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segunda-feira, 19 de março de 2007

Bioética: a manipulação da vida e seus limites éticos

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 418/1997)


O Dr. Hélio Begliomini, radicado na cidade de São Paulo, é profissi­onal vinculado a diversas Sociedades de Medicina nacionais e internacionais. Escreveu um artigo-resposta a um colega a respeito da lei natural e dos limites que ela impõe à pesquisa científica. Ciência sem consciência é arma que se pode voltar contra o próprio autor da pesquisa científica. O Dr. Begliomini lembra esta verdade, reafirmando a realidade objetiva da lei natural, que não é ficção criada pelos filósofos, mas decorre da própria índole racional ou inteligente do ser humano.

O artigo tem, entre outros, o mérito de apresentar um cientista médi­co professando uma concepção filosófica mais elevada e construtiva do que a concepção meramente pragmática e utilitária; considera o ser hu­mano no que ele tem de transcendental, não sujeito à manipulação que a técnica moderna impõe ao gado e aos irracionais em geral. Seja aqui re­gistrada a gratidão da Redação de PR a mais esta colaboração do Dr. Hélio Begliomini.

LIMITES ÉTICOS DA INTERVENÇÃO SOBRE O SER HUMANO

Recentemente foi publicado no jornal do CREMESP[1] (setembro/ outubro-1996, página 16) o artigo "Limites éticos da intervenção sobre o ser humano" do Dr. Marco Segre, conhecido por sua militância na área da deontologia médica e bioética.

Contrariamente aquilo que o título do artigo pretende seguir, o autor leva a entender que não existem limites éticos da intervenção sobre o ser humano. Aliás, conclui afirmando que "a ciência sempre será a-ética". "A sua eticidade estará no uso que dela se quiser fazer". Tal citação poderá até ter um sentido relativo, mas é insustentável do ponto de vista filosófi­co. O Dr. Marco Segre cita alguns exemplos de pretensa mudança da lei natural, como seria a concepção do geocentrismo de Ptolomeu, que ce­deu à concepção heliocêntrica de Galileu, como também cita o fato de que antigamente a expectativa de duração da vida humana não ultrapas­sava a casa dos trinta anos, ao passo que em nossos dias vai além dos setenta anos de idade. Tais exemplos, na verdade, nada têm que ver com a lei natural. Esta, no plano da Ética, é a que decorre do fato de ser o ho­mem um vivente racional - o que nada tem a ver com os sistemas cosmo­lógicos nem com as expectativas de longevidade.

A lei natural tem sua fonte na Sabedoria (Ciência) imanente à pró­pria natureza humana. Não sofre alterações a não ser que lhas impinjam. Segue seu curso desde tempos imemoriais. No contexto, melhor seria citar as leis que regem a transmissão da vida mediante a união dos gametas do homem e da mulher.

A produção do ser humano em laboratório por manipulação genéti­ca, sua clonagem e sua extinção tornam-se uma violação de lei natural. Outrossim, apresenta-se como antinatural e insensato que um casal ho­mossexual feminino faça um filho, tomando-se um oócito de uma das mulheres, para fecundá-lo artificialmente e implantar os pré-embriões no útero de outra, como pretende o autor. Considerando apenas o aspecto biológico, tal assertiva é aberrante. Se se tiver uma mentalidade mais abrangente, holística, e se levarem em conta os aspectos educacionais, psicológicos e sociais, ver-se-á que tais considerações são insustentáveis frente a uma salutar concepção do homem e da vida. Aliás, idéias como estas, aparentemente modernas e de vanguarda, famigeradamente divul­gadas pelos meios de comunicação, contribuem para chafurdar o ser hu­mano. Lançam-no ao tempo de sua pré-história, deteriorando seus usos e costumes no que de melhor o conhecimento lhe proporcionou ao longo dos séculos. Portanto, paira a idéia sutil e sorrateira de que há dois pesos e duas medidas, ou de que o limite ético é o seu não limite na manipulação do ser humano.

Isto fica patente quando o autor cita, como exemplo, os embriões fecundados por reprodução assistida na Inglaterra e fadados ao extermí­nio. São suas palavras: "não vejo qualquer obstáculo à sua destruição, principalmente obedecendo a cláusulas contratuais. O Homem, já capaz de produzir a vida, deve assumir também o ônus de destruí-la, sempre obedecendo aos valores prevalentes da época". Tal afirmação não camu­fla, mas ostenta acintosamente com viva audácia a mais hodierna versão da filosofia neonazista. Propositadamente, coloca "Homem" com maiús­cula para equipará-lo a Deus, ou talvez colocá-lo em lugar de Deus. O homem seria Deus se realmente produzisse a vida, como, aliás, afirma o autor. Contudo, ele (o homem) não produz e não cria a vida; simplesmen­te a manipula e, por vezes, perversamente, respaldado em conceitos que não se sustentam à luz da reta razão. Ademais, os homens não "estruturam democraticamente a idéia do Bem e do Mal, cominando prêmios para os Bons e castigos para os Maus". Tal noção (Bem, Mal) já lhe é plasmada na fecundação pela própria natureza. Faz parte da lei natural. Ele apenas a desenvolve com os matizes da educação e cultura peculiares.

Este arrazoado de idéias confirma que posições diametralmente antagônicas, irreconciliáveis, intangíveis e sofismáveis se têm abrigado sob o teto da Bioética. Mais preocupante ainda, é constatar tais pensa­mentos entre as lides universitárias, opinion-makers, e no próprio Conse­lho Regional de Medicina, que deveria ser o Olimpo da defesa intransi­gente e insopitável da vida em todas as suas fases. Perder este princípio ontológico é perder o próprio senso ético.

Estas considerações não pretendem denegrir a pessoa do autor, que goza de nossa maior consideração e respeito. Entretanto, não refletir sobre suas idéias seria não somente trair a nossa consciência, mas, tam­bém, prestar um desserviço à própria noção da Bioética.

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NOTA:

[1] Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo.

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