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quarta-feira, 6 de junho de 2007

Ciência e Fé: o princípio da causalidade ainda vale?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 072/1963)

«As clássicas provas da existência de Deus se baseiam no princípio de causalidade: todo efeito tem uma causa.

Ora esse princípio está sendo mais e mais controvertido pela filosofia e a ciência modernas.

Por conseguinte, parece que se tornaram vãs as principais vias que até agora pretendiam demonstrar a existência de Deus. Que dizer a isso?»

Começaremos a nossa resposta expondo o que se entende por ‘princípio de causalidade’ e quais as razões que levam a afirmar a sua autenticidade. A seguir, examinaremos as críticas feitas pelos estudiosos modernos a esse princípio.

1. ‘Princípio de causalidade’ que significa?

A fim de poder tratar com seriedade assunto tão filosófico, pedimos ao leitor queira ter a paciência de acompanhar os raciocínios abaixo, sem os quais a resposta não satisfaria, pois ficaria superficial.

1. Causa é um princípio real do qual outro ser depende.

Em particular, causa eficiente (que é justamente a que a nossa questão tem em vista) é um princípio ativo que, com a sua ação, influi na produção ou na mudança de outro ser (= «o efeito»).

O influxo exercido pela causa chama-se causalidade.

O bom senso já por si basta para distinguir entre a noção de causa, e a de sucessão constante. De fato, ninguém afirma que o dia é causa da noite, embora veja que ao dia se sucede sempre a noite. Ao contrário, ninguém hesita em asseverar que um ferimento, observado após uma paulada no lugar atingido por esta, é causado pela paulada; um espirro, porém, ou um bo­cejo registrado em uma terceira pessoa logo após a paulada não é tido como efeito desta, embora seja, sim, sucedâneo ao golpe.

A experiência confirma sobejamente a noção de causali­dade, atestando como esta freqüentemente se exerce na natu­reza

«Os nossos sentidos percebem seres que mudam quando se dão determinados fatos, por exemplo: um quarto que se torna iluminado ao se acender uma lâmpada elétrica; de um lado, o sol que brilha e, de outro, pedras que vão adquirindo um calor que antes não tinham. A in­teligência então - reconhecendo que o quarto não é iluminado por si mesmo, que as pedras não são quentes por si mesmas, senão, sempre o quarto estaria iluminado como o experimentamos ao acender a lâm­pada, sempre as pedras estariam quentes como as experimentamos ao serem atingidas pelos raios solares; e reconhecendo também que nada mais interveio a não ser, para a iluminação do quarto, o acender-se da lâmpada, e, para o aquecimento das pedras, os raios do sol; e, cons­tatando que a iluminação do quarto é sempre proporcionada a intensi­dade da lâmpada, como o calor das pedras a dos raios solares - con­clui: a lâmpada ilumina o quarto; o sol aquece as pedras.

É verdade que na experiência externa os sentidos sozinhos perce­bem e nos referem apenas a sucessão ou a simultaneidade dos dois fatos. Mas a inteligência, ao procurar a razão de ser desta sucessão ou simultaneidade e da realização desta nova entidade que não existia antes (= a iluminação do quarto, o calor das pedras), percebe com evidência e afirma legitimamente o nexo causal, o influxo sem o qual a própria sucessão constante destes fenômenos e as suas variações pro­porcionais não teriam razão de ser suficiente.

Por conseguinte, é nos próprios dados fornecidos pela experiência, interna e externa, que a inteligência encontra, em exercício, o influxo real da causa sobre o seu efeito.

Logo a idéia universal de causa eficiente, isto é, de um ser que pela sua atividade influi na produção ou na mudança de outro ser, é objetiva, corresponde e é aplicável a realidade em si» (P. Cerrutti, A caminho da Verdade Suprema. Rio de Janeiro 1954, 421s).

2. Observam os autores que a fórmula «Todo efeito tem uma causa» não é a mais feliz e adequada para se enunciar o princípio de causalidade. De fato, tal frase corre o risco de ser mal entendida, isto é, de ser considerada como petição de princí­pio ou como mera e inútil tautologia.

Isto se dá, sem dúvida, caso se queira entender «efeito» como «aquilo que é produzido por uma causa». Então está claro que todo efeito tem necessariamente causa (o conceito mesmo de efeito já o está dizendo); nada de novo se assevera ao se afirmar que todo efeito tem causa; a frase fica sendo vã.

Verdade é que se pode entender por efeito «tudo que, de qualquer modo, passa da não-existência para a existência». Então a fórmula equivale a dizer: «tudo que é feito, tem causa»; isto é verídico e repre­senta um genuíno progresso na aquisição da verdade; é autêntico prin­cípio de saber. Contudo neste caso a formulação seria incompleta, pois não indicaria o motivo pelo qual «tudo que é feito tem causa»; apenas afirmaria uma verdade, mas não a justificaria apontando o respectivo «porque».

Conscientes disto, muitos estudiosos, com razão, preferem formular o princípio de causalidade nos seguintes termos: «Todo ser contingente, exige (tem) uma causa».

Na verdade, o ser contingente é aquele que existe, mas po­deria não existir; não existe por si mesmo ou em virtude da sua própria essência. Por conseguinte, não possui em si a razão sufi­ciente da sua existência. A sua existência só se explica pela in­fluência que outro ser esteja exercendo nele. É por este motivo que se assevera que o ser contingente exige e possui uma causa. Este mesmo axioma pode ser expresso também do seguinte modo

«O ser que não existe por si mesmo, provém de outro ser, que (em última análise) existe por si mesmo»,

ou ainda: «O ser que não existe em virtude da sua própria essên­cia, tem uma causa».

Faz-se mister agora analisar de mais perto as razões que levam a afirmar o princípio de causalidade concebido nos termos acima.

2. Será autêntico?

Duas são as principais razões que incutem o referido axioma:

a) O princípio de causalidade é evidente por si mesmo.

Isto quer dizer: quem tem na mente a noção de ser contin­gente (a qual foi exposta atrás), percebe imediatamente que o ser contingente exige um outro ser do qual ele depende no seu existir, ou seja, exige uma causa. Conseqüentemente, a inteligên­cia que concebe com clareza as noções de «ser contingente» e de «causa» não pode deixar de afirmar logo, sem o auxílio de alguma demonstração ou silogismo, que o ser contingente exige e possui uma causa (princípio de causalidade).

O mesmo raciocínio também pode ser assim formulado: O ser con­tingente é o ser que existe, mas poderia não existir. Já que poderia não existir, compreende-se que não existe necessariamente, não existe por sua própria essência (ou por suas notas próprias constitutivas).

Por conseguinte, se não existe por sua própria essência, existe em virtude de outro ser, do qual recebe a existência; pois, se não possui a existência por sua própria essência, e se não a recebesse de outro ser, de modo nenhum teria existência, isto é, de modo nenhum exis­tiria.

Acontece, porém, que «receber de outro a existência» é «depender deste outro quanto a existência», é «ter neste outro a sua causa».

Donde se vê que o ser contingente tem necessariamente uma causa.

Por conseguinte, o princípio de causalidade é evidente por si mesmo.

b) O princípio de causalidade não pode ser negado sem que caia em contradição quem o pretende negar.

Negar o princípio de causalidade é afirmar que o ser que existe contingentemente não tem causa. – Ora afirmar que um ser existe contingentemente é afirmar que ele não tem em si mesmo a razão suficiente da sua existência e que, por conseguinte, não existe por si, mas é dependente, condicionado e relativo; afirmar, porém, que o ser contingente existe sem ter causa, é afirmar que existe sem depender de outro, que ele não tem em outro ser fora de si a razão da sua existência. Já, porém, que ele deve ter razão suficiente de sua existência (se não a tivesse, não existiria), afirmar que não a tem em outro ser equi­vale a afirmar que ele a tem em si mesmo ou que ele existe por si, que é incondicionado e absoluto.

Por conseguinte, negar o princípio de causalidade é afirmar simultaneamente que o ser contingente não tem e tem em si mesmo a razão suficiente da sua existência, ... que ele é, ao mesmo tempo, dependente e independente, condicionado e incondicionado, relativo e absoluto. Ora isto é contraditório e absurdo.

Não se pode, portanto, negar o princípio de causalidade sem incorrer em contradição e absurdo.

Diz-se, em conseqüência, que o princípio de causalidade é analítico, ou seja, que o vínculo entre os seus dois termos (o sujeito e o predicado) se evidencia simplesmente pela análise destes termos, sem que haja necessidade de alguma experiência científica intermediária: o predicado («o ser contingente») está contido dentro das propriedades do sujeito mesmo. Donde se vê que o principio de causalidade goza de certeza chamada metafísica, ou seja, do grau máximo de certeza.

De maneira semelhante, quem sabe o que é um todo e o que é parte de um todo, vê imediatamente a relação de desigualdade existente entre todo e qualquer uma de suas partes: o todo é maior do que qualquer de suas partes, pois o todo é um conjunto de partes. Nunca será possível que um todo exista sem ter essa propriedade.

Resta, porém, examinar algumas

3. Objeções

1. Certos filósofos a partir do séc. XVIII começaram a por em dúvida a validade do princípio de causalidade.

À sua frente estão D. Hume ( 1776) e os Empiristas. Para estes pensadores, só tem valor os conhecimentos que se adquirem pela expe­riência sensível. Ora a experiência por si não apreende o nexo invisí­vel ou a relação intrínseca que possa haver entre os fenômenos que ela observa; apenas verifica a sucessão de fenômenos. Em conseqüência, recusaram-se tais filósofos a admitir causalidade no sentido de influên­cia real de um ser sobre outro. Causalidade seria simples ilusão; dever­-se-ia falar não de causalidade, mas de sucessão constante entre fenô­menos. Asseverava Hume que unicamente o hábito de vermos dois fenômenos a se suceder constantemente nos leva a dar ao primeiro o nome de causa e ao segundo o de efeito, sem que contudo tenha o primeiro influído na produção do segundo.

Kant ( 1804), por sua vez, negou a evidência do princípio de cau­salidade, reduzindo-o à categoria de forma subjetiva do pensamento, forma subjetiva à qual não corresponde realidade alguma fora da mente humana.

- Após o que foi dito, não será necessário demonstrar que vãs são estas posições. O princípio de causalidade se evidencia válido pela sim­ples análise dos conceitos que ele envolve, de tal modo que quem o queira negar cai em verdadeira contradição.

2. Aparentemente mais graves são as dificuldades que a Física moderna formula contra o mencionado princípio.

Com efeito, a ciência contemporânea, principalmente a par­tir de Werner Heisenberg em 1927, já não defende o determinismo dos processos da natureza; já não tem as leis da mecânica na conta de normas rígidas ou fixas, mas apenas na de indicações de probabilidade; não se pode mais prever que efeito se seguirá ao desencadeamento de determinado fenômeno. Daí jul­gam alguns físicos poder deduzir conclusões depreciativas para a Metafísica ou para as provas da existência de Deus. Tenham-se em vista, por exemplo, as palavras de Orestano:

«Ninguém se pode iludir a tal respeito: muitos conceitos e princípios ontológicos sobre os quais se apoiavam certas demonstrações da existência de Deus, entraram hoje numa fase crítica... - O principio de causalidade na Física dos últimos constitutivos do átomo, isto é, no mundo, desmoronou... Quem se pode sentir tranqüilo ao confiar a prova da existência de Deus a demonstrações fundadas sobre pressu­postos ontológicos periclitantes?» (Idee e concetti - L'idea di Dio, em «Archivio di Filosofia» 1935, pág. 221).

Que dizer de tal objeção?

Resolve-se sem dificuldade mediante a seguinte consideração: a Metafísica (com o seu princípio de causalidade) e a Fí­sica (com o seu indeterminismo físico) não versam no mesmo plano, não visam o mesmo objeto. De fato, o princípio de causa­lidade afirma apenas a necessidade de uma causa para explicar a existência do ser contingente: posto o ser contingente, deve existir a respectiva causa. Não especifica, porém, que causa seja essa, nem explica se, ao produzir o seu efeito, age necessá­ria e rigidamente ou se age livremente. Nada disto é considerado pela Metafísica ou pelo princípio de causalidade. Ora é justa­mente isto que a Física e o indeterminismo físico consideram. Com outras palavras: a Metafísica leva em conta, primeiramente, o efeito contingente e dele depreende a causa; ao con­trário, o indeterminismo físico leva em conta, primeiramente, a causa e verifica que não podemos prever ou determinar os efeitos que essa causa produzirá. Ora esta última verificação se pode perfeitamente manter e afirmar sem que haja derrogação ao princípio de causalidade, pois não significa que os efeitos (que não estamos habilitados a prever) não terão sua causa adequada.

O indeterminismo físico diz respeito ao nosso modo de conhecer a realidade: afirma que não podemos indicar (por falta de penetração suficiente na natureza dos elementos que nos cercam) com qual fenô­meno (ou com quais outros fenômenos) está necessariamente vinculado um certo fenômeno ou qual é a causa e quais são os efeitos de deter­minado fenômeno.

Vê-se assim que o princípio de causalidade é independente das proposições da ciência moderna referentes ao determinismo ou ao in­determinismo dos fenômenos físicos, pois afirma apenas a necessidade da existência de uma causa para explicar a existência de um fenô­meno (ou de um ser contingente); está longe de asseverar a possibili­dade de determinarmos sempre e exatamente, em cada caso, qual seja esta causa, qual a sua natureza e quais os seus efeitos futuros. Isto pode ser discutido a gosto, sem que seja invalidado o princípio de cau­salidade. - Os físicos que negam o princípio de causalidade, só o negam porque julgam que ele significa a possibilidade, da nossa parte, de pre­vermos determinado fenômeno.

Após quanto acaba de ser considerado, percebe-se qual a resposta a dar a quem assim proponha o problema: os físicos modernos admitem que a matéria do universo é algo de indeterminado (corpúsculos? ondas?); por conseguinte, asseveram que a sua atividade é também algo de indeterminado. Dai derivam a negação do princípio de causa­lidade.

Observar-se-á: nesse raciocínio confunde-se o princípio geral de causalidade com o princípio de causalidade determinada. Mesmo que fosse verídico o célebre dito de Dirac:

«A natureza em certos casos escolhe», haveria liberdade no agir, não, porém, exclusão de causali­dade: uma causa livre não é menos causa do que uma causa necessá­ria. Em nada, portanto, é afetado o princípio de causalidade. O recurso às leis estatísticas para explicar os fenômenos é mesmo um indício que os próprios cientistas nos fornecem, de que, na realidade, admitem e aplicam o princípio de causalidade.

Merecem atenção as sábias palavras de F. Selvaggi, físico e filósofo moderno:

«Nunca talvez saberemos porque e como um elétron ou um fóton, passando através de uma rede, tem uma difração numa direção antes que em outra, porque e como uma partícula alfa no efeito Gamow supera uma barreira de potencial que se presume superior a energia do corpúsculo; e teremos que nos servir do cálculo das probabilidades, na descrição dos fenômenos observáveis, por uma necessidade inerente ao nosso próprio modo de conhecê-los e experimentá-los. Mas deveremos também afirmar, pelas exigências da nossa razão, a existência de uma causa que determina o fenômeno; pois dizer que uma realidade se de­termina par acaso de um modo antes que de outro, é afirmar que algo chega a existência sem uma causa, ou pelo menos sem uma causa pro­porcionada» (II principio di indeterminazione di Heisenberg, em «Civiltà Cattolica» 1947 pág. 122).

Já que é o princípio de causalidade, e não a nossa capacidade de prever fenômenos, que serve de base aos argumentos da existência de Deus, percebe-se que tais argumentos nada sofreram com o progresso das ciências modernas.

Na elaboração da presente resposta, muito nos valemos da obra de P. Cerrutti, A caminho da Verdade Suprema. Rio de Janeiro 1954, 418-460.

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