(Revista Pergunte e Responderemos, PR 151/1957)
Em síntese: A filosofia e a teologia hoje em dia realçam fortemente a grande importância do amor como dínamo do comportamento e da vida moral do homem. E tal valorização que leva a legitimar tudo que proceda do amor.
É necessário, porem, distinguir dois tipos de amor. Existe o amor decorrente do uso da inteligência, amor que subordina instintos e tendências sensuais ao nobre ideal que o homem conceba. É este propriamente o amor humano, que o Cristianismo ainda eleva ao plano de participação do amor de Deus. - Existe outrossim o amor-apetite que é comum ao homem e aos irracionais. Tal amor, deixado a si, pode degradar o ser humano.
É, pois, com vistas ao primeiro tipo de amor, e somente a este, que a Moral cristã ensina: "Ama, e faze o que quiseres".
Quanto ao pecado contra o próximo, é hoje particularmente recriminado, vistas as injustiças sociais de que padece a sociedade. Todavia não é o único tipo de culpa. Existem também faltas contra Deus e contra o próprio individuo. A Deus o cristão deve adesão direta na fé, no amor, na esperança, na oração. A si deve respeito, principalmente no uso de seu corpo. Quem viola os direitos de Deus ou os de sua personalidade, indiretamente prejudica o próximo.
Em suma, encerram profunda sabedoria as palavras de Saint-Exupery "Amar, entre duas pessoas, não consiste em olhar uma para a outra, mas em olharem juntas na mesma direção". O verdadeiro amor é aquele que leva duas ou mais criaturas a se auxiliarem mutuamente, a fim de que cheguem certeiramente a Deus. De tal amor se, dirá sempre: "Ama, e faze o que quiseres".
Comentário: Em nossos dias dá-se ênfase especial ao amor, seja amor conjugal, seja amor fraternal. Tornou-se mesmo axioma de grupos jovens: "Make love, not war" (Fazei o amor, não a guerra). O ódio, as guerras e as divisões têm conotação fortemente negativa na opinião pública. - A própria moral cristã em sua renovação contemporânea, procura incutir, antes do mais, o preceito do amor, pois toda a Lei de Cristo se resume em amor a Deus e ao próximo (cf. Lc 10,27s). Não dizia São João que Deus é amor (cf. 1 Jo 4,8)? E São Paulo não afirmava que o amor é o vínculo da perfeição (cf. Col 3,14)? S. Agostinho (+ 430), por sua vez, ensinava: "Ama, e faze o que quiseres". A consciência destas verdades têm sugerido frases como as que estão reproduzidas no título deste artigo. Em conseqüência, põe-se mesmo a pergunta: pode-se ainda dizer que haja pecado no caso de dois jovens solteiros que, de comum acordo, resolvem dar plena expansão ao seu amor numa noite livre, sem lesar direitos alheios? Praticam tudo o que o amor lhes sugere sem cometer violência entre si nem em relação a terceiros. Visto que e o amor que inspira tal procedimento, pode-se reprovar a conduta dos dois jovens? Numerosas casos semelhantes são julgados do mesmo modo: o amor legitima tudo, mesmo aquilo que os antigos, numa compreensão mesquinha dos afetos humanos, condenavam.
Tais proposições merecerão a nossa atenção nas paginas seguintes.
1. Dois amores
1."O que se faz por amor, não é pecado..." A ambigüidade sedutora da linguagem pede uma distinção. Reconheçam-se dois tipos de amor:
a) Existe o amor propriamente humano, que é o que se segue aos atos da inteligência. Esta apreende a verdade e a aponta a vontade. Conseqüentemente, a vontade se deleita na verdade, podendo mesmo querer praticá-la com afeto. E este querer com afeto que se chama amor em sentido próprio. Sempre coloca os bens do espírito acima dos bens da carne.
Um tal amor supõe o ideal, ou seja, uma meta que o homem pretende atingir para se realizar plenamente. Esse ideal atende as aspirações mais profundas da pessoa, que implicam sempre doação e generosidade, com renúncia a interesses egoísticos.
No cristão, tal amor é elevado a um plano ainda superior. A inteligência guiada pela fé indica a meta mais elevada, ou o ideal supremo. A vontade e a afetividade, movidas pela caridade infusa, dirigem-se a esse ideal e a tudo que se lhe prende, com amor forte e nobre.
b) Existe no ser humano outro tipo de amor, que mais propriamente deveria ser dito "apetite" ou "instinto cego"; é o amor sensual ou carnal, que visa ao prazer momentâneo, sem levar em conta a escala dos valores e os ditames da inteligência. Tal apetite muitas vezes trai o homem e o degrada, assemelhando-o aos animais irracionais e instintivos. Pode ser erótico, cobiçoso, egoísta, etc.
Ora, quando o Cristianismo ensina que o amor é o vinculo da perfeição e que a lei de Cristo se reduz ao amor, entende o amor no primeiro sentido, pois somente este é propriamente humano e cristão. Sem desprezar afetos e sentimentos (nem o sexo), subordina-os completamente a visão de fé que caracteriza o cristão; é um amor de serviço a Deus e ao próximo, e não de serviço do individuo a si mesmo diretamente[1],
2. No que se refere a S. Agostinho em particular, note-se: este mestre reduzia toda a vida moral a pratica do amor. Distinguia, porém, duas orientações possíveis para o amor (fora das quais não via terceira):
- o amor do sujeito a si até o desprezo de Deus; seria a cupiditas ou cupidez;
- o amor a Deus e ao próximo até a renuncia ao eu individual (caso fosse necessária para se guardar a integridade do amor generoso); seria a caridade ou o amor cristão.
Tenha-se em vista a obra do mestre: "A Cidade de Deus".
Ora era a este segundo tipo de amor que S. Agostinho atribuía a legitimação de todos os nossos atos. O que se faça por inspiração de tal amor, não pode ser pecado, pois sempre dará o primado a Deus e a sua santíssima vontade; nunca poderá sugerir a prática do desmando ou do pecado.
No cristão, o autêntico amor, inspirador de todos os atos bons, não a menos do que a participação no amor do próprio Deus, como diz São Paulo: "O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi dado" (Rom 5,5).
3. Esse amor cristão parte da convicção de que o ser humano não é apenas carne e sensualidade, mas um conjunto de alma e corpo, bens espirituais e bens materiais, entre os quais é necessário estabelecer uma escala de valores. Ninguém chega a ser autêntica personalidade e filho de Deus se não domina os instintos, dizendo Não a si mesmo no momento oportuno.
O amor cristão entrega-se ao próximo não por interesse mesquinho ou concupiscência desregrada, mas porque quer o bem do próximo.
Estas reflexões permitem lançar um olhar claro sobre certos casos concretos de "amor". Pergunta-se, por exemplo:
As concessões ao sexo numa noite libertina ou num gênero de vida que não tenha definição, tornam realmente os seus clientes mais felizes? - Pode-se dizer que não; o uso libertino do sexo vem a ser ilusão e fuga; em vez de construir personalidades, suscita seres obcecados e moralmente amorfos.
Pode-se dizer que alguém quer bem a outrem pelo fato de lhe proporcionar um prazer sensual que não tenha qualidade nem significado claro? - Não; uma tal concessão não se chama amor. Amor quer dizer "ajudar o semelhante a ser mais ele mesmo, mais honrado e digno, andando de cabeça erguida".
Para amar assim, genuinamente, o cristão tem que saber resistir as seduções, repelindo certos convites com vontade decidida. Essas atitudes negativas são expressões de autêntico amor, porque ajudam o próximo a se libertar das suas paixões e a se levantar do seu estado de vida indefinida.
De modo geral, o homem mais ama o próximo quando lhe diz um Não oportuno do que quando lhe diz um Sim despropositado e meramente sentimental.
2. Pecado e prejuízo do próximo
1. Inegavelmente certas correntes de filosofia moderna ajudaram o homem contemporâneo a tomar consciência dos valores da sociedade e das dimensões sociais de sua vida. Ninguém pode viver isoladamente; ninguém se realiza a sós.
Estas proposições são verídicas também no plano cristão. Contribuíram para avivar nos fiéis a consciência de suas responsabilidades perante a sociedade eclesiástica e civil. Furtar-se aos deveres para com o próximo violando a justiça ou o amor ao semelhante, eis pecados que, sem grande dificuldade, todos os cristãos reconhecem como pecados.
Muitos sentem-se facilmente culpados de um pecado coletivo, ou seja, de participar mais ou menos voluntariamente no egoísmo social ou na exploração dos pobres ou ainda nos horrores da guerra. Essa sensibilidade para com os valores sociais e os deveres daí decorrentes é por certo uma vitória do pensamento cristão sobre o individualismo. Existe, porém, em nossos dias o perigo de se restringir o conceito de pecado as faltas contra a justiça e o amor ou contra o próximo. Só haveria pecado quando se ferissem direitos alheios ou quando se prejudicasse o próximo.
Ora esta última afirmação é evidentemente errônea. As dimensões sociais da vida do cristão jamais deverão levá-lo a esquecer o aspecto pessoal e intransferível de seu comportamento. O cristão tem deveres para com Deus e para consigo que não afetam,diretamente as relações com o próximo e que devem ser cumpridos a fim de que não cometa pecado. A Deus o cristão deve fé, amor, obediência, culto (oração individual e comunitária, incluindo a S. Missa aos domingos) ... A si mesmo o cristão deve respeito: respeito as leis de natureza, reverencia ao corpo (que não pode ser reduzido a categoria de instrumento do prazer). A infração desses deveres para com Deus e com o próprio sujeito pode ser tão grave quanto os pecados contra a justiça; além do que, note-se que quem prejudica a si pelo pecado, por mais secreto que este seja, não pode deixar de estar prejudicando também ao próximo, pois concorre para o depauperamento de uma personalidade que faz parte da sociedade.
O Cristianismo tanto é comunitário quanto é personalista. Diz muito bem o arcebispo de Tolosa, D. Jean Guyot, em documento publicado aos 23/1/1972: "Toda a tendência da Revelação cristã é uma tendência à interioridade. O paradoxo do Cristianismo consiste em que ele é simultaneamente uma comunidade e uma intimidade incomunicável" ("Documentation Catholique" nº 1604, 5 / III / 1972, p. 228).
Vê-se, pois, que o uso livre do sexo por parte de duas pessoas que estejam de comum acordo entre si e não lesem terceiros ao fazê-lo, não deixa de ser pecado; é, sim, ofensa a Deus e às duas pessoas envolvidas na "aventura"; além do que, será indiretamente detrimento para a sociedade.
2. Verdade é que se poderia conceber a seguinte réplica a tal afirmação:
O conceito de desonra decorrente da liberdade sexual é convencional. Por que não se dizer que o uso do sexo inspirado pelo amor é sempre honroso, quaisquer que sejam as circunstâncias em que ocorra?
A tal observação se daria a seguinte resposta: o ser humano não improvisa sua grandeza; mas ele encontra os traços de sua grandeza e nobreza impressos na sua própria natureza. Ora a natureza humana é tal que a inteligência (e a fé) devem obter a primazia de comando, subordinando a si os instintos e apetites sexuais. O uso do sexo fora do matrimônio carece de finalidade e contradiz ao planejamento harmonioso da vida dos interessados; a criança que desse consórcio nasça, há de ser uma criança sem lar constituído. Para que não venha a ser tal, faz-se necessário o uso de anticoncepcionais, que permitem o uso do sexo sem a conseqüência da prole. Ora o prazer e a satisfação sensuais justificariam tais recursos ou tais desmandos? - Razoavelmente falando, não. Somente a renúncia ao raciocínio, ou seja, à dignidade do homem, pode legitimar o libertinismo sexual.
3. Talvez, porém, queira alguém observar ainda: "Nunca matei, nunca roubei, nunca cometi adultério ou coisa semelhante! Não vejo pecado em mim!"
Tal pessoa, sem o saber, poderia incorrer no erro dos fariseus. O pecado não consiste apenas em atos exteriores, mas também em atos internos, mesmo que não atinjam diretamente o próximo. Mesmo sem matar ou roubar ou adulterar, pode alguém, de consciência tranqüila, afirmar que ama a Deus com todo o seu coração, todas as suas forças e ao próximo como a si mesmo? Pode essa pessoa dizer que satisfaz à exigência, proposta por Jesus, de amarmos como Ele amou (cf. Jo 15, 12) ? - Esse amor apregoado por Cristo exige severa disciplina de vida e luta do cristão <
3. Uma conclusão
Estas reflexões sobre o amor cristão podem encerrar-se com valiosa frase de Antoine de Saint-Exupéry, autor de "O pequeno Príncipe": "Amar, entre duas pessoas, não consiste em olhar uma para a outra, mas em olharem juntas na mesma direção".
Nestas palavras encerra-se profunda filosofia. Com efeito, pode parecer óbvio, à primeira vista, que o amor consista em nos determos sobre a criatura amada, contemplando-a e procurando desfrutar tudo que ela possa dar; é o que fariam, por exemplo, esposo e esposa. - Observe-se, porém, que um tal amor vem a ser ilusório. Cedo ou tarde, a criatura se cansa de olhar para outra criatura, por mais encantadora que esta pareça a princípio. A fim de que o amor seja duradouro e construtivo, é preciso dirigi-lo para o Infinito. O verdadeiro amor, portanto, é aquele que une firmemente duas criaturas para que, juntas, auxiliando-se mutuamente, olhem para Deus e se encontrem em Deus. O marido não foi feito para se realizar plenamente na sua mulher, nem vice-versa, como também criatura alguma foi feita para se realizar adequadamente em outra criatura. Esposo e esposa são pequenos demais um para o outro porque ambos têm a capacidade do Infinito. Por isto só amamos verdadeiramente quando nos ajudamos uns aos outros a nos encaminharmos todos para o Infinito e a nos encontrarmos todos em Deus. É a respeito de um tal amor que bem se pode dizer: "Ama, e faze o que quiseres".
Estêvão Bettencourt O.S.B.
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