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quinta-feira, 7 de junho de 2007

Igreja, críticas: santidade e pecado na Igreja

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 072/1963)


«A existência do pecado na Igreja desconcerta a mui­tos. Preferem afirmar que a Igreja de Cristo é algo de invisível, subsistindo apenas nas almas que professam com lealdade a fé em Jesus Cristo, independentemente de alguma organização eclesiástica característica.

Que dizer a tal propósito?»

«Pode-se dizer que a Igreja faz penitência ou deve fazer penitência?»

Não há dúvida, uma das maiores dificuldades que o homem moderno experimenta para abraçar o Cristianismo, consiste em aceitar a face externa ou visível da Igreja de Cristo. No seu íntimo, muitos perguntam: poderia o Cristo santo estar numa sociedade em que não há somente santos? Não seria a Igreja de Cristo a união invisível de todos aqueles que, em sua consciên­cia, aderem com sinceridade a Cristo, independentemente de al­guma caracterização extrínseca ou sensível?

Principalmente em nossos dias, quando tanto se pensa na união entre os cristãos, indaga-se se a Igreja de Cristo coincide realmente com alguma sociedade juridicamente constituída e assim diferenciada de outras sociedades. Interroga-se também se a Igreja como tal não deve­ria fazer penitência por faltas cometidas no passado, dando ocasião à separação entre irmãos.

Eis o que vamos abordar, analisando sucessivamente as relações vigentes entre a Igreja e o mistério da Encarnação, entre a Igreja e o pecado; por fim,... entre os ministros da Igreja e a santidade.

1. Igreja e mistério da Encarnação

O genuíno conceito que o cristão tem de «Igreja» não pode­ria ser senão aquele mesmo que domina toda a teologia de São Paulo: o de «Corpo de Cristo», Corpo de Cristo que se pro­longa misticamente (ou misteriosamente) através dos séculos.

Como bem observa L. Bouyer, «para São Paulo a expressão 'Corpo de Cristo' não é... mera definição metafórica da Igreja. É, antes, a ex­pressão da identidade mística existente entre o Cristo, que morreu na Cruz, e a reconciliação de todos os homens com Deus, na Igreja» (La Bible et l'Évangile. Paris 1958, 182).

Merecem consideração também as palavras de L. Cerfaux:

«Verificamos a importância que cabe ao conceito de 'Corpo de Cristo' na síntese paulina... O Corpo de Cristo é o 'ambiente' em que se realiza a nossa santificação e em que tomamos contato com Ele (Cristo) pelo Batismo e a Eucaristia, a fim de usufruirmos dos efeitos da salvação. Doutro lado, a Igreja também é um elemento essencial no pensamento de São Paulo; Ela constitui, do seu modo, o lugar em que nascem os cristãos pelo Batismo e em que a comunidade participa do Corpo de Cristo..., o lugar em que a vida de Cristo atinge os homens. Os dois temas teológicos são tais que eles se encontram e se fundem entre si» (Le Christ dans Ia théologie de S. Paul. Paris 1951, 264).

Por sua vez, o magistério contemporâneo da Igreja lembra que a mais adequada qualificação da Igreja é a de «Corpo de Cristo». Te­nham-se em vista as palavras de Pio XII:

«Para definir e descrever a verdadeira Igreja de Cristo.. ., nada há de mais nobre nem mais excelente, nem mais divino do que o conceito expresso pela denominação 'Corpo Místico de Jesus Cristo', conceito que imediatamente resulta de quanto nas Sagradas Letras e nos escri­tos dos Santos Padres freqüentemente se ensina» (enc. «Mystici Corporis Christi»).

Numa frase concisa Bossuet resumia estas idéias: «L'Église, c'est Jésus-Christ répandu et communiqué. - A Igreja é Jesus Cristo pro­longado e comunicado».

Estabelecido tal princípio, examinemos as relações vigentes entre

2. A Igreja e o pecado

1. Se a Igreja é o Corpo de Cristo prolongado, compreen­de-se que, como o próprio Jesus Cristo, Ela tenha também dois aspectos: um, exterior, visível, humano: o outro, interior, invisí­vel, divino. Enquanto o primeiro é sujeito a vicissitudes, o se­gundo é intangível e indefectível.

Assim como Jesus tinha uma identidade humana ou, se quisermos, uma «carteira de identidade» que O apresentava ao mundo como Jesus de Nazaré, «o filho do carpinteiro» (cf. Mt 13, 56-58), assim também a Igreja de Cristo tem uma «carteira de identidade»: é a Igreja de Jesus que tem sua sede primacial em Roma,... por isto «Igreja Católica Apos­tólica Romana»; Ela tem, consequentemente, um modo de se apresen­tar derivado dos costumes não da humanidade considerada em termos abstratos mas da humanidade como ela vive em Roma, em tais e tais épocas sucessivas; não se deixa, porém, alterar interiormente por esses quadros ou essas facetas que o regime da «Encarnação» lhe vai comu­nicando. Note-se mesmo que a face humana da Igreja pode, por vezes, desconcertar quem a observa, não correspondendo às expectativas de pessoas sábias e piedosas, ou até escandalizando...

O próprio Jesus, de resto, previa que suas atitudes seriam possível ocasião de escândalos, por parecer demasiado sujeitas à fraqueza humana. Foi o que se deu, sim, quando O intimaram a descer da cruz a fim de salvar-se da morte, depois de ter salvo a tantos enfermos. O Senhor então não se moveu, mas quis pa­decer até o fim, desatinando a muitos. Por isto respondia a São João Batista, que lhe mandara perguntar se era o verda­deiro Messias

«Ide relatar a João o que vedes e ouvis: cegos recobram a vista e coxos andam; leprosos são curados e surdos ouvem; mortos ressus­citam e a Boa-Nova é anunciada aos pobres. Mas bem-aventurado aquele que não se escandalizar a meu respeito»! (Mt 11, 4-6).

Ulteriores considerações sobre este assunto se encontram em «P. R.» 39/1961, qu. 2. O que interessa aqui salientar, é que o Senhor Deus houve por bem salvar o gênero humano, comu­nicando-lhe bens espirituais e eternos justamente por meio da carne, ... da carne que Jesus Cristo uniu à sua natureza divina aqui na terra e... da carne que constitui a face humana visível do «Corpo de Cristo que é a Igreja» (Col 1, 24). Asseverava muito bem o escritor cristão Tertuliano no séc. III, tendo em vista os docetas ou os que professavam carne meramente apa­rente ou não genuína em Cristo: «Caro salutis cardo. - (A carne é o cerne da salvação)» (De carnis resurrectione 8).

Sem dúvida, a figura do Verbo Encarnado ou o mistério da comunicação de Deus; aos homens por meio da carne e de outros sinais sensíveis através dos séculos ocupa lugar central na men­sagem cristã. Jamais se poderia conceber um Cristianismo que prescindisse de tal via e propusesse um sistema de santificação meramente invisível, interior, independente de adesão a uma comunidade humana, independente do uso de elementos mate­riais (como a água, o pão, o vinho, o óleo..) como elementos de santificação (sacramentos).

Estas afirmações, entre outras muitas conseqüências, acar­retam a seguinte, que é de importância capital: na verdadeira Igreja de Cristo (que é, por seu aspecto interior, a Esposa de Cristo sem mancha nem ruga; cf. Ef 5,27), pode haver, e há, homens pecadores, colocados até em altos postos da hierarquia, ministros portadores de funções relevantes. Estes exercem validamente o ministério) contanto que estejam devidamente consti­tuídos no seu lugar e tenham a intenção de fazer o que Cristo fazia, como mais adiante explicitamente se dirá.

2. Estes princípios sugerem agora oportuna observação por mais necessária que seja a participação do humano na Igreja e na obra de Cristo, essa face humana de modo nenhum define a Igreja toda; os elementos exteriores, visíveis não exprimem por inteiro o conteúdo da Igreja.

Em outros termos diríamos: a Igreja de Cristo não é apenas a soma de seus membros, mas no seu íntimo há uma realidade transcendente, divina, que é de todo infalível e garante a eficácia das ações que a Igreja realiza quando intenciona comunicar aos homens os tesouros da Redenção que Jesus Cristo Lhe confiou.

Vem a propósito recordar as imagens com que a Sagrada Escritura e os antigos escritores cristãos procuravam ilustrar o mistério da Igreja: todas dão a entender que a Igreja não é mera justaposição de indivíduos, não é mero agrupamento de fiéis, mas é algo mais; por conseguinte, Ela não vale apenas o que os seus membros (santos ou não santos) valem.

De fato, a Escritura diz que a Igreja é Corpo (cf. 1 Cor 12). Ora num corpo se encontram elementos químicos, como o cálcio, o ferro, o hidrogênio, o oxigênio, etc., mas nenhum desses elementos reage sim­plesmente como tal; as suas reações são, pelo respectivo princípio vital, elevadas a um plano superior, ou seja, ao plano das reações vitais.

A Bíblia Sagrada compara outrossim a Igreja a uma árvore (vi­deira, pé de mostarda; cf. Jo 15, 1-8; Mt 13, 31s). Ora uma árvore é certamente algo mais do que o total quantitativo de seu tronco e seus ramos,... algo mais do que peças de lenho talhado reunidas em acervo.

Outra imagem bíblica é a do templo... Um templo não se define apenas pelas pedras que o compõem. O que faz precisamente que essas pedras constituam um templo, é o que elas não tem por si, mas o que a inteligência do arquiteto lhes incutiu, ou seja, a ordem e o relacio­namento mútuos em que se acham colocadas.

São Pedro (1 Pdr 3, 20s) e a Tradição cristã insinuam que a Igreja também é como uma nau. - Uma nau consta de peças de madeira, de ferro, de cordame, etc.; cada uma dessas peças considerada em si talvez seja mais pesada do que a água; isolada, afundaria; todavia não se poderia concluir que a nave, constituída por tais peças, também afunde; a nave é outra coisa que não simplesmente o conjunto de tais elemen­tos; a sua qualidade de nave lhe vem de um fator transcendente, ou seja, da inteligência do construtor que concebeu a ordem na qual se deviam dispor as diversas partes do conjunto a fim de flutuar com segurança.

3. Destas idéias se depreende que todo pecado cometido por algum membro da Igreja constitui uma traição à Igreja. Não somente a Igreja não o endossa (não é responsável por ele), mas Ela o aponta (sem, por isto, odiar ou condenar a pessoa do seu filho pecador) e procura dar-lhe o antídoto ou o remédio oportuno.

Por conseguinte, dizer que a Igreja não tem pecado significa que a Igreja jamais consente no pecado que seus filhos cometem. Estes podem, sim, praticar o mal, porque Deus os criou livres e não lhes tira a liberdade quando se trata de tomar atitudes na vida. Quando, porém, escolhem o mal, fazem-no não por obediên­cia, mas por desobediência à Santa Mãe Igreja.

O famoso teólogo Mons. Charles Journet, analisando esses fatos, assevera que as fronteiras da Igreja passam não propriamente pelos confins das regiões cristãs com as terras não cristãs, mas, sim, pelo íntimo de cada católico: em cada um dos membros da Igreja há, por assim dizer, uma zona evangelizada e uma zona ainda não evangelizada, ainda pagã, dependente do velho homem e de suas concupiscências des­regradas. Ora essa zona em que o pecado continua instalado, não per­tence à Igreja formalmente considerada como «Esposa de Cristo sem mancha nem ruga». Acrescenta Journet

«Os cristãos imperfeitos e tal é a imensa maioria, pois os perfei­tos são raros - estão parcialmente apenas identificados com Cristo; somente em parte vive neles o Cristo; somente em parte constituem o corpo de Cristo. Em algumas ocasiões, eles se norteiam pela ordem da caridade, como membros da Igreja, in persona Ecclesiae; em outras ocasiões, inspiram-se da desordem do pecado, como pecadores, in persona propria peccatoris. No primeiro caso, a sua conduta tem como primeiro princípio o Espírito Santo, personalidade suprema e hóspede supremo da Igreja; no segundo caso, a falha tem por causa adequada não o próprio Deus, mas o livre arbítrio» (L'Église du Verbe Incarné II. 1951, pág. 905, n. 1).

Pode-se, por conseguinte, dizer com Pascal que Cristo padece em seus membros até o fim dos tempos; e, já que o pade­cimento é uma conseqüência do pecado, Cristo até o fim da histó­ria estará carregando as conseqüências do pecado em seus mem­bros. Contudo não se poderia dizer que Ele esteja pecando em seus membros; o pecado se deve unicamente ao abuso que a cria­tura livremente faz dos dons de Cristo.

A propósito note-se: no séc. XV, o teólogo Agostinho de Roma en­sinou que «Cristo peca todos os dias e sempre pecou em seus membros». Ora em sua 22ª. sessão o Concílio de Basiléia declarou tal sentença escandalosa, errônea na fé e ofensiva à piedade», embora o respectivo autor tivesse afirmado que se referia não «Àquele que é Cabeça da Igreja, o Cristo Jesus nosso Salvador, mas aos seus membros, que, en­quanto permanecem unidos a Cristo Cabeça, são com Ele um só Cristo». Os padres conciliares acrescentavam que «não intencionavam condenar a pessoa de Agostinho de Roma, o qual, devidamente convocado para depor em juízo, justificou sua ausência e, em outros escritos, submeteu a sua doutrina à apreciação da Igreja» (Cf. Mansi, Sacrorum Concílíorum nova et amplissima collectio XXIX, col. 108-110).

Pouco depois, a pedido dos Padres de Basiléia, o Cardeal João de Turrecremata examinou mais uma vez a controvertida sentença de Agostinho de Roma. Declarou-a, sim, suscetível de interpretação orto­doxa; lembrou outrossim que alguns autores antigos, tendo em vista a união mística de Cristo com seus membros, atribuíam ao próprio Senhor os pecados mesmos dos cristãos. Não obstante, Turrecremata concluía que não se poderia admitir a sentença de Agostinho Romano sem retoque algum; seria preciso modificar a sua formulação ou sim­plesmente evitá-la, a fim de evitar todo escândalo (cf. Mansi XXX 993-1006).

4. Dir-se-á: mas em certos textos de S. Liturgia a Igreja parece reconhecer que peca. Considerem-se, por exemplo, as orações:

«Senhor, que purificais a Vossa Igreja pela observância anual da Quaresma... » (coleta do 1° domingo da Quaresma).

«Senhor, elevem-se até Vós as nossas preces, e dignai-Vos afastar da Vossa Igreja toda malícia» (oração sobre o povo da Missa de 3° f. da 11 semana da Quaresma).

«Dai, Senhor, à Vossa Igreja... a graça de não ceder a sentimen­tos de soberba e de crescer em Vós, agradando-Vos pela sua humildade» (oração da Missa dos SS. Vito, Modesta e Crescência, 15 de junho).

À luz de quanto atrás foi dito, como se hão de entender tais textos ?

Duas interpretações se lhes podem dar:

1) ou são preces que a Igreja sem mancha nem ruga dirige a Deus, distinguindo-se de seus filhos, e em favor destes; pedem então purificação em sentido próprio ou extinção da nódoa do pecado;

2) ou são preces que a Igreja dirige a Deus sem se distin­guir de seus filhos. Então não pedem propriamente remissão de pecado; mas, sim, o aumento da caridade que já existe nos cris­tãos e que se pode tornar cada dia mais pura, mais arraigada nessas almas. É reto afirmar que a S. Igreja se purifica quando seus filhos passam da caridade da vida purgativa, para a da vida iluminativa e, finalmente, para a da vida unitiva (cf. S. Tomaz, S. Teol. II/II áa. 24, a. 5).

Parece preferível o primeiro destes dois modos de entender, pois evita certo artifício de interpretação que o outro exige.

Quando os filhos da Igreja pedem perdão e fazem penitên­cia, realizam obra boa. A Igreja a realiza com eles. Chorar os pecados não é pecado; é, antes, um valor positivo, embora seja suscitado por uma miséria anterior. Esse valor positivo é ine­rente aos filhos da Igreja na terra; Ela o endossa e o faz seu.

Em conseqüência destas idéias, parece plausível dizer que os cristãos batizados, postos neste mundo, pertencem simultaneamente a duas ci­dades contrárias: à cidade do demônio e à cidade de Deus... À cidade do demônio, sim, porque pecam: «Quem comete o pecado, é do diabo» (1 Jo 3,8; cf. Jo 8,44); e, na medida em que pecam, concorrem para destruir a obra da Igreja em si mesmos e no mundo... A cidade de Deus (ou à Igreja), porque fazem penitencia; e, na medida em que a fazem, contribuem para restaurar a obra da Igreja em si mesmos e no mundo. É por traição a Cristo e à Igreja que eles pecam, mas é em nome de Cristo e da Igreja que fazem penitencia. Por isto se pode afir­mar que a Igreja, que não peca, faz penitência; é Ela, na verdade, quem faz penitência pelos pecados que seus filhos cometeram contrariando os ensinamentos da Esposa de Cristo; Esta assume, sim, a responsabi­lidade da penitência, não, porém, a do pecado.

À luz das premissas acima, vê-se outrossim quão pouco acertadas são as proclamações (sejam de católicos, sejam de pro­testantes) que, visando promover a união dos cristãos entre si, convidam a Igreja a reconhecer «seus pecados». Quem assim fala, não leva em conta suficiente os dizeres de São Paulo: a Igreja é a Esposa que Cristo purificou com o seu sangue a fim de que estivesse diante d'Ele «gloriosa, sem mancha nem ruga, nem algo de semelhante, mas santa e imaculada» (Ef 5,27); também não considera devidamente que a Igreja é «a casa de Deus, coluna da Verdade» (1 Tim 3,15s).

«Quando a humildade põe em perigo a magnanimidade, ela deixa de ser virtude», observa Ch. Journet, ob. cit. 908.

Tal foi o caso verificado na Assembléia Geral do Conselho Mundial das Igrejas realizada em Evanston (U.S.A.) no ano de 1954. Oradores protestantes então afirmaram que a Igreja havia pecado e o devia reconhecer, a fim de obter de Deus a graça da união de seus filhos. A isto replicaram, com razão, os representantes das comunidades orto­doxas (cismáticos orientais):

«O relatório da secção «União e desunião dos cristãos» sugere que a via que a Igreja deve seguir para restaurar a unidade é a do arrepen­dimento. Reconhecemos que houve e há imperfeições e faltas na vida e no testemunho dos fiéis cristãos; rejeitamos, porém, a idéia de que a própria Igreja, que é o Corpo de Cristo e a depositária da verdade reve­lada..., possa ser atingida pelo pecado do homem. Não podemos, por­tanto, falar de arrependimento da Igreja, que é intrinsecamente santa e isenta de erro. Pois 'Cristo amou a Igreja e se entregou por Ela, a fim de a santificar e lavar na água e na palavra, para que a pudesse apresentar a Si mesmo como Igreja gloriosa, sem mancha nem ruga, nem falha nem algo de semelhante, para que Ela seja pura e sem falta' (Ef 5, 26s) ...

A santidade da Igreja não é viciada pelos pecados e pelas faltas de seus membros; estes não podem de modo algum diminuir ou esgotar a santidade inexaurível da vida divina, que da Cabeça da Igreja se propaga através de todo o Corpo» (texto transcrito de «Documentation Catholique» n° 1184, 17/X/1954, col. 1330-1332).

Os católicos romanos, se estivessem representados em tal certame, não teriam hesitado em dar pleno apoio a tais observações.

Dirá, porém, alguém: no discurso inaugural da segunda fase do Concílio Ecumênico do Vaticano II, aos 29 de setembro de 1963, assim se exprimiu o Papa Paulo VI:

«Dado que se deva admitir alguma culpa em nós pela separação dos cristãos, com humilde prece pedimos perdão a Deus; pedimos per­dão também aos Irmãos, caso julguem ter sido ofendidos por nós. Da nossa parte, estamos prontos a perdoar as injúrias feitas à Igreja Católica...

Si quae culpa ob huiusmodi separationem in nos admittenda sit, veniam humili rogatu a Deo petimus, ab ipsisque Fratribus veniam petimus, si iniuriam a nobis se accepisse putent. Ad nos quod attinet, animo parati sumus ad condonandas iniurias catholicae Ecclesiae illatas ... ».

Note-se contudo: o S. Padre parece ter ponderado bem as suas palavras de modo a não dizer que a Igreja pecou; isto não o impede de reconhecer que nós, os filhos da Igreja (de hoje e de tempos pas­sados), podemos ter pecado (e de fato pecamos) em relação a nossos irmãos e nos devemos penitenciar.

Uma aplicação particular destas idéias se fará no parágrafo abaixo.

3. Ministros da Igreja e santidade

Só há um Mediador entre Deus e os homens: Jesus Cristo (cf. 1 Tim 2,5). Todavia, de acordo com o mistério da Encar­nação, Cristo não quer realizar a sua obra ou o seu sacerdócio senão mediante instrumentos humanos. Por isto é que na sua Igreja Ele instituiu ministros ou sacerdotes (cf. Lc 22, 19; Jo 2a, 22s). Estes são como que as mãos de Cristo que tocam os homens através dos séculos a fim de os «criar de novo» ou os santificar.

Sendo assim, entende-se que é impossível ir a Cristo e ao Pai senão através da Igreja e da hierarquia sacerdotal da Igreja. Os sacerdotes instituídos por Cristo podem apresentar seu as­pecto humano, por vezes pouco atraente. Contudo, desde que tenham sido devidamente instituídos e se achem habilitados pela Igreja, tornam-se instrumentos pelos quais Cristo comu­nica, incontaminada, a sua graça (contanto que tenham a in­tenção de fazer o que Cristo faz como Sacerdote). Tais minis­tros, repitamo-lo, são meros instrumentos, mas instrumentos ne­cessários. Não é nem a pecaminosidade nem a santidade desses ministros que decide do valor de seus atos ministeriais, porque, «quer Pedro batize, quer Judas batize, é sempre Cristo quem batiza através do ministro devidamente instituído», diria S. Agostinho. A graça de Deus será sempre comunicada a quem a procurar nas suas fontes genuínas, isto é, nos sacramentos validamente administrados, independentemente da pessoa do respectivo sacerdote visível.

De resto, aos Apóstolos e aos legítimos sucessores dos Apóstolos até a consumação dos séculos prometeu Cristo a sua assistência infa­lível: «Ide, ensinai a todas as nações, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo... Eis que estou convosco todos os dias até o fim do mundo» (Mt 28, 19s). Donde se depreende que um dos critérios mais seguros para se reconhecer a verdadeira Igreja de Cristo é a continuidade da linha apostólica: somente na linhagem cristã em que a sucessão apostólica se prolonga sem interrupção nem hiato desde Jesus Cristo até nossos dias é que há garantia da indefectível assistência do Senhor e, por conseguinte, garantia de genuinidade cristã. Poderá haver na Igreja de Cristo mudanças...: serão mudanças periféricas, adaptações acidentais às diversas fases da história (pois a Igreja é Corpo vivo, é grão de mostarda; e a lei da vida é «adaptar-se, desenvolver-se, fazer desabrochar sua vitalidade»); mas nunca poderá haver quebra ou troca de estrutura, pois isto significaria corrupção e morte. A Igreja no séc. XX tem que apresentar facetas diferentes das do séc. I (se não, seria múmia ou estátua); Ela tem que dialogar com o mundo que a cerca; assimila e elimina, como toda entidade viva, guar­dando, porém, sempre intacta a sua verdadeira essência.

Estendemo-nos mais difusamente sobre esse assunto em «P. R.» 14/1959, qu. 2.

Conclusão

As considerações propostas de modo nenhum pretendem dispensar os católicos do grave dever de tender zelosamente à perfeição das virtudes ou à santidade. A dignidade de cristão o exige imperiosamente de todos, máxime dos ministros de Deus ou dos sacerdotes. Em igualdade de condições, pode-se dizer que os pecados dos cristãos são mais graves e escandalosos do que análogos pecados cometidos por não-cristãos. Haveria, porém, injustiça, caso alguém quisesse atribuir as falhas dos católicos à própria Igreja de Cristo; Esta, na verdade, longe de ser responsável por tais faltas, é a primeira a reprová-las.

Jacques Maritain ilustra muito bem a distinção entre a igreja - e os filhos da Igreja no texto abaixo

«Os católicos não são o Catolicismo. As faltas, as atitudes lentas, as carências e as sonolências dos católicos não comprometem o Cato­licismo. O Catolicismo não está encarregado de fornecer um álibi (pre­texto) às faltas dos católicos. A melhor apologética não consiste em justificarmos os católicos ou em desculparmos as suas faltas, quando eles tem culpa; mas, ao contrário, consiste em verificar essas faltas e asseverar que não afetam a substância do Catolicismo, só contribuindo para melhor realçar a virtude de uma Religião que está sempre viva apesar deles. A Igreja é um mistério; tem sua Cabeça oculta no céu; seu aspecto visível não a manifesta adequadamente. Se procurais o que a representa sem a atraiçoar, considerai o Papa e o episcopado quando ensinam matérias de fé e de moral; considerai também os san­tos no céu e na terra; não considereis a nós outros pecadores. Ou, antes, considerai como a Igreja vai sanando as nossas chagas e nos vai levan­do trôpegos para a vida eterna... A grande glória da Igreja é a de ser santa com membros pecadores» (Religion et Culture. Paris pág. 60).

Outro autor francês, François Mauriac, escrevia em época recente a um colega seu, o famoso incrédulo André Gide:

«Caro Gide, quanto é cruel a maldade que leva a julgar a árvore católica pelos frutos que somos nós! O teu demônio tem enorme inte­resse em que, até o fim, o Catolicismo não te apareça distinto de Claudel, de Jammes, de mim mesmo, dos convertidos da literatura; tem interesse em que jamais o identifiques com tal e tal pobre sacerdote de subúrbio que se fez pobre entre os pobres e que carrega sobre os om­bros todo o sofrimento dos homens» (Les derniers feuillets de Faust. Figaro, 20/21 de junho de 1948).

A estas afirmativas católicas fazem eco os dizeres de autores pro­testantes contemporâneos, entre os quais figura R. Niebuhr:

«A desordem para a qual o nosso arrependimento nos chama a atenção é menos a desordem da Igreja do que a desordem na Igreja... A Igreja, enquanto é comunidade e Corpo de Cristo, enquanto é povo santo e uno de Deus, enquanto é cidade de Deus no céu e na terra... é a medianeira da graça e não do pecado. A desordem está em nós e não na Igreja...» (Désordre de l'homme... I. L'Église universelle dans le dessein de Dieu. Neuchâtel et Paris 1948, pág. 112s).

Estes textos são suficientemente eloqüentes para por o fecho às ponderações das páginas anteriores: a Igreja está isenta de pecado, embora não esteja isenta de membros pecado­res; como tal, Ela é capaz de santificar todo homem que, sem perscrutar indevidamente a consciência de seus irmãos, com sin­ceridade Lhe presta a sua adesão!

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