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sábado, 16 de junho de 2007

Purgatório: será mesmo?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 126/1970)

«A existência do purgatório é de fé?

Não se deveria purificar o clássico conceito de purga­tório?

É o dinheiro que salva as almas do purgatório?»

Em síntese: O purgatório é um estado póstumo em que a alma se purifica das inclinações desregradas e dos resquícios do pecado com que tenha deixado a vida presente.

Embora mantenha uma atitude fundamental de amor a Deus, pode uma, criatura tolerar em sua conduta freqüentes faltas mais ou menos deliberadas, e morrer nesse estado. Em tal caso, Deus não condena sua criatura, mas lhe proporciona um estágio extraordinário de purificação, pois é impossível que uma alma, portadora da mínima sombra de falha, sustente a visão de Deus face-a-face.

A purificação póstuma, conforme os bons teólogos, se faz não pelo fogo, mas pela penetração do amor de Deus nas profundidades da alma, de modo a extinguir todo vestígio de egoísmo e amor desor­denado. Tal purificação é dolorosa: a alma verificará amargamente ter sido leviana, ter perdido tempo e graça de inestimável valor.

A dor do purgatório é mesclada de alegria, pois a alma em tal condição sabe que pertence irreversivelmente ao amor de Deus.

Visto que as almas no purgatório nada podem merecer para ace­lerar o seu processo de purificação, os cristãos na terra podem-lhes ser úteis mediante a chamada «comunhão dos santos (ou de bens sagra­dos)». Não há alma abandonada no purgatório, pois os sufrágios da Igreja militante beneficiam todas as almas. Aquelas por quem os parentes (pobres ou incrédulos) não mandam celebrar a S. Missa, são objeto da misericórdia divina, como as demais almas do purgatório.

Evite-se comparar este estado a um cárcere onde certos prisioneiros passam melhor do que outros por terem parentes mais ricos e pres­tigiosos.

---X---

Resposta: Por «purgatório» entende-se o estado (não um local) em que as almas dos fiéis que morrem no amor de Deus, mas ainda portadoras de inclinações desregradas e resquícios do pecado, se libertam destas escórias mediante uma purifi­cação do seu amor. O purgatório vem a ser uma concessão da misericórdia divina, que não quer condenar a quem O ama, mas não pode receber em sua santíssima presença qualquer sombra de pecado.

A doutrina do purgatório é, hoje em dia, especial objeto de atenção. Certas descrições assaz populares e fantasistas da expiação póstuma contribuíram, de certo modo, para fazer perder de vista quanto de belo e nobre há nessa proposição da fé. Por isto, nas páginas que se seguem, procuraremos apre­sentar a noção de purgatório despojada de concepções pouco condizentes com o depósito revelado.

Já em «P. R.» 8/1957, pp. 9-12 e 14/1959, pp. 66-72 foi abordado o tema «purgatório». Neste fascículo recordaremos e desenvolveremos quanto aí foi dito.

1. Purgatório: Bíblia e magistério

Antes do mais, é preciso averiguar o que se encontra nos mananciais da fé a respeito do purgatório.

1) Escritura Sagrada

A doutrina do purgatório não se encontra explícita nos livros da Escritura; contudo algumas passagens bíblicas apre­sentam as idéias fundamentais que a inspiram. Tenham-se em vista os textos seguintes:

a) 2 Mac 12, 39-46: «No dia seguinte, Judas foi com os seus, como era necessário, levantar os corpos daqueles que haviam sido mortos, para sepultá-los com os familiares nos túmulos de seus antenatos. Encontraram, sob a túnica de cada um dos defuntos, objetos consagrados, provenientes dos ídolos de Jâmnia, que a Lei proíbe aos judeus; tornou-se então evi­dente a todos que esta fora a causa de sua morte. Todos, por conseguinte, louvaram o Senhor, justo Juiz, que torna mani­festas as coisas ocultas. A seguir, puseram-se a orar, pedindo que o pecado cometido fosse inteiramente perdoado; e Judas, o corajoso, exortou o povo a guardar-se puro do pecado, tendo ante os olhos as conseqüências da culpa daqueles que haviam caído. Depois, havendo feito uma coleta, em que recolheu a quantia de duas mil dracmas, enviou-a a Jerusalém para ser empregada num sacrifício expiatório. Bela e nobre ação, ins­pirada pela lembrança da ressurreição! Pois, se não acreditasse que esses soldados mortos ressuscitariam, teria sido coisa su­pérflua e ridícula orar pelos defuntos. Além disto, considerava que está reservada uma bela recompensa àqueles que ador­mecem na piedade. Eis por que ele fez esse sacrifício expia­tório pelos mortos, a fim de que fossem libertados dos seus pecados».

No dia seguinte ao da vitória sobre o general pagão Gór­gias, Judas Macabeu (+ 160 a. C.) descobriu, debaixo das túnicas de seus soldados mortos, pequenos ídolos de que se haviam apoderado no saque de Jâmnia; eram objetos impuros, que a Lei proibia aos israelitas guardar consigo. Acreditava, porém, que os soldados «haviam morrido piedosamente» - o que insinua que a sua culpa não fora grave ou, caso o fora, dela se tinham arrependido antes de morrer. Não obstante, depois da morte ficaram-lhes aderências do mal, das quais deviam ser libertados, a fim de poderem conseguir a «bela recompensa». E Judas julgava que, em vista desta purificação, lhes podiam ser úteis os sufrágios dos vivos, razão pela qual mandou oferecer um sacrifício expiatório em Jerusalém.

b) 1 Cor 3, 10-16: «Conforme a graça de Deus que me foi dada, como sábio arquiteto, coloquei o fundamento, e outro constrói por cima. Cada qual, porém, veja como constrói por cima. Ninguém pode colocar fundamento senão o que está colocado, a saber, Jesus Cristo. Se alguém constrói sobre este fundamento servindo-se de ouro, prata, pedras preciosas, ma­deira, feno, palha, a obra de cada um aparecerá claramente; com efeito, o dia do Senhor a dará a conhecer, pois se revelará no fogo, e o fogo provará a qualidade da obra de cada um. Se a obra construída subsistir, o operário receberá uma recom­pensa; se, porém, a obra de alguém for consumida, o operário perderá sua recompensa; ele, contudo, será salvo, mas como que através do fogo».

O texto trata dos pregadores do Evangelho, os quais edi­ficam sobre Cristo, e não sobre fundamento estranho ou falso. Uns, porém, constroem com zelo (servindo-se de ouro, prata, pedras preciosas); outros, com negligência e tibieza (com ma­deira, feno, palha...) . O dia do Senhor ou dia do juízo reve­lará o afinco de cada qual dos operários. Enquanto os pri­meiros nada terão de temer, os outros sofrerão detrimento, isto é, padecerão dores e penas; todavia não deixarão de se salvar; salvar-se-ão depois de provar a angústia devida às suas obras imperfeitas - o que (pode-se dizer) insinua o tipo de salvação que ocorre mediante o purgatório (o fogo, porém, neste contexto não é senão o símbolo do juízo de Deus).

Os autores citam também o texto de Mt 5, 25s: Jesus aí dá a entender que, após a caminhada da vida presente (a via), pode haver um cárcere (metáfora), donde o homem réu sai depois de ter expiado por completo. O texto não é suficiente­mente claro. Como quer que seja, vê-se que a Escritura fornece ao leitor os dados que constituem a estrutura da doutrina do purgatório.

2) Magistério da Igreja

Até o século IV, a fé no purgatório é atestada principal­mente pelos sufrágios que os cristãos faziam por seus defun­tos, mormente ao celebrarem a S. Eucaristia. A praxe dos sufrágios, usual já nos tempos de Judas Macabeu (século II a. C.), continuou sem interrupção na Igreja. Já que os cris­tãos não oram pelos réprobos, estas preces supõem almas que, terminado o seu currículo terrestre, ainda não entraram na posse da bem-aventurança, podendo ser ajudadas nisto pelos fiéis sobreviventes na terra.

S. Agostinho ( 430) e os escritores subseqüentes afir­maram mais explicitamente a existência da expiação póstuma anterior ao juízo universal.

O magistério da Igreja colheu e exprimiu a fé do povo de Deus em alguns documentos, que equivalem a definições dou­trinárias.

Eis, por exemplo, um trecho da Constituição «Benedictus Deus» do Papa Bento XII promulgada em 1336:

«As almas... dos fiéis falecidos,... dado que nada tenha havido a purificar quando morreram ou nada haja a purificar quando futu­ramente morrerem, ou - caso tenha havido ou haja algo a purificar - uma vez purificadas após a morte,... essas almas, logo depois da morte e da purificação de que precisam,... foram, estão e estarão no céu» (Enquiridio, Denzinger-Schönmetzer 1000 [530]).

Como se vê, este documento ensina a necessidade eventual de purificação póstuma, purificação que, sendo transitória, pre­para a entrada na visão celeste.

O II Concílio de Lião (1264) declarou:

«Se (os cristãos que tenham pecado) falecerem realmente possuídos de contrição e caridade, antes, porém, de ter feito dignos frutos de penitência por suas obras más e por suas omissões, suas almas, depois da morte, são purificadas pelas penas purgatórias ou catartéricas... Para aliviar estas penas, são de proveito os sufrágios dos fiéis vivos, a saber, o Sacrifício da Missa, as orações, esmolas e outras obras de piedade que, conforme as instituições da Igreja, são praticadas habi­tualmente pelos cristãos em favor de outros fiéis» (Dz.-Sch. 1304 [693]).

O Concílio de Trento (1545-1563) reafirmou a existência do purgatório nos termos do anterior.

A Constituição «Lumen Gentium» do Concílio do Vaticano II professa:

«O Sacrossanto Sínodo recebe com grande respeito a venerável fé de nossos antepassados sobre o consórcio vital com os irmãos que estão na glória celeste ou ainda se purificam após a morte, e propõe de novo os decretos dos Sagrados Concílios Niceno II, Florentino e Tridentino» (n° 51).

«Reconhecendo cabalmente a comunhão de todo o Corpo Místico de Jesus Cristo, a Igreja terrestre, desde os primórdios da religião cristã, venerou com grande piedade a memória dos defuntos e, porque é um pensamento santo e salutar rezar pelos defuntos para que sejam perdoados os seus pecados, também ofereceu sufrágios em favor deles» (n° 50).

«Alguns dos discípulos de Cristo peregrinam na terra; outros, terminada esta vida, são purificados, enquanto outros são glorifica­dos» (n° 49).

Não resta dúvida, pois, de que a doutrina do purgatório constitui um dogma de fé que a Igreja definiu outrora cons­cientemente e reafirma em nossos dias por seu magistério ordi­nário e extraordinário.

Importa agora verificar com exatidão qual o conteúdo desse ensinamento da fé.

3. Que é propriamente o purgatório?

As descrições populares do purgatório por vezes quase sugerem, seja um inferno em miniatura. Tal concepção fanta­sista há de ser removida peremptoriamente.

1. Para entender o que seja o purgatório, devem-se levar em conta os seguintes pontos:

1) O amor a Deus, em um cristão, pode coexistir com tendências desregradas e pecados leves ao menos semidelibe­rados. Há, sim, em todo indivíduo humano um lastro inato e multicolor de desordem: egoísmo, vaidade, obcecação, covardia, negligência, moleza, infidelidade.. . acham-se tão intimamente arraigados no interior do homem que chegam por vezes a acompanhar as suas mais sérias tentativas de se elevar a Deus e de dar a Deus o lugar primacial que lhe cabe na criatura.

2) Todo pecado (principalmente quando grave, mas tam­bém a falta leve) deixa na alma um resquício de si ou uma inclinação má (metaforicamente: ... deixa uma cicatriz, deixa um pouco de ferrugem na alma, dificultando-lhe a prática do bem). Com efeito, o pecado implica sempre uma desordem, um amor a Deus, que não se consegue impor por completo a todos os atos do sujeito, mas se vê contestado pelo egoísmo ou a procura do deleite desregrado. Quando, após o pecado (grave ou leve), a pessoa, movida por arrependimento e amor, pede perdão a Deus, o Pai do céu perdoa; o Senhor jamais rejeita uma contrição sincera. Todavia o amor do pecador arrepen­dido, por mais genuíno e leal que seja, pode não ser suficiente­mente intenso para extinguir todo resquício de concupiscência existente na alma. Em conseqüência, o pecador arrependido recebe o perdão do seu pecado, mas ainda deve prestar satis­fação pelo mesmo. Essa satisfação não há de ser comparada a uma multa mais ou menos arbitrária imposta por Deus ou a um castigo vingativo; ela não é senão uma exigência do amor da alma a Deus, amor que, estando debilitado, pede ser corro­borado e purificado.

O Concílio de Trento declarou:

«No tocante à satisfação... é de todo falso e alheio à Palavra de Deus afirmar que a culpa nunca é perdoada pelo Senhor sem que toda a pena correspondente também seja perdoada. Com efeito, nas Escrituras Sagradas encontram-se claros e famosos exemplos que... refutam este erro com plena evidência» (Denz.-Sch. 1689 [904] ).

Como exemplos bíblicos de expiação exigida por Deus, mesmo depois de perdoada a culpa, podem-se citar os seguintes:

Moisés e Aarão cederam à pouca fé em dado momento de sua vida; por isto viram-se pelo Senhor privados de entrar na Terra Prometida, embora não haja dúvida de que a culpa lhes tenha sido perdoada (cf. Núm 20,12s; 27, 12-14; Dt 34, 4s).

Davi, culpado de homicídio e adultério, foi agraciado ao reconhecer o delito; não obstante, teve que sofrer a pena de perder o filho do adultério (cf. 2 Sam 12,13s).

Em outros textos, o perdão é estritamente associado a obras de expiação:

Assim o velho Tobias ensina a seu filho que a esmola o libertará de todo pecado e da morte eterna (cf. Tob 4,11s). Algo de semelhante é anunciado por Daniel ao rei

Nabuco­donosor (cf. Dan 4,24).

O Profeta Joel, junto com a conversão do coração, exige jejum e pranto (cf. Jl 2,12s).

A justa satisfação pode ser prestada pela criatura ou na vida presente (processo este que é normal e deveria ser con­siderado por todos os cristãos como programa de vida aqui na terra); o penitente então se empenha corajosamente por livrar-se de suas tendências desregradas e tornar puro o seu amor a Deus e ao próximo. Ou, se não o consegue nesta pere­grinação (por motivo de covardia, tibieza ou outro qualquer), compreende-se logicamente que deverá chegar a essa pureza na vida póstuma antes de entrar na visão face-a-face de Deus. Então a criatura se arrependerá por ter condescendido com a moleza e a indefinição; a alma terá consciência de que devia ter sido mais coerente e menos leviana; tomará consciência de que foi cercada pelo amor de Deus no decorrer de toda a sua vida e o ignorou ou esbanjou (amarga consciência!). Esta verificação não poderá deixar de lhe ser dolorosa, de mais a mais que a alma perceberá que, por causa de sua indefinição na terra, lhe será diferida ou postergada a entrada no gozo definitivo de Deus; ser-lhe-á duro averiguar que faltou ao en­contro marcado com Deus, justamente após a morte, quando as almas mais fome e sede têm de Deus.

Aprofundando as idéias acima, pode-se dizer: é devagar ou lentamente que o homem se torna, segundo todas as dimen­sões do seu ser, o que ele já é no «núcleo» de sua

personali­dade. Em outros termos: uma decisão generosamente abraçada pela vontade do homem[1] não costuma penetrar e mover instantaneamente todas as camadas da personalidade; ela muitas vezes encontra, no fundo da consciência ou também no incons­ciente do indivíduo, uma resistência mais ou menos tesa, resis­tência que provém de atos e hábitos do passado do sujeito. E essa resistência que deve ser vencida, de modo a exigir da alma o empenho cada vez mais enérgico do seu amor a fim de que este penetre toda a respectiva personalidade.

4. Noções complementares

1. Paradoxalmente, o purgatório é também um estágio de vida cumulado de alegria, ... de alegria a que nenhum dos prazeres da terra pode ser comparado. Com efeito, a alegria no purgatório jorra da consciência que a alma tem, de que ela pertence ao amor de Deus de modo irreversível. Ela sabe que é o amor que a purifica e que nela cresce para penetrá-la por completa.

Deve-se mesmo dizer que a alma no purgatório não deseja evitar este estado, pois reconhece que é um dom da miseri­córdia divina sem o qual ela não poderia atingir a sua consu­mação.

S. Catarina de Gênova ( 1510) deixou no seu «Tratado sobre o purgatório» as seguintes reflexões, que merecem ser levadas em conta:

«Enquanto depende de Deus, vejo que o céu não tem portas, e aí pode entrar quem queira, pois Deus é todo bondade; mas a divina essência é tão pura que a alma, tendo em si algum empecilho, se precipita por si no purgatório, onde encontra essa grande misericór­dia: a destruição do seu empecilho.

Enquanto a purificação não está terminada, essas almas com­preendem que, caso se aproximassem de Deus pela visão beatífica, não estariam no seu lugar e, em conseqüência, experimentariam maior sofrimento do que ficando no purgatório» (cap. 9 e 16).

«Paz nenhuma é comparável à das almas do purgatório, excetuada a dos Santos no céu; e essa paz aumenta incessantemente pela in­fluência progressiva de Deus sobre essas almas e à medida que os empecilhos desaparecem. A ferrugem do pecado é o obstáculo...; quando esta ferrugem se vai, a alma reflete cada vez mais perfeita­mente o verdadeiro Sol que é Deus. Sua felicidade aumenta na pro­porção em que a ferrugem diminui» (cap. 2).

«As almas do purgatório não podem desejar outra coisa senão permanecer onde estão, como Deus em justiça dispôs... Não podem dizer consigo mesmas: 'Esta alma será libertada antes de mim', ou 'Eu antes dela'... Acham-se tão satisfeitas com as disposições de Deus a seu respeito que amam tudo que agrada a Deus» (cap. 1).

3. Vê-se, pois, que não se deve comparar o purgatório ao inferno. Neste as almas se acham incompatibilizadas com o amor e fixadas para sempre na aversão a Deus e ao próximo. Enquanto o purgatório é prenhe de esperança e caridade se­renas, o inferno é a retorsão de todos os valores humanos e cristãos.

No inferno, além da ausência de Deus, admite-se algo que a S. Escritura chama «fogo», aguilhão físico e real, cuja na­tureza os teólogos não sabem explicitar com exatidão. Fala-se também de «fogo do purgatório». Parece, porém, que não se trata senão de uma metáfora para designar o próprio sofri­mento decorrente da dilação da visão face-a-face.

O conceito de «fogo do purgatório» provocou no século XV (época do Concílio de Florença) decidida repulsa por parte dos cristãos orientais separados de Roma; a estes o fogo do purgatório lembrava um inferno provisório, ou seja, uma aber­ração doutrinária.

Os cristãos do Oriente até o século XVII aceitavam, sem dificuldade, a idéia de uma purificação póstuma no sentido aqui exposto (sem menção de fogo). A partir do século XVII, porém, sob a influência de autores protestantes, têm hesitado em sua posição doutrinária. Não obstante, ainda hoje muitos aceitam uma purificação póstuma, evitando descer a porme­nores e reconhecendo a eficácia da oração e dos sufrágios pelos defuntos.

A estas idéias deve-se acrescentar algo sobre

5. Sufrágios pelos defuntos

Distingam-se dois aspectos do tema: 1) sufrágios dos fiéis na terra pelas almas do purgatório;

2) preces das almas em favor dos homens neste mundo.

1) Sufrágios pelas almas

1. Desde os primeiros séculos a Igreja tem orado pelos defuntos, principalmente na celebração da S. Eucaristia. O Con­cílio do Vaticano II, confirmando os dizeres de Concílios ante­riores, convalidou tal praxe (ver textos à p. 17 [249]).

O fundamento teológico dos sufrágios pelos defuntos é o seguinte:

As almas, no purgatório, não podem abreviar nem ace­lerar o processo de sua purificação, pois são incapazes de me­recer algo (o período de méritos é somente a vida presente). Contudo os cristãos na terra podem ser-lhes úteis em virtude da Comunhão dos Santos (ou Comunhão dos bens sagrados), que une todos os membros da Igreja entre si; já que todos os fiéis - militantes, padecentes e triunfantes - formam o Corpo de Cristo, os méritos de uns beneficiam os outros. Assim po­dem os fiéis na terra satisfazer pelas almas no purgatório (ao passo que estas apenas podem «satispadecer»). Os sufrágios aplicados às almas do purgatório fazem com que estas sejam mais profundamente penetradas pelo amor de Deus, o qual nelas há de consumir mais rapidamente as impurezas do pe­cado.

2. Note-se, a propósito, que a comunicação de bens espi­rituais entre os fiéis não conhece classes nem privilégios; todos os bens espirituais da Igreja circulam entre todos os membros desta. Por isto não é adequada a expressão «as almas mais abandonadas no purgatório»; todas as almas são beneficiadas pelos sufrágios gerais da Igreja; não há alma abandonada.

Mais explicitamente: não se deve conceber o purgatório como um cárcere, onde se encontrem prisioneiros de origens diversas; os que têm família numerosa e rica, aí recebem mais visitas e presentes, ou seja, passam melhor do que aqueles que pertencem a famílias pobres ou negligentes; poderão sair da prisão mais cedo do que os seus companheiros indigentes. Evite-se transpor tal imagem, com suas categorias e classes, para o além-túmulo. O purgatório, de certo modo, transcende os conceitos que adquirimos neste mundo; pertence aos sábios e misteriosos desígnios salvíficos de Deus, a respeito dos quais a Revelação Divina é sóbria. Por isto não se creia que uma alma do purgatório que não se beneficie de sufrágios - ou por não ter família, ou por só ter parentes incrédulos ou negli­gentes ou pobres - é uma «alma abandonada»; na verdade, ela está envolvida pela infinita misericórdia de Deus, à qual se dirigem constantemente as preces e os sufrágios da Igreja peregrina na terra.

3. Assim também se vê que é infundada a objeção mui­tas vezes proferida: «As almas de família pobres, que não têm dinheiro para mandar celebrar a S. Missa, sofrerão mais, e mais tempo, no purgatório do que as almas dos ricos! O di­nheiro é decisivo até no purgatório!»

Não se deve crer que essas regras de lógica terrestre e comercial sejam observadas também por Deus; o Senhor Altís­simo seria muito pobre, muito desfigurado, se atendesse menos solicitamente aos interesses daqueles que menos dinheiro têm em seu favor; herança monetária não significa primazia para alguém, diante de Deus. Jamais se deve esquecer que a graça e a misericórdia de Deus têm o primado sobre os esforços e as obras dos homens. As almas dos pobres, por conseguinte, são objeto do Amor salvífico de Deus tanto quanto as dos ricos; abstenhamo-nos de estabelecer uma ordem de prioridade nas relações de Deus com as almas.

Acontece, porém, que entre nós e as almas do purgatório há o dever de sufragar, ... e de sufragar segundo determinada ordem: impõem-se à nossa caridade primeiramente aqueles que nos estão mais próximos (parentes, amigos, colaboradores, benfeitores...). A uma família cristã - pelo fato mesmo de ser cristã - toca o dever imperioso de sufragar as almas, a começar pelos membros defuntos dessa família.

4. E como sufragar?

Evidentemente a S. Missa, sendo o sacrifício da Cruz perpetuado para beneficiar os homens através dos séculos, é, da nossa parte, o meio mais eficaz para ajudar as almas do purgatório. Esta doutrina sempre foi professada e posta em prática pela Igreja.

É oportuno frisar que não se pode oferecer a Comunhão Eucarística como tal nem pelos vivos nem pelos defuntos; a Comunhão, enquanto sacramento, age apenas sobre o cristão a quem é dada; ninguém pode receber os sacramentos pelos outros. Todavia, na medida em que é obra boa e meritória, a S. Comunhão pode ser oferecida por vivos e defuntos.

Mencionem-se também as orações, particulares e comuni­tárias, dos fiéis, a paciência nas provações de cada dia, os sacrifícios generosamente empreendidos por amor a Deus e ao próximo. - Deve-se frisar que o valor expiatório das obras boas e das preces pelos defuntos é dependente do grau de fer­vor e caridade de quem as cumpre.

5. Por último, observe-se que nos é impossível avaliar a duração do purgatório, pois este estado não é regido pelo sistema de anos e dias que na terra usamos, considerando os movimentos dos astros. No purgatório, a duração é represen­tada pelos atos dos espíritos, atos de conhecimento e amor; cada um destes atos é uma unidade de duração ou um instante espiritual, e cada qual desses instantes pode corresponder a vinte, trinta ou sessenta horas do nosso tempo solar (como uma pessoa pode permanecer horas contínuas em êxtase, absorvida por um único pensamento); os atos sucessivos dos espí­ritos constituem a série dos instantes espirituais chamada «evo» ou «eviternidade». Ora, já que não se vê qual a proporção vi­gente entre o tempo solar e o evo dos espíritos, torna-se-nos impossível avaliar a duração das penas do purgatório para al­guma alma.

2) Rogar às almas do purgatório?

É costume não raro entre os fiéis invocar as almas do purgatório a fim de que intercedam por interesses dos cristãos na terra.

Será justificado? ... recomendável?

- Até o século XVI, os teólogos, inclusive S. Tomás de Aquino ( 1274), eram contrários a tal praxe; julgavam que as almas no purgatório precisam de auxílio mais do que podem dar auxílio pela oração; acham-se em estado passivo e em expectativa, não em condições de exercer algo em favor do próximo. Apelavam também para o fato de que a Liturgia da Igreja nunca invoca os fiéis do purgatório.

Todavia, a partir do século XVI, tem-se difundido a opi­nião contrária à dos autores medievais. Os teólogos dos últimos séculos observam que o fato de estarem expiando e não pode­rem merecer não impede que as almas do purgatório orem em favor de outros. Têm inteligência e vontade lúcida; conservam toda a caridade que as animava na terra em prol dos demais membros do Corpo Místico; por que então não atuariam em nosso benefício? Deve haver fluxo e refluxo entre a Igreja triunfante, a padecente e a militante.

Nada de decisivo pode ser objetado a estas considerações. A autoridade eclesiástica hoje reconhece a legitimidade da invocação das almas, embora este costume não tenha entrado na Liturgia da Igreja. Contudo deve-se recomendar moderação em tal praxe. O estado das almas do purgatório exige que pensemos em auxiliá-las por nossas orações mais do que em ser auxiliados por suas preces; prevaleça a recordação de suas indigências mais do que a das nossas!

Bibliografia:

C. Pozo, «Teologia del más allá», em «BAC» n° 282. Madrid 1968.

E. Bettencourt, «A vida que começa com a morte». Rio de Ja­neiro² 1958.

Garrigou-Lagrange, «O homem e a eternidade». Lisboa 1959.

«Se purifier pour voir Dieu», em «La Vie Spirituelle» t. LVIII n° 491 (1963) ; número inteiro dedicado ao purgatório.

M. Jugie, «Le Purgatoire et les moyens de 1'éviter». Paris 2 1940.

«Christus. Cahiers Spirituels», t. 9 n° 34 (1962).

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NOTA:

[1] Decisão de levar vida nova, amar mais autenticamente, des­pertar a amortecida.

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