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segunda-feira, 4 de junho de 2007

Consciência e moralidade: o fim justifica os meios?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 068 1963)


«Diz-se que o fim não justifica os meios.

Será isso verdade ainda em nossos dias?

Quisera também ler algo sobre o histórico desse adágio».

Em nossa resposta, começaremos por elucidar o sentido e o valor do princípio citado. A seguir, proporemos algo do histórico da questão.

1. «O fim não justifica os meios».

Significado e valor.

A fim de facilitar a compreensão do adágio «O fim não justifica os meios», enunciaremos primeiramente algumas noções gerais referentes a atividade humana, noções gerais que talvez pareçam abstratas, mas vem a ser condição essencial para o reto entendimento do assunto. O leitor terá a paciência de acompanhar essas considerações básicas.

1. Em todo ato consciente e voluntário, o homem visa certo objeto (ou matéria) em torno do qual exerce a sua ação, por causa de determinado fim (ou objetivo), dentro de tais e tais circunstâncias.

Tenha-se em vista o caso de Pedro, que por amor a Cristo dá ge­nerosa esmola a um pobre ferido.

Em tal ato, o objeto vem a ser a esmola; é para esta que a atividade de Pedro no momento tende primariamente ou por si (o ato de Pedro define-se simplesmente como um ato de dar esmola);

o fim pelo qual Pedro assim age, é o amor a Cristo (é, sim, para afirmar e corroborar seu amor a Jesus que Pedro dá a esmola). - O fim pode variar, pois Pedro também poderia dar esmola por vaidade ou ostentação ou por medo ou por desejo de captar a simpatia de outrem...;

as circunstâncias vem a ser a índole generosa da esmola e o fato de que o pobre é um pobre ferido. - Também as circunstâncias são variáveis, pois há esmolas de pouca monta e pobres que não são feridos.

São, por conseguinte, esses três elementos (o objeto, o fim e as circunstâncias) que se devem levar em conta para avaliar se o ato humano é moralmente bom ou mau, isto é, para deter­minar a moralidade (liceidade ou iliceidade) do ato humano ou ainda... para verificar se o ato é ou não é conforme a regra suprema da conduta humana, que é a Lei de Deus.

2. Note-se agora que o objeto mesmo, do ponto de vista da mora­lidade, pode ser

bom, caso seja por si ou intrinsecamente conforme à Lei de Deus; tais são, por exemplo, os atos de amor a Deus e amor ao próximo;

mau, caso por si seja contrário á Lei de Deus; tais são os atos de odiar a Deus, matar um inocente;

indiferente, quando por si não traz relação, nem de conformidade, nem de oposição, à Lei de Deus; tenham-se em vista os atos de andar, escrever, comer... Verdade é que tais atos só são moralmente indife­rentes ou neutros quando considerados em si ou abstração feita das respectivas circunstâncias e finalidade; na prática, não há ato humano moralmente indiferente, pois as circunstâncias ou a finalidade o tor­nam bom ou mau; assim, escrever para instruir os outros é bom, es­crever para perverter o próximo é mau...

Donde se vê que há alguns males que são sempre males, males absolutos; e não se podem por motivo algum tornar atos bons ou indi­ferentes (tal é o ódio a Deus ou ao próximo). Há também males rela­tivos,... relativos por motivo de alguma circunstância contingente. Assim, o ato de tirar coisa alheia será mau, se for praticado contra a vontade do proprietário dessa coisa; poderá ser bom, se o proprietário der espontaneamente a licença necessária.

3. Será preciso observar outrossim o seguinte: o objeto, quer bom, quer mau, pode ser considerado

materialmente, ou em si mesmo, independentemente da consciência de quem age;

formalmente, ou na medida em que a respectiva bondade ou mali­cia moral é percebida pela consciência e desejada pela livre vontade de quem age.

Assim o ato de tirar coisa alheia praticado por quem não sabe que é coisa alheia, é um ato materialmente, mas não formalmente, mau. Dado, porém, que o agente saiba que a coisa pertence a outrem e a tire deliberadamente contra a vontade do proprietário, comete uma ação formalmente má.

Esta distinção nos leva a falar de pecado material (ou material­mente entendido) e pecado formal (ou formalmente entendido). No primeiro caso, o agente age mal sem conhecimento de causa ou sem desejo deliberado; no segundo caso, age com conhecimento de causa e vontade deliberada.

4. Dos três elementos que dão moralidade ao ato humano (o objeto, o fim e as circunstâncias), o principal é o objeto, e o objeto formalmente entendido, isto é, na medida em que o agente o reconhece e deseja como objeto bom ou como objeto mau. O objeto assim percebido fornece geralmente a moralidade pri­mária e essencial ao ato, fazendo que ele possa ser bom ou mau (do ponto de vista moral) independentemente do fim e das cir­cunstâncias desse ato. Por isto, a moralidade má derivada do objeto (aqui apenas esta nos interessa) é constante e imutável, ainda que se mudem as circunstâncias e o objetivo do ato; assim o ato de tirar deliberadamente um pertence alheio, quando o proprietário, usando de justo direito, não o permite, deve ser tido como ato injusto, antes mesmo que se considerem as cir­cunstâncias e o fim respectivos; e de modo nenhum se torna justo pela mudança das circunstâncias ou do fim (não se torna justo, por exemplo, nem no caso de que alguém roube para dar esmola). O ato de matar um inocente é por si um ato moral­mente mau, embora possa ser inspirado pelos sofrimentos de um doente ou de um aleijado...

É o que nos leva a afirmar que «o fim bom não justifica meios maus». Mesmo que o fim seja bom, a vontade que o de­seja mediante meios maus, deseja algo de mau; e esse desejo destrói ou corrompe a bondade moral da ação. Famoso adágio dos moralistas ensina: «Bonum ex integra causa, malum ex quocumque defectu», isto é, «para que uma ação seja boa, é pre­ciso que todos os seus elementos integrantes (inclusive os meios) sejam bons; caso algum seja mau, já não há ação boa». É por isto também que São Paulo exclama:

«Haveríamos nós de fazer o mal para que daí proceda o bem, con­forme alguns nos acusam caluniosamente, atribuindo-nos este princí­pio?» (Rom 3,8).

Verdade é que, se alguém procede mal visando finalidade boa, o seu procedimento é menos grave do que em outros casos. A finalidade boa atenua a malícia dos meios maus utilizados por quem age. Este mostra não ter apego ao mal em si, mas só o de­sejar por causa do bem.

Tal é o caso, por exemplo, de quem rouba para aliviar a fome de um pobre.

S. Agostinho diria: «Mais grave culpa tem o indivíduo que rouba por cobiça do que aquele que furta por compaixão (para com um pobre)» (Contra mendacíum VIII ed. Migne lat. 40, 529).

S. Tomaz, por sua vez, ensina: «Quanto melhor é a intenção de quem mente, tanto menor será a sua culpa» (Suma Teológica II/II 110 2).

Essa pessoa não está propriamente aderindo ao mal, mas procuran­do um bem real; a desordem do seu procedimento consiste apenas na escolha do meio. É preciso contudo frisar bem que, embora a retidão da vontade torne o ato menos mau, ela não apaga por completo a malí­cia objetiva do mesmo. Esta última é essencial ao ato; não pode ser separada deste, ainda que só seja aceita pela vontade em vista de um fim nobre. A vontade, querendo tal meio, não pode deixar de querer simultaneamente a malícia intrínseca desse meio que ela conhece; por conseguinte, não pode estar praticando uma ação boa. - A mentira não é licita, nem mesmo quando encaminhada para uma finalidade boa; cf. «P. R.» 18/1959, qu. 6.

A esta altura, porém, merecem nossa atenção

2. Duas objeções

1. Há quem não aceite tais considerações, apelando para os exemplos bíblicos de Abraão (cf. Gên 12,11-19), Jacó (cf. Gen 27, 1-40), Judite (cf. Jdt 11,11-15) e das parteiras do Egito (cf. Êx 2,15-21); todos esses personagens proferiram mentiras a fim de obter uma finalidade boa.

Citam-se também o procedimento de Moisés, que por auto­ridade própria matou um egípcio (cf. Ex 2,11s), assim como a conduta de Sansão, que se suicidou para exterminar os filisteus que humilhavam Israel (Jz 16,25-30).

Como julgar tais casos?

Faz-se mister dizer: ou admitiremos que tais atos, na me­dida em que foram aprovados por Deus, não eram intrinsecamente maus (assim as aparentes mentiras não seriam mentiras propriamente ditas, mas restrições mentais; cf. «P. R.» 18/1959, qu. 6), ou, caso isto não se tenha dado, deveremos reconhecer que os citados personagens bíblicos, por muito beneméritos que fossem, pecaram (pecaram ao menos materialmente) não há homem algum que não esteja sujeito a falhar até o fim de sua vida, por muito santo que seja.

2. Disputam os autores modernos também sobre as pala­vras de Cristo referidas em Mt 6,22s

«Os teus olhos são a luz do teu corpo. Se teus olhos são per­feitos, todo o teu corpo será luminoso. Mas, se teus olhos forem defeituosos, todo o teu corpo estará em trevas».

Há quem julgue que Jesus, ao falar de «olhos (perfeitos ou defeituosos)» no texto acima, se referia à intenção (boa ou má) de quem age, de modo que o ensinamento do Divino Mestre seria o seguinte : «Se, ao agir, tiveres má intenção, todos os teus atos serão tenebrosos ou moralmente maus. Ao contrário, se tiveres boa intenção, tudo que fizeres será luminoso ou moralmente bom». Estaria assim justificada a tese conforme a qual o fim bom (a intenção boa) legitima os meios em si maus.

Sem dificuldade se reconhece quão precário é o recurso a tal texto evangélico: já o estilo metafórico da passagem exige que só a utilizemos com grande cautela; na verdade, à figura dos olhos, mencionada pelo Senhor, parece que seria forçado atribuir o sentido preciso de «intenção»; ela equivale, antes, a «afetos do coração humano»; foi sempre neste sentido que os exegetas a entenderam. Conseqüentemente, Jesus quer dizer que, se os afetos do homem forem puros ou isentos de cupidez e paixões, tal pessoa poderá realizar obras boas; o contrário se verificará se tiver o coração ou os afetos apaixonados e obce­cados.

Fica, pois, de pé o princípio: «O fim não justifica os meios». Só pode contradizer a este adágio quem admita que a norma suprema da moralidade ou o fim último da conduta humana são as vantagens ime­diatas e temporais do próprio sujeito ou da sociedade; em tal caso, a malícia objetiva do ato poderá parecer suficientemente compensada pela sublimidade do fim.

Há ocasiões, sem dúvida, em que os atos de enganar, mentir, roubar ou matar mais condizem com os interesses temporais do indivíduo ou do grupo do que a abstenção de tais atos; se, pois, o homem só vive para tais interesses temporais, está claro que não hesitará em lançar mão de semelhantes expedientes. A reta consciência, porém, aponta a todo indivíduo outra finalidade para a sua conduta, finalidade que ultrapassa os limites desta vida e à qual têm que ser sacrificadas todas as vantagens temporais que lhe contradigam.

O utilitarismo que depaupera e amesquinha, encontrou sua expres­são clássica nas palavras do poeta inglês Matthew Prior, o qual asse­verava que só peca quem tem a intenção de cometer o mal:

«The end must justify the means,

He only sins who ill intends.

O fim há de justificar os meios;

Só peca quem intenciona o mal».

(The works of the english poets. London 1810, t. X 155)

Resta agora percorrer rápidamente o

3. Histórico da questão

1. Pode-se dizer que a Moral cristã, desde os tempos de São Paulo (cf. o texto de Rom 3,8 citado à pág. 321 deste fascí­culo), sempre repudiou o adágio «O fim justifica os meios».

S. Agostinho ( 430) exprime essa repulsa nos seguintes termos:

«Muito importa avaliar a causa, o objetivo, a intenção que movem cada um dos nossos atos. Quanto aos atos que por si mesmos são peca­minosos, não será lícito praticá-los nem mesmo sob o pretexto de que a causa é boa, nem mesmo em vista de uma finalidade honesta, nem mesmo por influência de uma boa intenção» (Contra mendacium VII 18, ed. Migne lat. 40, 528).

Este texto incute de maneira bem clara que nada absolutamente pode justificar a prática de uma ação má em si mesma.

O mesmo S. Doutor afirmava também com nitidez o seu pensa­mento a propósito de um trocadilho que, a quanto parece, ocorria entre os fiéis da sua comunidade. Ei-lo:

O texto latino do Salmo 32,17 poderia ser escrito do seguinte modo: «Mendax aequus ad salutem»; o que se traduziria por: «O mentiroso está habilitado para granjear a salvação». Assim entendido, o salmo sugeriria que a mentira pode ser oportuno meio de salvação eterna. - Ora, desejando absolutamente remover do espírito de seus fiéis uma tal conclusão, o S. Doutor chamava explicitamente a atenção para a reta grafia do citado versículo: «Mendax equus ad salutem»; o que significa: «O cavalo (com toda a sua pujança) é mentira (ou ilusão) no que se refere à salvação» (não é a força do cavalo que garante sal­vação eterna a alguém). Cf. Enarr. in Ps 36, ed. Migne lat. 36, 297.

A tais pormenores descia a solicitude de S. Agostinho visando rejeitar a idéia de que o fim justifica os meios!

São Tomaz ( 1274), em seu tempo, ensinava: «Não se pode justi­ficar um ato mau, nem mesmo quando cometido com boa intenção» (opuse. III e. VI).

2. Na antigüidade cristã, somente o escritor João Cassiano ( 435), acompanhado de poucos outros, ensinou a liceidade da mentira quando proferida em caso de necessidade (col. XVII 17-19, ed. Migne lat. 49, 1062-1070). Defendia tal sentença, desejando explicar os episó­dios do Antigo Testamento em que homens de Deus aparecem a mentir. - Na verdade - já o observamos atrás - não seria preciso dizer que tais varões tenham procedido bem ao mentir; também os que arden­temente procuram aproximar-se de Deus, podem incorrer em faltas.

Mais complexa é a discussão que se tem travado na época moderna a respeito da doutrina e da praxe dos Padres da Companhia de Jesus, aos quais muitos historiadores atribuem a máxima: «O fim honesto justifica o emprego de meios desonestos».

Examinemos o que a tal propósito referem os documentos da his­tória.

3. A acusação já era dirigida contra os jesuítas no séc. XVII pelo escritor calvinista Dumoulin ( 1566) e pelo filó­sofo francês Blaise Pascal ( 1662). Este pensador, na sua «Septième Lettre Provinciale» (Sétima Carta Provincial), atribuía aos moralistas da Companhia de Jesus a tática de «dirigir a intenção»: conforme essa praxe, os diretores de almas deve­riam orientar a intenção dos fiéis para determinados objetivos lícitos; esta orientação bastaria para tornar honesta toda e qual­quer ação, mesmo os atos até então tidos como torpes.

Assim, por exemplo, fala o «Bon Père (Bondoso Padre)», um dos personagens sutis que Pascal apresenta como arauto da tese na «Sétima Carta»:

«Quando não podemos impedir a ação, purificamos ao menos a in­tenção de quem a vai praticar; destarte corrigimos o vício do meio pela pureza do objetivo».

Observava Pascal que esse «maravilhoso método» permitia associar as máximas do Evangelho às máximas do mundo: desde que, por exemplo, alguém tivesse a «boa intenção» de salvaguar­dar a sua honra, poderia licitamente aceitar um duelo ou mesmo, por vezes, propô-lo; poderia matar por causa de um gesto de desprezo, matar às ocultas um falso acusador ou um juiz cor­rupto; o direito de legítima defesa seria assim estendido de ma­neira arbitrária e caprichosa. Encontrar-se-ia o meio de «roubar sem pecar».

Não há dúvida, Pascal, ao fazer suas recriminações, focali­zava algumas posições adotadas por casuístas de sua época; parece, porém, tê-las em parte caricaturado e exagerado a fim de censurar a Companhia de Jesus (da qual o filósofo francês, dado ao jansenismo, não era amigo). - O que tais posições possam ter de errado, há de ser reconhecido como errado; contudo será preciso não esquecer que não se tornaram posições comuns na S. Igreja nem dentro da própria Companhia de Jesus. Deve-se mesmo observar que o moralista jesuíta mais repreendido por Pascal, o Pe. Escobar y Mendoza ( 1669), tido como um dos mais sutis «diretores das intenções humanas», escreveu verbal­mente na sua «Teologia Moral»:

«A honestidade de determinado fim não recai sobre um ato que, por seu objeto mesmo, seja desonesto; este ato fica sendo, em todas as hipóteses, simplesmente ilícito. Tal é o caso, por exemplo, de quem rouba para dar esmola» (Theologia Moralis. Lião 1652, 1. 3, sect. I c. 6).

Donde se vê que no séc. XVII nem mesmo Escobar, jesuíta conside­rado como um dos mais cavilosos moralistas da época, terá defendido o principio: «o fim justifica os meios».

Por todo o decorrer dos séc. XVIII e XIX as acusações à Companhia de Jesus foram renovadas, principalmente em terri­tórios de língua germânica, onde ardiam litígios entre católicos e protestantes. Da controvérsia, salientam-se os seguintes tópi­cos mais marcantes:

Em 1848, os jesuítas empreenderam missões em toda a Ale­manha. Para os desacreditar junto aos fiéis, foram então lança­dos ao público panfletos e volantes numerosos conforme os quais os jesuítas no confessionário ensinavam que o fim justifica os meios. À guisa de réplica, o Pe. Roh S.J. resolveu, em Franco­forte (Renânia), lançar um desafio a todos os interessados: mostrassem à Faculdade de Direito de Bonn ou de Heidelberg um só livro assinado por jesuíta no qual o referido princípio ou outro semelhante fosse apregoado; quem o fizesse seria
pre­miado com a quantia de 1.000 florins. Tal apelo, feito em 1852, tendo ficado sem resposta eficaz desde então, foi renovado pelo mesmo Pe. Roh em 1861, em Halle (Alemanha). Após algumas tentativas de resposta, em 1868 o pastor protestante Maurer, de Bergzabern, publicou uma brochura, intitulada «Neuer Jesuitenspiegel (Novo espelho dos jesuítas)», na qual julgava fornecer definitivamente a documentação solicitada pelo repto do Pe. Roh: apontava, sim, a famigerada obra «Medulla Theologiae Moralis» do notório casuísta Busenbaum S.J. ( 1668), editada pela primeira vez em Münster no ano de 1650 e sucessi­vamente reeditada. Nesta obra o ponto impugnado por Maurer era o seguinte:

Busenbaum examina o caso de alguém que, tendo sido condenado ao cárcere por sentença injusta, deseja escapar da prisão. O casuísta jesuíta julga então lícita a fuga, «a menos que o bem comum exija o contrário» ou também «exceto se a caridade exigir o contrário» (exceto, por exemplo, se a fuga acarretasse maior dano ao guarda da prisão do que o dano sofrido pelo prisioneiro no cárcere). Admitida a liceidade da fuga, Busenbaum imagina que o prisioneiro, para escapar, vai ludibriar os vigias ou dando-lhes algum soporífero ou fornecendo-lhes um mo­tivo para se ausentarem do respectivo posto; o encarcerado está dis­posto até a tentar romper as correntes que o prendem... Ora Busenbaum admite a legitimidade de tais expedientes, pois, diz ele, «quando o fim é licito, os meios também são lícitos». - Era esta a passagem que Maurer julgava poder apresentar como fundamento das acusa­ções feitas aos sutis moralistas da Companhia...

Eis, porém, que quem analisa com serenidade o tópico indicado não pode deixar de levar em conta as observações textuais de Busenbaum:

«(Reo) licet fugere ne capiatur, vel etiam a ministro aprehendente se excutere, non tamen illi vim inferre, vulnerando, percutiendo.

Licet etiam, saltem in foro conscientiae, custodes (praecisa vi et injuria) decipere, tradendo. verbi gratia, cibum et poturn ut sopiantur vel procurando ut absint; iterum vincula et carceres effringere, quia cum finis est licitus etiam media sunt licita» (lib. IV cap. 3, dub. 7. Paris 1657, pág. 495-97).

O que quer dizer:

«Ao acusado é lícito fugir para não ser preso, como também é lícito procurar desvencilhar-se do guarda que o queira prender; não é legítimo, porém, em vista disso aplicar violência ao guarda, ferindo-o ou espancando-o.

Também será lícito, ao menos no foro da consciência, enganar os guardas (sem contudo recorrer à violência e à injúria), dando-lhes, por exemplo, alimento ou bebida que os façam dormir, ou proporcionando­-lhes algum motivo para se ausentarem; também será legítimo romper correntes e grades, pois, quando o fim é lícito, também os meios o são».

Este texto significa realmente que «o fim (bom) justifica meios maus (ilegítimos)»? Não; pois os meios que Busenbaum aponta como exemplos são meios que ele, na sua consciência (com ou sem razão; esta é outra questão), tem na conta de indi­ferentes em si mesmos: um soporífero, coisa que pode ser objeto tanto de ação boa como de ação má; o artifício, que faz o funcionário ausentar-se momentâneamente da sua ocupação; a ruptura de correntes que restaura a liberdade. Quanto aos meios que Busenbaum julga ilícitos em si mesmos (as violências, os golpes e ferimentos), ele é o primeiro a rejeitá-los, como se vê acima.

Baseando-se, pois, nos dois parágrafos aqui citados e transcrevendo-os por inteiro, o Pe. Roh redigiu a sua refuta­ção a Maurer numa brochura publicada com o título (traduzido do alemão): «A velha cantiga: ‘O fim justifica os meios’, me­lhorada quanto ao texto e dotada de nova melodia». Roh aí mos­trava que, mesmo aos olhos de Busenbaum, o fim lícito não jus­tifica todos os meios; e corroborava a sua demonstração, lem­brando mais a seguinte afirmativa do controvertido moralista:

«Praeceptum naturale negativum prohibens rem intrinsece malam, non licet violare, ne quidem ob metum mortis» (Lib. I tract. 2, cap. 4, dub. 2. Paris 1657, pág. 39).

«Não será lícito violar, nem mesmo por medo da morte, um pre­ceito da lei natural negativo que proíba uma ação intrinsecamente (por si mesma) má».

Estava assim encerrada a discussão em torno de Busenbaum. Apesar das ardentes pesquisas então efetuadas, não fora possível atribuir a este moralista ou a algum de seus confrades a tutela da máxima: «O fim bom justifica meios maus».

Contudo a opinião pública e a imprensa européias estavam tão ha­bituadas a repetir a acusação proferida por Pascal que mais uma con­trovérsia havia de se acender no início do século XX.

Com efeito. Aos 31 de março de 1903, o sacerdote Dasbach, deputado no Parlamento da Prússia, lançou novo repto, ofere­cendo 2.000 (não apenas 1.000, como fizera o Pe. Roh) florins a quem lhe apresentasse um texto de moralista jesuíta que favo­recesse o incriminado adágio. Respondeu-lhe o conde Paulo de Hoensbroech (que outrora pertencera à Companhia de Jesus e à Santa Igreja Católica), publicando em 1903 mesmo um artigo na revista «Deutschland». Reconhecia que os textos de Busenbaum, assim como outros trechos de autores jesuítas até então alegados, nada provavam; asseverava outrossim que os adver­sários da Companhia, desde Pascal até 1903, só haviam explo­rado nesse debate uma documentação pouco exata e assaz enga­nadora. Hoensbroech, porém, julgava poder apresentar nomes e textos novos que evidenciariam de maneira decisiva os debo­ches da casuística jesuíta.

A controvérsia tornou-se pública e acalorada. Já que Hoensbroech, apoiando-se na documentação que lhe parecia de todo convincente, reclamava de Dasbach o pagamento dos 2.000 flo­rins prometidos em repto, o litígio foi levado ao tribunal de Tréviris; este se declarou incompetente para julgar a questão. Con­seqüentemente o caso em 1905 foi submetido à Corte de Apela­ções de Colônia; esta examinou atentamente as declarações dos casuístas da Companhia citados por Hoensbroech, e concluiu afirmando a insuficiência de tais testemunhos. Hoensbroech de­veria, por conseguinte, desistir de sua reivindicação. Ficava assim mais uma vez reconhecido que a acusação propalada con­tra os jesuítas era gratuita ou destituída de provas. Um tribunal superior do Império prussiano sancionou a conclusão do júri de Colônia, declarando em sua sentença:

«An keiner Stelle ist in den vorgelegten Jesuitenschriften bei Be­handlung dieser Frage der allgemeine Grundsatz ausgesprochen, dass jede an sich verwerfliche Handlung durch jeden guten Zweck erlaubt wird» (Koelnische Volkszeitung 3/IV/1905, n° 273).

«Em passagem alguma dos citados escritos dos jesuítas referentes a tal questão, está enunciado o princípio geral conforme o qual qual­quer ação em si ilícita se torna lícita pelo fato de ser encaminhada a uma finalidade boa qualquer».

Destarte terminava a última grande controvérsia sobre o assunto. Parece que a sentença dos juristas alemães tomou cará­ter definitivo, pois de então por diante cessaram as pesquisas de eruditos desejosos de comprovar a acusação feita aos jesuítas desde os tempos de Pascal. Apenas a opinião pública, pouco es­clarecida e rotineira, alimentada exclusivamente pelo «ouvir dizer» sem exato conhecimento de causa, poderá atualmente continuar a difundir a velha denúncia contra a Companhia de Jesus. Faz-se mister, porém, que mormente em nossos dias todo homem digno deste nome evite «ir na onda» de maneira incons­ciente.

4. Para facilitar ainda mais a tomada de posição do leitor, se­guem-se algumas passagens de moralistas jesuítas que, reprovando diretamente a norma «O fim justifica os meios», bem parecem refletir uma certa tradição ou mentalidade comum vigente na Companhia de Jesus.

Assim, por exemplo, escrevia Paulo Laymann S.J., casuísta que Pascal nas suas «Cartas Provinciais» censurava juntamente com Escobar:

«Admitamos uma ação cujo objeto é mau, ação, porém, dirigida para uma finalidade boa; seria o caso de quem roubasse para poder -dar esmola. Tal ação é simplesmente má. pois equivale a uma injustiça. O fundamento para se afirmar isto é a diferença existente entre o bem e o mal moral, diferença enunciada por S. Dionísio ao dizer: ‘O bem só se obtém pela consonância de todos os seus constituintes; o mal, ao con­trário, já existe desde que haja dissonância (defeituosidade) de um só dos respectivos elementos; o que quer dizer: a fim de que uma ação seja moralmente boa, é preciso que tanto o seu objeto como a sua fina­lidade e todas as respectivas circunstâncias sejam consentâneas com a reta razão» (Theologia Moralis I 2, 9; Douai 1640, pág. 32).

Tão clara doutrina é repetida pelo moralista Edmundo Voit S.J. logo no limiar do seu compendio de «Teologia Moral»:

«Omnis electio mali medii est mala. Ad malitiam participandam sufficit volitio obiecti quod cognoscitur esse malum» (Theologia Mora­lis. Paris 1843 I pág. XVIs).

«A escolha de um meio mau e sempre má... A fim de que um ato seja ilícito, basta que a pessoa queira um objeto que ela reconheça ser mau».

No fim do século passado, ensinava o Pe. Cathrein, que gozava de grande autoridade entre os moralistas da Companhia:

«O ato de desejar um objeto moralmente mau não se pode tornar bom por influência da finalidade extrínseca à qual seja encaminhado esse ato. Por conseguinte, quem reconhece que o roubo (a subtração de bens alheios contra a vontade do respectivo proprietário) é condená­vel, não pode licitamente querer roubar, por mais nobre que seja a finalidade intencionada; esse ato de querer será sempre moralmente mau» (Moralphilosophie I 232. Freiburg i./Br. 1891).

De resto, tal corrente doutrinária da Companhia de Jesus se pode valer da autoridade mesma do fundador dos Jesuítas, S. Inácio de Loiola ( 1556). Este, na segunda semana dos seus «Exercícios Espiri­tuais», quer levar o discípulo a escolher entre os diversos meios que se lhe oferecem para prestar o seu serviço a Deus; escreve então:

«O serviço a Deus, tal é a finalidade única; a procura de um bene­fício da Igreja ou a de uma esposa são apenas meios em vista de tal fim. Por conseguinte, somente o desejo de servir a Deus, e nada fora disto, nos deve levar a adotar ou a repudiar algum desses meios... Será sempre necessário que todos os meios entre os quais desejamos fazer a nossa escolha, sejam indiferentes ou bons em si, e de modo ne­nhum maus».

Estas declarações são suficientes para dar a ver que o princípio «O fim justifica os meios» de modo nenhum pertence ao patrimônio doutrinário da Companhia de Jesus ou da S. Igreja. Pode acontecer que um ou outro teólogo se tenha expresso de maneira favorável a tal adágio; deverá ser tido, porém, como voz esporádica que não representa a atitude da Moral católica. Esta inculcará sempre: «Bonum ex integra causa; malum ex quocumque defectu. - O bem só se obtém pela con­sonância de todos os seus constituintes; o mal, ao contrário, já existe desde que haja dissonância de um só dos respectivos elementos».

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