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domingo, 10 de junho de 2007

Religião: prós e contras

(Revista Pergunte e responderemos, PR 083/1964)

«Que pensar do livro ‘Religião: prós e contras’ do Pro­fessor Silva Mello?

Autêntico testemunho de sabedoria e humildade, como se tem dito»?


O Prof. Antônio da Silva Mello, médico e cientista, publi­cou em 1963 a obra acima, em dois volumes destinados a ser um «Manual de ateísmo». - «Pois convenhamos: assim como os crentes precisam de manuais e de toda uma superestrutura - a teologia - para não cair em tentação, assim também al­guns ateus necessitarão de dados e fatos para não cair em tentação oposta». Justamente para prover a esta necessidade dos incrédulos é que o escritor redigiu os volumes em foco (cf. 1ª orelha da capa). Tal obra, portanto, não é mero balanço de razões que recomendem ou desabonem a Religião, mas tenta
ser verdadeiro desmentido a toda e qualquer crença religiosa.

Em duas etapas, procuraremos avaliar o significado de «Re­ligião: prós e contras» propondo primeiramente observações de conjunto, às quais se seguirão comentários de índole mais particular.

1. Observações gerais

A obra do Prof. Silva Mello atesta inegavelmente a leitura de algumas fontes de erudição. Pode-se admitir que o autor tenha sido inspirado por sinceridade e lealdade esforçando-se por dar bases só­lidas ao ateísmo.

Não se negará, portanto, o que esse livro representa de positivo: o desejo de mover todos os homens à honestidade e a beneficência desembaraçadas de todo tabu e de toda crendice infantil.

Pergunta-se, porém: o autor terá realmente conseguido re­digir um «Manual de ateísmo» ou uma obra que forneça argu­mentos decisivos em favor da incredulidade?

Um exame desprevenido do texto leva a ver que o Prof. Silva Mello ficou muito longe do seu objetivo, pois são tão numerosos e flagrantes os pontos fracos dos seus dois volumes que estes redundam, antes, em desabono do ateísmo. Sim; a posição do autor, por impressionante que pareça à primeira vista, dificilmente resiste a uma análise mais atenta. - É o que esperamos se possa depreender das considerações abaixo:

1) Incredulidade humilde?

O Prof. Silva Mello julga que Religião é expressão de um complexo de superioridade da criatura humana. O homem ten­de erroneamente a se julgar mais digno e melhor do que as criaturas visíveis. Por isto pretende elevar-se ao mundo invisí­vel; criou a idéia de Deus, e ousou asseverar que o ser humano é imagem e semelhança de tal Super-Entidade ou Deus. Movido por essa mesma ambição, o homem afirma que é imortal, ... que possui uma alma diferente do princípio de vida dos res­tantes animais, alma que lhe assegura um destino transcenden­te. Foi esse complexo de superioridade que deu origem às cren­ças religiosas, conforme Silva Mello. Donde conclui o autor que é necessário corrigir tal aberração do comum dos homens, re­duzindo-os à incredulidade, a qual vem a ver verdadeira humil­dade e sabedoria:

«Acho o homem uma obra tão defeituosa, tão mal feita que, para ser um produto divino, precisaria ser completamente reparada, recon­dicionada. O que é pior, porém, é que, pelo seu complexo de superio­ridade, do qual faz parte o seu sentimento religioso, tem-se acredi­tado ele próprio um ente dotado de alma imortal, uma obra divina, suposição que o tem tornado mais exigente e infeliz, mais pretensioso e artificial. É bom, por isso, que deixe Deus lá nas alturas e cogite de sua própria situação cá embaixo, situação de um pobre habitante da terra, que, nada compreendendo do universo, também não procura iludir-se julgando-se uma criatura única, a suprema criação de um Deus hipotético. Não nos esqueçamos de que a humildade pode ser a maior das sabedorias! Humildade da ignorância!» (Religião: prós e contras II 811).

Carlos Heitor Cony assim reproduz o pensamento de Silva Mello nas orelhas da capa (tópicos publicados também no «Correio da Ma­nhã» de 31/X/1963):

«'Religião: prós e contras'... A. da Silva Mello... faz sua opção: uma opção feita de humildade e grandeza humana, renunciando 'saber tudo' e procurando 'saber bem' aquilo que é possível saber... É um ateu, e não sente honra nem pejo em dizer isso... O ateu é, sobretudo, contrariando o que os crentes dele afirmam, um humilde. Isso é o que prova 'Religião: prós e contras', um livro humilde e neces­sário de um sábio humilde e necessário».

Ora muito ilusória é essa humildade. O próprio Silva Mello contradiz a esta atitude que ele pretende tomar como base do ateísmo. - Com efeito, não parece fazer grande caso de ser humilde quando escreve no II vol. à pág. 787, a respeito da «imortalidade da alma»:

«É sempre o nosso complexo de superioridade que representa aí o papel principal, fazendo-nos ver, as coisas segundo os nossos dese­jos, reflexos das nossas pretensões. Diante de tudo isso, é razoável prosseguirmos admitindo possuir o homem uma alma imortal? Con­sidero-a quase um trambolho, sobretudo quando, depois da morte, fica vagando pelo espaço até acabar diretamente no céu ou no infer­no, caso não passe primeiramente pelo purgatório. Os três lugares parecem-me ominosos, detestáveis pela qualidade de gente que lá se deve encontrar. Deus me livre de tais companheiros, deixando-me quietinho no fundo da terra. Quase todos são muito bons e apreciá­veis, alguns mesmo excelentes, mas talvez somente cá embaixo, pas­sageiramente, nunca para vivermos com eles eternamente.

Nesta passagem, o autor, que tanto censura o complexo de superioridade do comum dos homens, não deixa de ceder ao mesmo, recusando conviver com os seus semelhantes (até mes­mo com os inocentes e justos). A genuína humildade exprimir­-se-ia em tais termos? Não inspirariam um amor mais com­preensivo, voltado tanto para os homens perfeitos como para os imperfeitos?

De resto, o autor é contrário à imortalidade do ser humano, em parte porque está mal informado a propósito: após a morte do indi­víduo não ficam as almas vagueando pelo espaço mas são imediata­mente julgadas por Deus, que lhes atribui a sanção respectiva (céu, inferno ou purgatório). Não se devem conceber estes estados à se­melhança de compartimentos cheios de delícias ou de tormentos; é no íntimo de cada alma (na união com Deus ou na separação de Deus) que consiste o essencial do céu, do inferno e do purgatório (as ques­tões de local dimensional são, neste caso, bastante secundárias).

Não é, portanto, a verdadeira humildade que leva a rene­gar a Religião ou a fé em Deus e na imortalidade da alma. O problema dos homens que hoje em dia se dizem ateus, é, em grande parte, outro: consiste, sim, na falta de conhecimento exa­to da própria Religião; se a conhecessem melhor, veriam que não é tão infantil quanto lhes parece, e mais a estimariam (tal­vez mesmo lhe dessem a sua adesão).

O reconhecimento da existência de Deus e dos deveres re­ligiosos está longe de equivaler a arrogância do ser humano, como se este quisesse, em seu orgulho, saber coisas que estão fora do seu alcance ... O senso religioso se acha impregnado

no mais profundo da natureza humana, de modo que esta só «se realiza» se se eleva até o Invisível ou Deus. Verdadeira humildade no homem só pode existir se este se coloca debaixo de Deus; sem Deus não há fundamento para que o homem discipline seu orgulho e seu egoísmo inatos.

Verifica-se, aliás, que a primeira ciência cultivada no decorrer da história foi a astronomia; ainda hoje se podem reconhecer Observató­rios astronômicos dos hindus pré-cristãos. O fato é sintomático, pois revela que o homem teve, em todos os tempos, a sede do Infinito ou do Invisível; a procura do céu, ainda que mal conhecido, sempre marcou as manifestações mais grandiosas do homem sábio. Como então se poderiam tachar de aberração da personalidade (ou «Comple­xo de superioridade») as manifestações religiosas, que todos os povos apresentam através dos séculos?

Esta observação à posição de Silva Mello sugere imediata­mente uma segunda consideração.

2) Muitos assuntos,... pouca sabedoria.

Em seus dois volumes (48 capítulos e 889 páginas), o autor aborda uma multidão de temas... ; alguns destes pouco se re­lacionam com a tese central da obra. Não raro, os assuntos são focalizados de maneira assaz superficial; o escritor não in­dica suas fontes de informações; quando cita outros autores, não assinala as obras respectivas. Daí resulta que ele é muitas vezes impreciso, superficial ou mesmo totalmente inexato; isto se verifica em grau máximo quando toca em questões religiosas, principalmente do Cristianismo (como se observará um pouco
adiante). Dir-se-ia que está dominado, consciente ou inconsci­entemente, pela intenção preconcebida de desfigurar e rejeitar.

Silva Mello confessa mesmo que nunca se preocupou com a procura de provas seguras e evidentes em favor do ateísmo: não examinou de maneira filosófica e científica os fundamentos da posição irreligiosa que ele, em juventude, como que «por efeito de um estalo», resolveu adotar. Como então poderia rei­vindicar para si alguma autoridade no seu empenho de refutar a Religião? Haja vista a seguinte passagem:

Em criança, pela idade dos 8 aos 10 anos, atravessei uma fase de extrema religiosidade,... havendo as minhas tendências religiosas de­saparecido pouco tempo depois. Não sei como ocorreu essa perda de crença, essa inconversão, mas parece-me que o processo foi lento, sur­do, operando-se aos poucos, à minha revelia, até chegar ao ponto de sentir, então de maneira concreta e palpável, a convicção de que Deus não podia existir, não passava de uma hipótese absurda, que nada podia explicar. Havia algo como o estalo de Vieira, que no meu caso teve inversa significação. O fato principal é que essa con­vicção instalou-se definitivamente no meu espírito, sem nunca com­portar qualquer dúvida ou recuo, sequer a preocupação de encon­trar provas mais seguras e evidentes. Se havia qualquer coisa de claro, de positivo, de indiscutível para mim, era esse ponto de vista, que tinha a força de uma verdade por si própria imanente, axio­mática, indiscutível pela sua evidência. Por isso não precisava de novas provas, de novos argumentos e justificações para manter tal convic­ção. Em vez disso, o que houve sempre depois foi uma grande indi­ferença pelos problemas religiosos, que não mereciam sequer estudo e atenção, porque já de antemão pareciam-me alheios à realidade, não passando de absurdas interpretações. Se as premissas impu­nham-se (sic!) assim como falsas ou errôneas, tornava-se natural que as conclusões não pudessem deixar de sê-lo, o que explica a minha atitude de indiferença, quase de desprezo pelas questões teológicas... Nunca pensei em ocupar-me especialmente da questão religiosa, tão fora se encontrava ela das minhas tendências e preocupações...» (II vol., pág. 802-4).

Esta segunda observação de índole geral será exemplifi­cada nos tópicos que agora se seguem.

2. Observações particulares

Realçaremos alguns dentre os diversos assuntos em que Silva Mello manifesta insuficiente ou errôneo conhecimento da Religião, Religião que, mesmo assim, ele pretende criticar.

1) História bíblica e história do Cristianismo

Deteremos nossa atenção sobre o cap. XXXIV do II volu­me, que trata do Judaísmo e do Cristianismo. À pág. 612 lê-se:

«Quanto ao Velho Testamento, parece ter sido escrito primitiva­mente em hebraico e traduzido para o grego por ordem do imperador egípcio Ptolomeu Filadelfo, que viveu de 183 a 246 antes de Cristo. O trabalho foi executado por 70 sábios hebreus, provindo dessa tra­dução grega a versão latina, a chamada Vulgata de São Jerônimo, que os judeus e os, protestantes consideram em parte como apócrifa, embora seja a aceita pelo catolicismo.»

Esta breve passagem refere mais de uma notícia falsa.

a) A pretensa história dos setenta sábios aqui consignada é hoje em dia reconhecida como lenda, por parte dos estudiosos tanto judeus como cristãos. O Prof. Silva Mello não sabe disto?

Note-se outrossim a contagem de anos: «de 183 a 246 antes de Cristo» ... Os números deveriam estar invertidos, pois se trata da era pré-cristã. «Mero erro de imprensa!», dir-se-á. Admitimo-lo sem dificuldade... Confessemos, porém, que o erro é grosseiro; somado a outros muitos que ocorrem em ou­tras páginas do trabalho, parece revelar, no mínimo, descui­do de revisão, concorrendo para o descrédito geral da obra.

b) A tradução latina da Bíblia baseada no texto grego dos LXX intérpretes é chamada «Vetus Latina» ou pré-jeronimiana, não «Vulgata», como diz o autor. Justamente S. Jerônimo refez a tradução latina, partindo dos originais hebraicos; é a esta versão que se dá o nome de «Vulgata» latina!

c) S. Jerônimo não traduziu alguns livros do Antigo Tes­tamento, livros que os judeus e os protestantes hoje em dia não reconhecem como escritos bíblicos. Em conseqüência, S. Je­rônimo é considerado como autoridade, ao menos pelos protes­tantes. Não é, pois, a «Vulgata de S. Jerônimo» que os protestan­tes rejeitam como «apócrifas, mas é a Vulgata como ela foi edi­tada posteriormente na Igreja Católica (com os sete livros que os protestantes e judeus chamam «apócrifos»).

A propósito dos apócrifos, veja «P. R. » 6/1957, qu. 5.

Pág. 615: «Favos de mel estão mamando dos teus lábios, ó esposa». O autor tenciona citar o Cântico dos Cânticos 4,11. Houve, porém, um erro de imprensa: em vez de «mamando» (o que no caso é ridículo), dever-se-ia ler «emanando» ou en­tão: «Teus lábios distilam o mel, ó bem-amada!»

Pág. 616: O autor se refere a dois catálogos de livros bíblicos que estavam em uso entre os judeus: um catálogo, mais amplo (em que se encontravam os livros de Tobias, Judite, Ba­ruque, Sabedoria, Eclesiástico e I/II Macabeus), catálogo este adotado pelos israelitas de Alexandria e pela Igreja Católica. O outro catálogo carecia dos sete livros mencionados; era o dos judeus da Palestina; foi preferido por Lutero.

A este respeito escreve Silva Mello:

«Lutero levantou-se contra todos os textos discutidos, tanto do Velho quanto do Novo Testamento. Nessas condições, a Igreja cató­lica teve de se manifestar, havendo decidido pelo Concilio de Trento, reunido em 1546, que a tradução grega dos setenta era de inspira­ção divina e devia ser considerada como infalível. Mas os protestantes continuaram não aceitando o que fora recusado por Lutero, de ma­neira que, nas suas Bíblias, não figuram o Eclesiastes, a Sabedoria de Salomão, Baruch, Tobit. Judit, e Macabeus I e II. No meu exem­plar, recebido como presente de formatura no Granbery, num ginásio de Juiz de Fora mantido por metodistas norte-americanos, dos quais Granbery foi um dos bispos mais notáveis, não figura nenhum dos livros que acabam de ser citados, exceto o Eclesiastes. »

A propósito deste trecho, pode-se observar:

a) O Concílio de Trento de modo nenhum se pronunciou sobre «a tradução grega dos Setentas; esta, já havia muitos sé­culos, não estava em uso entre os cristãos do Ocidente. O texto que o Concílio de Trento teve em mira, foi a Vulgata latina, declarando-a autêntica, isto é, tradução isenta de erros dogmá­ticos, o que não quer dizer: «de inspiração divina» nem «infa­lível».

b) Silva Mello se admira porque o seu exemplar da Bíblia, editado por protestantes, contém o Eclesiastes... Terá sido des­cuido ou exceção dos editores? - Em verdade, o Eclesiastes se encontra em todas as edições da Bíblia, tanto católicas como protestantes; o que não existe na Bíblia dos protestantes, é o Eclesiástico!

Desta vez já não se trata de mero erro tipográfico. O autor não teve presente que há na Bíblia dois livros distintos com títulos semelhantes: o Eclesiástico e o Eclesiastes! Tão pouco conhece ele a Bíblia!

À pág. 616, lê-se: «A edição da Bíblia considerada como a mais autêntica... foi escrita primitivamente em hebraico... A tradução hebraica é julgada a mais aproximada do texto pri­mitivo».

Erro tipográfico, sim.. . Erro, porém, que não podia ter escapado a um revisor conhecedor do assunto ou, ao menos, idôneo e atento; dever-se-ia ler: «a tradução grega».

Pág. 617. Aludindo aos sete mencionados livros do Antigo Testamento chamados «apócrifos» pelos Protestantes, diz Silva Mello:

... Apócrifos, que merecem da Igreja anglicana bastante crédito, embora não entrem no livro de suas preces habituais. É o contrário dos católicos, que, apesar da aprovação formal do Concílio de Trento, parece (ou parecem?) terem dúvidas quanto ao valor canônico daque­les textos. A Igreja grega, por uma ironia da história, seguiu os pro­testantes. não aceitando os livros em questão, embora a sua autori­dade baseia-se (ou se baseie?) no texto grego da Setuagenária

Os dizeres acima sugerem duas advertências:

Justamente os católicos não nutrem dúvida sobre o valor canônico dos sete citados livros: consideram-nos parte integrante e indispensável da Bíblia Sagrada. Os anglicanos não pensam assim, embora os leiam como escritos piedosos.

O texto grego da Setuagenária! – Setuagenária é aque­la que tem setenta anos. Ora tal não é o caso do referido texto grego, que conta mais de 2.000 anos; é, sim, chamado «dos Se­tenta (Septuaginta, em latim), intérpretes».

Pág. 621. Encontra-se a passagem seguinte:

«As epístolas de S. Paulo... não mencionam Maria, como tam­bém não os Evangelhos de São Marcos, de São João e o Apocalipse. As referências de São Mateus e São Lucas são provavelmente interpe­lações, porque como é conhecido, estão em contradição com as genea­logias desses Evangelhos... »

Sem levar em conta a informação inexata como tal, ape­nas chamaremos a atenção para mais um erro assaz ridículo: «interpelações» em vez de «interpolações».

Pág. 622. Informação errônea numa frase mal construída:

«Muito importante é o fato de todos os Evangelhos... haverem sido escritos muito tempo depois da morte de Jesus vir ao mundo»

Erro de tipografia ou erro de lógica? - Nesse estilo, po­de-se fazer critica realmente abalizada?

Pág. 6.24. O autor refere-se ao texto de Mt 28,19: «Ide e pregai a todas as nações, batizando-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo», e diz:

«Tem-se mostrado que isso está de acordo com a doutrina da Santíssima Trindade, da qual nem Marcos nem Lucas podiam ter co­nhecimento. Nos Atos dos Apóstolos, o batismo era feito única e invariavelmente em nome de Jesus. Tem-se concluído que o versículo não deve ter sido escrito pelo próprio São Mateus, sim por qualquer teólogo depois dele, quando a igreja aceitara o dogma da Trindade, 'tão desconhecido do próprio Cristo quanto o seria a nona sinfonia de Beethoven'. O dogma da Trindade surgiu alguns séculos depois, apa­recendo nos textos latinos somente a partir do século sexto. A questão permaneceu tão cheia de controvérsias que, ainda em 1897, na Congre­gação do Santo Ofício de Roma, discutiu-se se podia ser ela negada. A conclusão foi de que não podia ser negada, 'embora vinte e três anos depois o eminente teólogo católico, Heinrich Vogel, de Bonn, pu­blicando uma nova edição critica do Novo Testamento em grego, dei­xasse a questão simplesmente de lado'».

Este trecho sugere breve comentário:

A passagem de Mt 28,19 está em todos os manuscritos gre­gos e nas antigas traduções do Evangelho de S. Mateus. Os críticos leais não duvidam de que fazia parte integrante do texto original; é, portanto, expressão do dogma da SS. Trindade; en­sinado pelo próprio Jesus.

Este artigo de fé não foi acrescen­tado ao credo séculos depois, como supõe Silva Mello.

O autor mais uma vez faz confusão. O texto trinitário controvertido não é o de Mateus 28, 19, mas o da epístola de S. João 5,7b-8ª (o chamado «coma joaneu»):

«Três são os que dão testemunho no céu: O Pai, o Verbo e o Espírito Santo, e estes três são um só. E três são os que dão testemunho na terra: o Espírito, a água e o sangue, e estes três são um só».

A fórmula trinitária aqui encontrada aparece pela primeira vez no séc. V, sob a pena de bispos da África. Terá sido in­troduzida no texto de São João por essa época. Na Idade Média era tida como genuína. No séc. XVI, porém, os críticos come­çaram a duvidar de sua autenticidade. .. Aos 13 de janeiro de 1897, a Congregação do S. Ofício, tendo em vista os abusos da crítica racionalista da época, declarou não ser lícito aos católi­cos recusar a autoridade do «coma joaneu» (texto acima subli­nhado). Tal pronunciamento, porém, era meramente disciplinar e provisório; não visava proibir os estudos dos críticos católi­cos sobre a genuinidade do texto discutido, como declarou explicitamente o S. Ofício aos 2 de julho de 1927. Hoje em dia a exe­gese católica, com a aprovação do magistério oficial da Igreja, não hesita em rejeitar o coma joaneu como interpolação ao texto de S. João. - Isto, porém, está longe de significar que o, próprio dogma da SS. Trindade tenha sido tardiamente cria­do ou inventado pelos teólogos...

Pág. 626. Acha-se: «No Concílio de Nice, do ano de 325 da nossa era... » . Corrija-se para Nicéia. Houve, sim, um con­cílio regional em Nice (Trácia ), mas no ano de 359. Outra con­fusão de quem pouco entende do assunto...

Pág. 634. Lê-se: «Desde que cessou de ser perseguido, o Cristianismo tornou-se violentamente perseguidor. Teodorico proibiu os cultos dissidentes e toda idéia nova foi considerada como inimiga».

Mais uma vez, equívoco... O soberano que o escritor tem em vista, não é Teodorico, mas Teodósio I o Grande (379-395) Este Imperador Romano consolidou as leis promulgadas por Constantino I (313-237) em favor da Igreja, tornando mesmo o Cristianismo religião oficial do Império. O «Teodorico» que in­terveio com maior projeção na história da Igreja, teve atuação assaz diversa da que Silva Mello descreve: rei dos Ostrogodos (471-526), era ariano (alheio à Igreja como tal ou ao Cristia­nismo ortodoxo); para com o Cristianismo tomou atitudes de tolerância até 519; no fim do seu governo, porém, tornou-se infenso aos cristãos, mandando prender alguns dos mais famo­sos destes, entre os quais o Papa João I (que morreu no cár­cere em 526).

Tal confusão entre Teodósio e Teodorico, ainda que se devesse exclusivamente ao trabalho tipográfico, contribui para lançar o descrédito sobre a afirmação que Silva Mello tem em vista na passagem citada: pelo fato de haver Teodósio comba­tido o paganismo no Império Romano, não se pode dizer que o Cristianismo, «desde que cessou de ser perseguido, se tornou violentamente perseguidor»!

Assim passamos rapidamente em revista um dos principais capítulos da obra de Silva Mello, procurando mostrar quanto deixa a desejar. Poderíamos fazer semelhante análise de outros capítulos. Isto, porém, ultrapassaria os limites do presente artigo, nem seria neces­sário para evidenciar quão pouca autoridade possui o escritor para criticar a Religião e, em particular, o Cristianismo. Nas linhas abaixo limitar-nos-emos a breves observações sobre outros tópicos de «Religião: prós o contras».

2) O conceito de Religião

Para o autor, toda Religião é sistema que impõe ameaças e medo, concorrendo para deprimir os ânimos (cf. pág. 650s; 656-8s. 790. 792...).

Reconheçamos que, se de fato Religião fosse isso, bem me­receria ser banida da sociedade. Constituiria verdadeira aber­ração; professaria, sim, a existência de um Deus que (por seu conceito mesmo) seria o Autor da dignidade humana e, ao

mes­mo tempo, o Esmagador dessa mesma dignidade. Ora está cla­ro que Religião, devidamente entendida, não pode ser isso, pois constituiria algo de contraditório em si mesmo. Na realidade, Religião significa a consumação da personalidade humana; é a resposta autêntica, proveniente de um Ser real objetivo trans­cendente, às aspirações mais nobres que o homem experimenta em si. Deus é comparável ao pólo Norte que agita a agulha magnética, sem mesmo que esta o saiba, e que faz que essa agulha só se fixe se se dirige para o Norte. Assim todo homem é, por sua natureza mesma, inquieto, de tal modo que só se repousa e «se realiza» quando se volta para Deus, cultuado na Religião. A inteligência esclarecida e a vontade forte do homem se afirmam da maneira mais brilhante possível quando se aplicam a Deus.

O artigo de «P.R. » 19/1959, qu. 1 tenta mostrar como a Reli­gião sempre inspirou as grandes realizações da civilização e da cultura através dos séculos.

Em «P.R. » 73./1964, qu. 2 acham-se catalogados os nomes de grandes cientistas do século passado e do presente que cultuaram a Deus.

3) O conceito de Infinito

Tenha-se em vista a seguinte passagem do vol. II pág. 426:

«O infinito excede às nossas lucubrações, é uma noção humana­mente inconcebível porque, além de qualquer limite, podemos imaginar sempre algo de mais remoto. E o mesmo acontece em relação ao passado porque, antes de qualquer origem, podemos conceber algo anterior».

O autor parece conceber o Infinito como uma série sem fim de seres finitos. Ora tal noção é infantil ou ilógica.: seres finitos acumulados nunca dão o Infinito. Este é radicalmente de outra índole: significa a posse simultânea (não extensa, nem no tempo nem no espaço) de todo o Ser. Por isto o Infinito não pode ser identificado com este mundo, que se estende no tempo e no espaço. É, porém, necessário admitir a sua existên­cia para justificar a existência dos seres finitos.

De fato. Admita-se um conjunto de espelhos (A, B, C... ), cada um dos quais reflete uma imagem. Dir-se-á então que a imagem do espelho A lhe vem do espelho B, a do espelho B vem do espelho C ... , mas será preciso que nos detenhamos finalmente nessa série de imagens relativas: deveremos encon­trar a imagem absoluta ou o objeto como tal, donde procede a primeira imagem espelhada. Sem esse objeto absoluto ou inde­pendente não se explicaria a série de imagens relativas ou de­pendentes. Assim analogamente é necessária a existência de Deus, Primeira Causa não causada, Causa independente, que explica a existência das múltiplas causas dependentes que o mundo apresenta.

Donde se a improcedência do raciocínio seguinte:

«Tiveram as causas, cujo encadeamento a ciência procura estudar, um começo, uma primeira-causa? A resposta pode ser afirmativa, por­que é impossível conceber-se uma cadeia infinita. Mas pode ser tam­bém negativa, porque uma primeira causa sem causa não é concebí­vel. São becos sem saída, para os quais os filósofos tem procurado solução, em geral complicando o trânsito, em vez de facilitá-lo» (II 426).

4) A negação da alma humana

Eis o que a propósito escreve Silva Mello:

«Encontro numerosas provas que demonstram a sua inexistência (da alma humana). Uma delas é a de olharmos em torno de nós e considerarmos a vida dos nossos semelhantes. A regra é de ser ela de uma insignificância tão flagrante, tão igual, tão vazia, tão sem importância, que não se compreende porque toda essa gente, que se arrasta pela vida de maneira tão banal, deva prosseguir viva no além, à custa de uma alma que viveu tão vulgarmente cá na terra. E in­significantes somos todos nós, a totalidade dos homens, pois também os insignes e importantes são de uma tremenda insignificância... Eu ­tenho tido ocasião de conhecer alguns prêmios Nobel e confesso que os achei todos seres humanos muito comuns, não raro vulgares, logo que saem da sua especialização. Não vejo porque ou para que precisariam ter uma alma, se a negamos ao homem comum. E esse homem comum é realmente tão comum, tão vulgar, tão semelhante de caso para caso, que a sua alma parece-me uma inutilidade, sem qualquer razão. para existir» (II 786).

Em resumo, parece o autor dizer: Não existe alma huma­na porque julgo que meus semelhantes se comportam de ma­neira banal e, por isto, não merecem permanecer vivos no Além.

Ora, pode-se replicar, será tal juízo fiel?

Verdade é que todo tipo humano é limitado, mas, dentro dos limites humanos, não haverá grandeza ou heroísmo? E, caso haja algum herói entre os homens, então terá ele sua alma? E sobreviverá no Além?

Mais ainda: o utilitarismo e o pragmatismo são critérios para se definir a verdade e o erro ou os valores? - Justamente à pág. 425 Silva Mello rejeita o pragmatismo porque diz que o bem e o mal são algo de muito relativo ou variável de acordo com a civilização e a mentalidade dos homens. Como então pode ele asseverar de maneira tão categórica que nenhuma exis­tência humana tem valor? E como pode Silva Mello deduzir desse juízo a inexistência da alma, se ele mesmo é antiprag­matista?

Os outros argumentos que o autor apresenta para negar a existência da alma humana, carecem de lógica e nada provam.

Não nos alongaremos mais sobre os numerosos conceitos errôneos dos quais se serve Silva Mello para rejeitar a Religião. Os conhecimentos que o escritor revela ter desse assunto, não permitem que se lhe atribua autoridade; a sua obra só ofusca por uma aparente erudição, que não resiste a ligeiro exame im­parcial. Antes resulta em desprestigio da causa que ela preten­de defender...

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