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terça-feira, 27 de março de 2007

Ciência e Fé: o homem é descendente do macaco?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 419/1997)


Em síntese: O ser humano é um composto de corpo material e alma espiritual. A alma, não sendo matéria, não veio (nem vem) da matéria preexistente posta em evolução. O corpo, sendo material, pode ter origem na matéria viva preexistente, não, porém, na matéria dos macacos atuais (orangotango, chimpanzé, gorila), pois estes são especializados ao extre­mo. O corpo humano pode ter origem num tronco primitivo, dito "primata", do qual terão procedido os macacos e o corpo organizado ao qual Deus infundiu a alma espiritual, dando início ao primeiro ser humano; desta maneira se pode aceitar a hipótese evolucionista; o corpo humano seria primo dos macacos modernos, mas o homem, como tal, seria de uma dignidade muito superior, porque animado por uma alma espiritual. Esta doutrina é reconhecida pela Igreja, em nome da qual têm falado Pio XII e João Paulo II. 0 darwinismo foi condenado no século passado, porque admitia uma evolução mecanicista, devida simplesmente à luta pela vida. A S. Escritura não se opõe a quanto está dito, porque não tenciona ensi­nar ciências naturais; a imagem do Deus-Oleiro era muito freqüente na antigüidade.

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Pergunta-se em linguagem popular se, afinal de contas, o homem descende do macaco ou é primo do macaco. A questão é provocada pe­los freqüentes debates sobre evolução, que deixam o público inseguro, visto que não raro faltam claras noções filosóficas. Eis por que passamos a considerar o assunto.

1. HOMEM: COMPOSTO DE CORPO E ALMA

Não se pode responder adequadamente à pergunta se não se ob­serva a distinção entre os dois componentes do ser humano, que são o corpo e a alma. Na verdade, o homem não é um bloco monolítico, mas a unidade do homem provém de que os seus dois componentes (corpo material e alma espiritual) se unem entre si como matéria e forma no sentido aristotélico-tomista. A alma é o princípio vital que vivifica a maté­ria, e faz que o cálcio, o ferro, o magnésio, o potássio e os demais ele­mentos químicos do organismo humano funcionem não isoladamente, mas como integrantes de um conjunto harmonioso e unitário, que se cha­ma "o ser humano".

Visto que o corpo é matéria e a alma é espírito, cada qual destes dois componentes tem sua origem própria.

1.1. Origem da Alma Humana

Sendo espiritual, a alma humana não provém da matéria em evolu­ção, pois o espírito não é éter nem gás nem energia elétrica, mas é um ser totalmente incorpóreo (não redutível a números ou não "materma­tizável"), dotado de inteligência e vontade. Por conseguinte, a alma hu­mana é criada diretamente por Deus e infundida ao óvulo fecundado pelo espermatozóide, dando assim origem a um embrião ou um novo ser hu­mano. Até nossos dias a alma humana é criada diretamente por Deus todas as vezes que se dá a fecundação de um óvulo.

1.2. Origem do Corpo Humano

Se o corpo humano é matéria, nada impede que se admita a origem do mesmo a partir da matéria viva preexistente. Assim falando, o filósofo não professa necessariamente o evolucionismo ou o fato da evolução, mas professa a legitimidade ou racionalidade (a possibilidade lógica) da evolução da matéria viva. Toca à ciência, mediante suas pesquisas paleontológicas, precisar a resposta, afirmando ou não o fato e, eventual­mente, as modalidades da evolução.

Dado, porém, que o corpo humano venha da matéria viva preexistente, não se pode dizer que vem ou procede do macaco tal como hoje o conhe­cemos (orangotango, chimpanzé, gorila), pois este tipo de viventes está de tal modo especializado que não evolui mais[1]. O corpo humano viria então de um tronco mais primitivo dito "o primata", do qual teriam procedi­do os macacos mais aperfeiçoados e o corpo organizado, apto a ser sede da vida humana. A este corpo organizado o Criador terá infundido a alma humana, especialmente criada para tal corpo, dando assim origem a um vivente especificamente diverso dos macacos, pois dotado de alma (prin­cípio vital) espiritual, à diferença dos macacos, cujo princípio vital (alma vegetativa e sensitiva) é material; há, pois, o salto da vida do macaco para a vida do ser humano; o princípio vital do primata terá desaparecido quan­do Deus lhe terá infundido a alma humana. Desta maneira há de ser enten­dida a expressão "o homem é primo do macaco", não descendente do ma­caco; note-se bem, aliás, que não se trata do homem como tal, mas apenas do corpo humano, sendo ainda que tal corpo animado por uma alma espiri­tual pertence a uma categoria de viventes muito superior à dos macacos.

2. O PENSAMENTO DA IGREJA

A doutrina atrás exposta está contida nos ensinamentos da Igreja. A propósito pronunciou-se o Papa Pio XII em sua encíclica Humani Generis datada de 12/08/1950:

“O Magistério da Igreja não proíbe que, em conformidade com o atu­al estado das ciências e da teologia, seja objeto de pesquisas e de dis­cussões, por parte dos competentes em ambos os campos, a doutrina do evolucionismo, enquanto ela investiga a origem do corpo humano, que proviria de matéria orgânica preexistente (a fé católica nos obriga a pro­fessar que as almas são criadas imediatamente por Deus). Isto, porém, deve ser feito de tal maneira que as razões das duas opiniões, isto é, da que é favorável e da que é contrária ao evolucionismo, sejam ponderadas e julgadas com a necessária seriedade, moderação, justa medida e contanto que todos estejam dispostos a se sujeitarem ao juízo da Igreja, à qual Cristo confiou o ofício de interpretar autenticamente a S. Escritura e de defender os dogmas da fé. Alguns, porém, ultrapassam temeraria­mente esta liberdade de discussão, procedendo como se estivesse já de­monstrado com certeza plena que o corpo humano se tenha originado de matéria orgânica preexistente, argumentando com certos indícios encon­trados até agora e com raciocínios baseados sobre tais indícios; e isto como se nas fontes da Revelação não existisse nada que exija neste as­sunto a maior moderação e cautela.”

O S. Padre João Paulo II em mensagem dirigida à Pontifícia Acade­mia das Ciências, datada de 22/10/1996, escrevia:

“Pio XII sublinhou este ponto essencial: se o corpo humano tem a sua origem da matéria viva que lhe preexiste, a alma espiritual é imediata­mente criada por Deus (‘anima enim a Deo immediate creari catholica lides nos retinere iubet’, Enc. Humani generis, AAS 42 [1950], pág. 575).

Como conseqüência, as teorias da evolução que, em função das filo­sofias que as inspiram, consideram o espírito como emergente das forças da matéria viva ou como um simples epifenômeno desta matéria, são in­compatíveis com a verdade sobre o homem. Elas são por outro lado inca­pazes de fundar a dignidade da pessoa.

Com o homem, encontramo-nos então diante duma diferença de or­dem ontológica, diante dum salto ontológico, poder-se-ia dizer. Mas supor uma tal descontinuidade ontológica, não é ir ao encontro desta continui­dade física que parece ser como o fio condutor das pesquisas sobre a evolução, e isto a partir do plano da física e da química? A consideração do método utilizado nas diversas ordens do saber permite harmonizar dois pontos de vista, que pareceriam inconciliáveis. As ciências da observa­ção descrevem e medem, de modo cada vez mais

preciso, as múltiplas manifestações da vida e inscrevem-nas na linha do tempo. O momento da passagem para o espiritual não é objeto duma observação deste tipo, que não pode nem sequer manifestar, a nível experimental, uma série de si­nais muito preciosos da especificidade do ser humano. Mas a experiência do saber metafísico, da consciência de si e da sua reflexividade, a da consciência moral, a da liberdade, ou ainda a experiência estética e reli­giosa, são da competência da análise e da reflexão filosófica, ainda que a teologia esclareça o seu sentido último segundo os desígnios do Criador”.

Como se vê, o Papa João Paulo II retoma e abona a posição de Pio XII, levando-a um pouco mais adiante, pois afirma que "a teoria da evolu­ção é mais do que uma hipótese"; visto o grande número de dados empíricos (fósseis, testemunhos da Genética e da Biologia), o Papa ad­mite a grande probabilidade da evolução. Esta atitude de João Paulo II (que, como se vê, não canonizou nem dogmatizou a evolução) causou espécie ao grande público; pelo quê exige elucidação:

1) ao se pronunciar de tal maneira, João Paulo II não falou como Mestre da fé nem tencionou formular um dogma, mas, como estudioso e em seu nome pessoal, diz aceitar a verossimilhança da teoria evolucionista. Se algum fiel católico não concorda com tal teoria, não está ferindo o Credo; tenha a liberdade de pensar como queira;

2) a Igreja combateu o evolucionismo proposto por Charles Darwin de modo que, ao aceitar hoje a teoria da evolução, parece cair em contra­dição.... A contradição é apenas aparente: a Igreja opôs-se ao darwinis­mo por ser uma doutrina mecanicista, ateleológica; afirma a evolução na base da "luta pela vida (struggle for life)": as espécies mais fortes terão subsistido nesse embate, ao passo que as mais fracas terão perecido. Ora tal teoria contrariava os dados da fé; esta admite um Deus Criador Providente, que concebeu o universo e o ser humano segundo a sua sa­bedoria ou segundo modelos e metas a realizar. Com o decorrer do tem­po, porém, o primeiro impacto causado pelo darwinismo foi-se amainan­do...; os teólogos abriram os olhos para os dados cada vez mais eviden­tes da evolução e perceberam que poderiam distinguir entre os elemen­tos empíricos e a interpretação filosófica materialista que Darwin lhes dava; assumiram os resultados da paleontologia, e os interpretaram em chave finalista, ou seja, à luz da Providência Divina, que tem seu plano a respei­to do mundo e do homem; se a evolução ocorreu (diga-o a ciência, defi­nindo tanto o fato quanto as modalidades do mesmo), ocorreu segundo intenções predefinidas pelo Criador, e não ao acaso nem por efeito da força bruta. O que a Igreja rejeitou, e rejeita, no darwinismo, é a sua pers­pectiva materialista, que dispensa a Sabedoria Divina. A evolução torna-­se assim aceitável... aceitável na proporção dos argumentos concretos, de ordem experimental, que a possam fundamentar. Dizemos aceitável (podendo ser aceita), e não "definida como dogma de fé".

O que a Igreja propõe como absolutamente certo no tocante à ori­gem do mundo e do homem, são dois pontos básicos:

a) Criação da matéria inicial, em sua forma primitiva, como os cien­tistas a concebem ao falar do big bang ou de teorias semelhantes. A matéria não é eterna, mas criada por Deus. - Este lhe poderá ter dado as leis da sua evolução, que a foram organizando ou complexificando atra­vés dos reinos mineral, vegetal e animal irracional.

b) Quando a matéria atingiu o grau de evolução correspondente ao do organismo humano, o Senhor Deus terá criado a alma espiritual para esse organismo, dando origem ao ser humano.

A concepção católica, portanto, inspirada pela sã razão e pela fé, exige dois atos criadores de Deus: o primeiro para dar origem à matéria primitiva, donde terá procedido a evolução; e o segundo, para dar origem ao espírito, ou seja, as almas[2] dos primeiros seres humanos e dos seus descendentes.

Levanta-se, porém, uma dúvida:

3. E A PALAVRA DA BÍBLIA?

Em Gn 2,7 está dito que Deus formou o corpo do homem a partir do barro - o que parece excluir o conceito de evolução.

A propósito, porém, deve-se observar:

1) a S. Escritura não foi redigida para ensinar ao homem ciências naturais. Ela tem em vista expor ao homem o sentido e o valor das criatu­ras que as ciências exploram e descrevem. Esta verdade tornou-se evi­dente em conseqüência do caso Galileu (séc. XVII), de modo que ne­nhum exegeta a põe em dúvida nos nossos dias.

2) A imagem do Deus-Oleiro era muito freqüente na antigüidade pré­-cristã, visto que, para um povo primitivo, o oleiro é um "pequeno Deus". Com efeito; a população depende dele para obter seus jarros, pratos e tigelas; ademais trabalha com agilidade e presteza que o tornam figura venerável. É o que atesta o exegeta G. Lambert, no artigo L'Encyclique Humani Generis et I'Ecriture Sainte, em Nouvelle Revue Théologique 73 (1951) 234:

"Não se pode perder de vista a importância da cerâmica nas civiliza­ções antigas e primitivas e quanto a profissão do oleiro estava espalhada.

Para o homem que então procurava explicação para a sua origem pró­pria, a hipótese do Oleiro Divino era algo de óbvio, como parece...

Numa viagem às terras bíblicas, o autor destas linhas visitou um olei­ro de Naplous. Em homenagem aos seus visitantes, o velho artesão fabri­cou sucessivamente, em um nada de tempo, uma lamparina com três bo­cas, um gracioso jarro de quinze centímetros de altura, um pote para o leite, um jarro grande e dilatado, de aproximadamente cinqüenta centíme­tros de altura. Não tinha instrumento a não ser seus olhos, o polegar e o dedo indicador- não tinha compasso a não ser os seus olhos. Sobre o seu tomo, que ele impulsionava com o pé, todos estes objetos surgiam de repente entre os seus dedos criadores, a seu bel-prazer e segundo a sua fantasia. Com maravilhosa facilidade e surpreendente rapidez. Então foi­-nos dado compreender porque nas Escrituras o oleiro e sua obra servem de imagem da obra do Criador. Tal imagem evoca perfeitamente a sobera­na liberdade de Deus, seu maravilhoso poder criador, seu domínio

abso­luto sobre a obra de suas mãos, a total dependência da criatura que so­mos nós frente ao nosso Criador, assim como a bondade e a misericórdia de Deus para com a nossa fragilidade.

O tema antigo e popular do Deus-oleiro poderá parecer infantil e sim­plório tão somente àqueles que não se derem ao trabalho de procurar conhecer a mentalidade segundo a qual tal explicação nos é proposta pelo Divino Autor das Escrituras".

Eis alguns exemplos de quanto era propagada a imagem do Deus-­oleiro na antigüidade, especialmente entre os assírios e babilônios, os egípcios, os autores gregos e latinos, assim como nas tradições de al­guns povos ditos primitivos:

Assim na epopéia babilônica de Gilgamesch conta-se que, para criar Enkidu, a deusa Aruru "plasmou argila". Na lenda assiro-babilônica de Ea e Atar-hasis, a deusa Miami, intencionando criar sete homens e sete mu­lheres, fez quatorze blocos de argila, dos quais suas auxiliares plasma­ram quatorze corpos; a deusa rematou-os, imprimindo-lhes traços de in­divíduos humanos e configurando-os à sua própria imagem.

No Egito um baixo-relevo em Deir-el-Bahari e outro em Luxor apre­sentam o deus Cnum modelando sobre a sua roda de oleiro os corpos respectivamente da rainha Hatshepsout e do Faraó Amenofis III; as deu­sas colocavam sob o nariz de tais bonecos o sinal hieroglífico da vida - , para que a respirassem e se tornassem seres vivos. Notícias devidas a G. Lambert, L'Encyclique «Humani Generis. et l'Écriture Sainte, em Nou­velle Revue Théologique 73 (1951) 233ss.

Entre os Maoris da Nova Zelândia conta-se o seguinte episódio:

Um certo deus, conhecido pelos nomes de Tu, Tiki e Tané, tomou argila vermelha à margem de um rio, plasmou-a misturando-lhe o seu próprio sangue, e dela fez uma cópia exata da divindade; depois de a terminar, animou-a soprando-lhe na boca e nas narinas; ela então nasceu para a vida, e espirrou. O homem plasmado pelo criador Maori parecia-se tanto com este que mereceu por ele ser chamado Tiki-Ahua, isto é, ima­gem de Tiki.

Quando o escritor sagrado em Gn 2,7 recorre à imagem do Oleiro, não quer significar senão que há uma analogia entre o oleiro e Deus no modo de tratar seu artefato: como o oleiro é sábio, providente, carinhoso, soberano... em relação ao barro, assim Deus é (infinitamente mais) sábio, providente, carinhoso, soberano em relação ao homem, independente­mente do modo como tenham vindo à existência o homem e a mulher.

Assim se verifica que o texto bíblico não faz obstáculo às concep­ções modernas relativas à origem do ser humano.

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NOTAS:

[1] A evolução não é um processo indefinido; ela chega ao seu clímax; após o quê, declina. E o que se dá, por exemplo, com os chifres dos animais irracionais: até certo ponto, são instrumento valioso de defesa; quando, porém, excedem determinadas dimensões, tomam-se trambolho mortífero. Algo de semelhante ocorre com a cauda: até certo tamanho é útil; ultrapassadas essas dimensões, vem a ser um peso morto.

[2] A alma humana é espírito ou espiritual. Todavia devemos notar que o conceito de espírito é mais amplo do que o de alma. Espírito é, sim, um ser incorpóreo dotado de inteligência e vontade. Ora Deus é espírito não criado. O anjo é espírito criado para existir sem corpo. A alma humana é espírito criado para se aperfeiçoar no corpo.

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