após o período normal de gestação, a ovelha C dá à luz uma ove­lha Dolly, geneticamente idêntica à ovelha A.

Em teoria o processo é claro. Na prática é difícil e dispendioso. A muito custo, o Prof. Ian Wilmut, escocês, funcionário da empresa inglesa de Biotecnologia PPL Therapeutics, conseguiu êxito na realização da experiência. O próprio Dr. Ian Wilmut explicou que só foi bem sucedido na 227ª tentativa; diz-se porém, que tentou mais de oitocentas vezes para chegar ao resultado almejado.

1.2 Clonagem transgênica: a ovelha Polly

A ovelha Polly foi produzida segundo o processo que gerou a Dolly, com a diferença de que foi enxertado no material genético um gene hu­mano. A ovelha daí resultante é transgênica; produz leite com proteína humana, de valor terapêutico. Esta experiência é muito mais ousada do que a anterior e, como dizem os pesquisadores, tem mais importância porque suas aplicações terapêuticas serão de grande alcance.

A imprensa tem acenado à possibilidade de, em futuro próximo, aplicar-se a clonagem ao ser humano, de modo que poderia haver pes­soas produzidas em série, portadoras dos mesmos caracteres genéti­cos. Como se compreende, tais notícias tem suscitado polêmica e temo­res desde o dia 24 de fevereiro, quando os pesquisadores apresentaram à imprensa internacional a ovelha Dolly. Os próprios escoceses que pro­duziram Dolly, afirmam dominar a tecnologia para clonar seres humanos, mas garantiram que não fariam a experiência. Como quer que seja, os legisladores de vários países têm-se movido no intuito de ditar limites à manipulação de seres humanos por parte de cientistas.

Pergunta-se agora:

2. Que dizer no plano ético?

A Moral católica não pode deixar de refletir sobre o assunto e pro­por as seguintes ponderações:

2.1. Em seres infra-humanos

Na discussão que se trava, impõe-se a distinção entre clonagem em animais irracionais e clonagem em seres humanos. A primeira é líci­ta, pois o animal não tem personalidade, não tem amor comprometido, não constitui família, É movido pelo instinto em suas funções reprodutoras. Donde se segue que, se ao homem é lícito matar um animal para consu­mir a sua carne, será lícito também clonar o irracional (inclusive o vege­tal), atendendo a finalidades de abastecimento e terapêutica.

Assim à produção da ovelha Dolly não há objeção a fazer, contanto que se limite estritamente ao plano do irracional, sem envolver genes humanos (como aconteceu no caso da ovelha Polly transgênica). A pro­dução de ovelhas transgênicas viola as leis da natureza, pois recorre á hibridação, mesclando elementos humanos com os do animal infra-hu­mano - o que derroga à dignidade do ser humano.

2.2. No ser humano

A qualificação ética da aventada clonagem humana é negativa. Trata-­se de intervenção no processo generativo do homem que viola radical­mente as leis da natureza, que são as leis do Criador. Mais precisamente:

1) A reprodução humana está ligada ao amor, a um ideal de vida, à doação mútua de homem e mulher, que se concretiza na prole. A genitalidade humana tem grandeza e nobreza singulares, de tal modo que não se pode tratar a semente vital humana como se tratam produtos de laboratório.

A Congregação para a Doutrina da Fé publicou a Instrução Donum Vitae (O Dom da Vida) datada de 22/2/1987, em que aborda os proces­sos de fecundação artificial de maneira global. Lembra, em seus n° 3 e 4, que a pessoa humana, embora conste de um corpo constituído por teci­dos e órgãos, como o dos demais animais, não pode ser tratada como estes. De modo especial, a procriação humana está ligada a valores que não se encontram em nenhum outro vivente criado. A corporeidade no homem está integrada num conjunto que também é espiritual; em conse­qüência, quem toca o corpo, toca a pessoa com seus aspectos espiritu­ais e transcendentais; criado à imagem e semelhança de Deus, o ho­mem é chamado a se realizar plenamente em Deus. Isto quer dizer que nenhum biólogo ou médico pode, em nome da ciência, decidir sobre a origem e o destino dos homens. É lícito, sim, ao cientista instituir suas pesquisas genéticas desde que guarde sempre o respeito à pessoa hu­mana (n° 3).

- Os critérios morais para se julgarem as novas experiências são dois:

a) a vida do ser humano não é apenas o resultado de reações físi­co-químicas, mas é o patrimônio de alguém chamado à eternidade;

b) a transmissão da vida humana foi, pela natureza, associada ao amor conjugal, que é sempre pessoal e consciente; por conseguinte, não deve ser realizada fora do contexto conjugal (n° 4).

2) Com outras palavras ainda: toda derrogação às leis da natureza humana provoca a réplica da própria natureza. Tenha-se em vista, entre outros casos, o da pílula anticoncepcional, que sofre contra-indicações reconhecidas pela medicina. Para viver sadiamente, o ser humano não pode deixar de observar as leis do seu organismo relativas ao regime de alimentação, de respiração, de repouso...; ora entre essas leis está tam­bém a que rege a genitalidade humana; não pode ser violada sem que graves conseqüências, cedo ou tarde, daí decorram.

3) Estas considerações são reforçadas pela prospectiva do que poderá acontecer se a ciência não for orientada pela consciência ética. A volúpia da conquista pode obcecar o cientista e empolgá-lo, a ponto tal que a ciência se volte contra o homem, em vez de servir ao homem. Na verdade, a ciência e a técnica não são valores absolutos, mas estão a serviço da pessoa humana, subordinadas à Ética e aos direitos inalienáveis do ser humano. Daí as cautelas e medidas preventivas que o Governo de certos países está tomando a fim de garantir o autêntico papel da ciência na construção da sociedade humana.

4) Há quem queira defender as novas experiências em nome da terapêutica de certas doenças. - Em resposta, é preciso observar que o fim não justifica os meios; a manipulação genética chega a pensar em produzir embriões (autênticos seres humanos em formação) ou até fetos e bebês para deles extrair tecidos ou órgãos necessários para curar mo­léstias de adultos. Reduz-se assim o ser humano a mero produto bioquímico, que se produz, se utiliza e também se destrói de acordo com o pragmatismo da sociedade de consumo.

5) Colocam-se perguntas de ordem filosófica e religiosa:

a) O ser humano clonado será um homem genuíno, dotado de alma imortal, com seus sentimentos e sua consciência? Ou será um "humanóide"?

- Deve-se responder que, se o ser clonado tiver todas as caracte­rísticas físicas do ser humano, terá alma humana imortal, com as suas potencialidades normais. Não existe verdadeiro homem sem alma hu­mana. Esta será criada por Deus e infundida no ser resultante da combi­nação do núcleo com o óvulo; desde que haja autêntico embrião huma­no, há alma humana. O Criador se dignará dar alma a tal ser, como a dá aos fetos produzidos artificialmente em proveta.

b) A clonagem produzirá cópia carbono do ser clonado?

- Distinguimos no ser humano corpo e alma ou princípio vital. O corpo é produzido por via genética. A alma é criada por Deus para tal corpo singular, dotada de livre arbítrio. O corpo, sim, terá as característi­cas do ser clonado; a alma criada para esse corpo terá traços correspon­dentes à índole desse corpo; tudo no homem é psicossomático; corpo e alma se condicionam mutuamente; por isto se fala de temperamento sangüíneo, bilioso, melancólico, segundo uma terminologia antiga. Mas o livre arbítrio de tal alma poderá moldar a personalidade respectiva, con­figurando-a ao ideal de vida escolhido pelo indivíduo clonado; daí não se poder falar de "cópia carbono". Até os gêmeos podem diferir entre si.

Seguem-se agora as ponderações de um médico veterinário.

3. Fala o médico

O Dr. Silvio Valle é médico veterinário, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz, onde coordena os Cursos de Biossegurança. Escreveu, com o Prof. Pedro Teixeira, o livro "Biossegurança". Fez declarações à revista "Diálogo Médico", ano 12, n° 4, julho/agosto 1997, pp.6-9, publicadas com o título: "Clonagem. Ainda bem longe dos seres huma­nos. Para especialista brasileiro, debate em torno do caso Dolly foi uma tempestade em copo d'água". O Dr. Valle considera outro aspecto do caso Dolly, ou seja, a faceta de marketing, que, segundo S. Valle, está presente em todo o alarido que se faz em torno do assunto. Eis o que se lê no artigo citado:

"É melhor esquecer o tom apocalíptico com que boa parte da mídia tratou o caso Dolly, aquela simpática ovelha nascida das experiências do escocês Ian Wilmut, funcionário da empresa inglesa de biotecnologia PPL (cujas ações na Bolsa de Valores de Londres, diga-se de passagem, su­biram 58% num espaço de apenas cinco dias após o anuncio da forma como o animal foi concebido, o que na Inglaterra significa uma fábula de dinheiro). Sílvio Valle chega a brincar, dizendo que às vezes tem a im­pressão de que o caso foi publicado na editoria errada dos jornais: em vez da seção internacional ou de ciências, deveria ter sido publicado na seção de economia.

O Dr. Valle comenta que, enquanto o mundo ficava perplexo diante do fato, as empresas de biotecnologia davam gargalhadas, claro, ao verem suas ações em alta. O próprio anúncio da experiência de Wilmut, diz ele, foi feito seguindo-se uma minuciosa e boa estratégia de marketing: primeiro, a publi­cação na revista 'Nature' e logo o posterior vazamento para os jornais 'Le Monde', na França, e 'New York Times', nos Estados Unidos. Lembrando que isso só aconteceu sete meses depois do nascimento de Dolly - tempo mais que suficiente para que o próprio Wilmut fosse muito bem instruído sobre o que falar. E, embora se diga que os lucros ficaram só nas mãos da PPL, isto não é verdade. Wilmut está com a agenda cheia até o final do ano e suas conferências estão custando entre 150 mil e 200 mil dólares...

Enfim, os cientistas, hoje, não são mais aqueles românticos de an­tigamente. Estão ligados a grandes grupos econômicos. Lógico que um pesquisador pode fazer a experiência que bem entender. Mas isso não significa que suas pesquisas vão vingar como um produto tecnológico. Aquela pesquisa só vai frutificar se contar com investimento e se trans­formar em produto".

O Dr. Sílvio Valle considera os prognósticos:

"Wilmut diz que, se tentasse fazer o mesmo para a criação de um clone humano, as dificuldades seriam "abismalmente grandes". Embora revistas de grande circulação tenham dito que a receita da clonagem é "assustadoramente simples", a coisa não é bem assim.

- As dificuldades a que ele se referiu não incluem só a espécie humana, mas qualquer outra espécie. Os momentos para se fazer a cole­ta de um óvulo, por exemplo, variam. Os meios são diferentes, as situa­ções também. A receita não é simples assim. O que existe é muito traba­lho - comenta o Dr. Valle... Ainda que fosse possível se clonar amanhã uma pessoa com a mesma receita utilizada no caso Dolly, é bom lembrar que nem por isso deveríamos temer que cópias nossas saíssem perambulando por aí. Longe disso. A própria natureza faz clones, lembra o Dr. Valle: são os gêmeos univítelinos. Mas, mesmo aqueles criados na mesma casa, pelas mesmas pessoas, com a mesma alimentação e edu­cação, apresentam temperamentos e inclinações distintos, como qual­quer mãe está cansada de saber.

Ora: um bebê nascido de uma célula retirada de um adulto seria como um gêmeo. Mas as diferenças entre eles seriam ainda maiores. As influências do meio ambiente são enormes. E até do ponto de vista bioló­gico, já que durante o desenvolvimento de dois gêmeos idênticos podem ocorrer mutações em um e não em outro. Com Dolly, algumas revistas criaram um ambiente de filme de terror e misturaram afirmações que con­fundem a cabeça dos leigos".

As notícias e ponderações emitidas pelo Dr. Silvio Valle merecem atenção, pois se verifica que em nossos dias os interesses comerciais movimentam sub-repticiamente muitas iniciativas aparentemente inócu­as ou isentas de comercialização.

Como se vê, a clonagem humana merece ser reprovada da parte não só da fé, mas também da parte dos pensadores que não se deixam levar por inversão de valores, mas reconhecem que a ciência está a ser­viço do homem e não o homem a serviço da ciência.


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