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sábado, 9 de junho de 2007

Religião: liberdade religiosa

(Revista Pergunte e Responderemos PR 079/1964)

«Em abril de 1964, o Papa Paulo VI afirmou o direito de todo indivíduo humano à liberdade religiosa.

Esta declaração parece tão distante do espírito da Inquisi­ção! Não equivale a dizer que todas as religiões são boas?»

Ao fazer o pronunciamento acima, o S. Padre Paulo VI anunciava uma possível declaração do Concílio Ecumênico sobre o assunto, decla­ração de grande alcance, pois provocaria, por parte das autoridades nos países predominantemente católicos, uma atitude de grande tole­rância para com os cidadãos não-Católicos.

A mencionada declaração conciliar ainda está em estudo. Foi, sim, apresentado aos Padres Conciliares um projeto da mesma que deverá ser discutido e votado provavelmente na terceira sessão conciliar (fins de 1964). Embora o texto de tal documento ainda não tenha sido dado ao público, pode-se muito bem tomar conhecimento do seu conteúdo através do discurso com que S. Excia. D. De Smedt, bispo de Bruges (Bélgica) e membro da Comissão elaboradora do texto, o apresentou aos Padres Conciliares em 19 de novembro de 1963 na basílica de S. Pedro.

Apoiando-nos nesse discurso, assim como numa conferência feita pelo Cardeal Agostinho Bea sobre «Liberdade Religiosa e transforma­ções sociais» a 13/XII/1963 perante o XIV Congresso Nacional da União dos Juristas Católicos Italianos, podemos sem dificuldade avaliar o sentido exato das palavras de Paulo VI e dos PP. Conciliares a res­peito de liberdade e tolerância religiosas.

Vamos, pois, abaixo analisar o discurso de S. Excia. D. De Smedt, completando-o com os dizeres do Cardeal Bea. Teremos assim a inter­pretação autêntica do pensamento da Igreja sobre a «liberdade reli­giosa».

Quatro são os motivos principais que levam a S. Igreja reu­nida em concílio ecumênico a se pronunciar hoje em dia sobre «liberdade religiosa»

1) Motivo de veracidade: o direito a liberdade de religião é algo que toca o patrimônio da verdade, patrimônio cuja tutela foi por Cristo confiada a Igreja;

2) Motivo de defesa: a Igreja não se pode calar sobre o assunto, quando em nossos dias cerca de metade do gênero humano está despo­jada da sua liberdade religiosa por imposição de regimes governamentais materialistas e ateus;

3) Motivo de coabitação pacífica: atualmente, em todos os países, homens que professam crenças religiosas diversas e mesmo que não professam crença alguma, são chamados a conviver em paz numa única sociedade humana. Esta situação cria, para a Igreja, a necessidade de indicar a via de coabitação pacífica, a luz da verdade;

4) Motivo ecumênico: muitos homens não-católicos sentem aver­são para com a Igreja, atribuindo-lhe maquiavelismo e mesquinhez de atitudes, porque lhes parece que a Igreja reivindica liberdade para si nos países em que é minoritária, mas não quer reconhecer igual direito para os cidadãos não-católicos nas nações em que Ela é majoritária.

Estas são, sem dúvida, razões imperiosas que tornam plena­mente oportuno um pronunciamento oficial das autoridades ecle­siásticas sobre o assunto «liberdade religiosa».

Vejamos então qual o significado exato do

2. Conceito de liberdade religiosa

1. A fim de evitar confusões, faz-se mister remover quatro noções de liberdade religiosa que absolutamente não correspon­dem ao que a S. Igreja deseja defender:

1) Indiferentismo religioso: enganar-se-ia quem julgasse que a Igreja pretende reivindicar para o indivíduo o direito de considerar ou não considerar o problema religioso ou de o considerar como bem lhe agrade, decidindo finalmente, de acordo com o seu juízo subjetivo, se deve ou não deve abraçar a Religião. Religião neste caso seria questão de conveniência pessoal, de gosto, de educação, de tradição de fa­mília..;

2) Laicismo: também se enganaria quem julgasse que se trata de afirmar que a consciência humana está livre de qualquer obrigação para com Deus; nesta hipótese, seria lícito aos indivíduos e à sociedade regrar a sua vida sem levar em conta o santo nome de Deus (Religião viria a ser mais uma vez assunto de foro particular, não pertencente à estrutura do ser humano e da sociedade);

3) Relativismo religioso: também não intenciona a Igreja asseve­rar que se devem reconhecer à verdade e ao erro os mesmos direitos, ou que não há propriamente «verdade» e «erro» em matéria religiosa; neste caso, dever-se-ia deixar de falar de «crença errônea»; todas as Religiões seriam equivalentes entre si ou igualmente boas;

4) Pessimismo diletante: o homem teria o direito de se deixar ficar tranqüilamente na incerteza em matéria religiosa; não haveria obrigação de formar um juízo consciente (fosse favorável, fosse desfa­vorável) em matéria religiosa, sob pretexto de que em tal setor não se pode chegar a ter segurança.

Numa palavra: a S. Igreja não pensa em atribuir legitimidade a qualquer dessas quatro atitudes; elas sempre foram e serão considera­das desvios do comportamento humano.

2. Mas então que entende o Concílio por «liberdade reli­giosa»?

Entende o direito que tem a pessoa humana, de exercer livremente a Religião (isto é, de servir a Deus) conforme os ditames da própria consciência. É o que já Leão XIII, claro arauto da liberdade humana, afirmava na sua encíclica «Liber­tas praestantissima» de 20 de junho de 1888.

Em outros termos: a S. Igreja ensina que a pessoa humana, feita por Deus e para Deus, tem que entrar em relações diretas com Deus, de modo tal que é ilícito a qualquer autoridade que seja, impor-lhe algum constrangimento nesta linha. Liberdade religiosa, portanto, implica em autonomia da consciência de cada indivíduo em relação aos demais homens (o que não signi­fica autonomia frente a toda norma objetiva, pois ninguém tem o direito de criar a sua religião ou de estabelecer suas leis reli­giosas).

Uma vez firme este princípio, pergunta-se:

1) Então todo indivíduo tem o direito de reivindicar para si a liberdade religiosa como algo de sagrado que Deus lhe deu?

2) E a sociedade terá o dever de reconhecer essa liberdade?

3) Caso o tenha, até que ponto se estende tal obrigação?

É o que os incisos abaixo procurarão explanar.

3. Comportamento dos católicos frente aos não-católicos

1. A conduta dos cidadãos católicos numa sociedade mista nortear-se-á pelas seguintes normas:

1) Todos os fiéis católicos têm a obrigação de se empenhar por trazer seus irmãos não-católicos para a luz do Evangelho e para a vida da S. Igreja. É Cristo mesmo quem o ensina quando diz a seus discípulos:

«Ide, e ensinai a todas as nações, batizando-as em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo e ensinando-as a observar todos os man­damentos que vos dei» (Mt 28, 19s).

O zelo missionário ou apostólico é inerente à mentalidade do cató­lico, pois este sabe que, também em Religião, há distinção entre verdade e erro, luz e trevas, e é normal que todos os homens vivam na verdade e na luz.­

Para conseguir tal objetivo, o discípulo de Cristo deve dar o teste­munho da palavra e da conduta de vida; deve outrossim orar assiduamente e mortificar-se.

Não será necessário frisar que ele mesmo (católico) está obrigado a observar sempre e em toda parte os direitos sagrados e absolutos de Deus, manifestados tanto pelo Evangelho como pela lei natural.

2) Contudo é mister que, em seu zelo, os católicos se abs­tenham de exercer sobre o próximo qualquer constrangimento religioso, direto ou indireto. Não é lícito, portanto, ao discípulo de Cristo violar a liberdade religiosa do seu semelhante. Ao con­trário, é preciso que respeite o direito e o dever que cada um tem de obedecer à sua consciência, mesmo quando essa consciência, após exame sincero e suficiente, permanece de boa fé no erro.

O motivo último desta atitude é a certeza que o católico tem, de que o ato de fé verdadeira é dom sobrenatural, dom que o Espírito Santo concede gratuitamente a quem Ele quer e quando Ele quer. Este dom, para produzir seus frutos, há de ser aceito com toda a liberdade por parte do respectivo destinatário.

Por conseguinte, só não pode ser reconhecido como legítimo o caso do cidadão que erra de má fé, isto é, que fecha voluntariamente os olhos ante a verdade ou que, movido por preguiça ou descaso, não se interessa por informar-se e instruir-se quando o pode.

Tal indivíduo peca não somente contra Deus, mas também contra si mesmo; derroga à lei natural, pois recusa fazer uso da sua inteligên­cia, característica da natureza humana.

Caso se reconhecesse o direito de errar de má fé, reconhe­cer-se-ia direta e positivamente ao mal moral o direito de existir e difundir-se - o que é absurdo.

3) Todos os fiéis católicos devem-se sentir obrigados, pelo mandamento de Cristo, a amar seus irmãos não-católicos com amor sincero e efetivo. Isto, por certo, não implica que digam «Sim» aos erros e desvios do próximo; será sempre preciso dis­tinguir entre o erro e a pessoa que erra, a fim de odiar aquele e querer bem a esta.

2. Entre as normas acima propostas, talvez cause estranheza a que manda reconhecer a liberdade religiosa mesmo dos cidadãos que erram (contanto, sim, que errem de boa fé).

Como se explica isto?

- A pessoa humana tem, por lei natural, a obrigação de prestar culto a Deus de maneira consciente e livre, isto é, de acordo com as faculdades que caracterizam a sua dignidade hu­mana. Ora, esse culto só será consciente e livre se a pessoa for isenta de constrangimento, podendo assim formular em seu ín­timo um juízo prudente sobre a vontade de Deus e as exigências que esta lhe impõe. Está claro que, no trabalho de indagar a lei de Deus, a pessoa humana pode e deve valer-se do auxílio de outras pessoas; estas, do seu lado, tem a obrigação de a auxiliar a encontrar a face do verdadeiro Deus; mas nenhuma tem o di­reito de se substituir a consciência do próximo, forçando-o a aceitar determinado alvitre. O homem que obedece fielmente e com toda a sinceridade à sua consciência, em última análise dá provas de obedecer a Deus mesmo; deve, por isto, ser julgado digno de estima, embora se ache involuntariamente envolvido em erro ou confusão (erro ou confusão que, não obstante dili­gente pesquisa, não lhe tenha sido possível debelar).

Caso se viole a liberdade religiosa, viola-se a liberdade da pessoa em assunto de importância capital, ou seja, nas relações do ser hu­mano com o seu Fim Supremo: Deus. Impedir, pois, um cidadão de obedecer e prestar culto a Deus segundo os ditames da sua consciência constitui injúria máxima.

4. Limites impostos pelo bem comum

A liberdade religiosa assegura a todo indivíduo o direito de ex­primir a sua fé tanto por atos de sua vida particular como por manifestações públicas e sociais; permite-lhe outrossim consti­tuir agrupamentos de caráter religioso destinados ao culto de Deus e a prática da virtude. A razão disto é que o ser humano não consta apenas de espírito, mas tem um corpo, que se exprime por sinais sensíveis; nem é mero indivíduo, mas ser sociável, feito para se desenvolver e realizar plenamente no consórcio com os demais homens; daí o direito da Religião a ter o seu culto ex­terno e comunitário.

Contudo pode acontecer que nas manifestações de fé se cometam desvios, os quais se tornam causa de conflitos entre os homens e prejudicam o bem comum. À vista disto, a própria lei natural impõe certos limites a liberdade religiosa. Ao Estado ou as autoridades governamentais compete regulamentar as ex­pressões religiosas da sociedade de modo a evitar que o exercício da liberdade de uns lese os direitos de outros cidadãos. Escreve, sim, o Papa João XXIII

«É dever fundamental dos poderes públicos regrar as relações jurí­dicas dos cidadãos entre si, de modo que o exercício dos direitos de uns não impeça nem comprometa o exercício dos mesmos direitos por parte de outros; seja, ao contrário, o uso dos direitos sempre acompanhado do cumprimento dos deveres correspondentes. Trata-se de manter a integridade dos direitos de todo e qualquer cidadão e de restabelecer tais direitos, caso venham a ser violados» (enc. «Pacem in terris) », A.A.S. V 119631 274).

A medida em que ao Estado compete intervir em questões religiosas, é ditada pelas exigências do bem comum, ou seja, pelas exigências da ordem estabelecida por Deus, ou seja ainda, pela Lei de Deus. É como ministro do Senhor que o governante pode licitamente intervir em assuntos religiosos (nos casos em que isto se torne necessário); terá em vista servir a Deus garan­tindo, e não coibindo, a liberdade religiosa que por direito natu­ral toca a cada cidadão.

S. Tomaz o ensina nos seguintes termos:

«A lei humana só tem valor de lei na medida em que é conforme à reta razão; assim concebida, é evidente que a lei humana decorre da lei eterna. Na medida, porém em que ela possa contrariar à lei divina. a lei dos homens deve ser tida como iníqua; em conseqüência, já não tem valor de lei, mas de violência» (S. Teol. I/II qu. 93, a. 3, ad 2).

Nos últimos decênios, os Sumos Pontífices tem repetida­mente lamentado a violação da liberdade religiosa por parte de vários governos civis. Ainda aos 29 de setembro de 1963, o S. Padre o Papa Paulo VI se referia a tais desmandos:

«Que tristeza não experimentamos diante de tantos sofrimentos! Que aflição, por ver que em certos países a liberdade religiosa, assim como outros direitos fundamentais do homem, são sufocados em vir­tude de princípios e métodos de intolerância política, racial ou anti­-religiosa! Causa-nos dó profunda verificar quantos atentados à livre e honesta profissão de fé religiosa pessoal se cometem ainda hoje no mundo!» (cf. «Documentation Catholique» n° 1410 de 20/X11963, col. 1358).

Eis as últimas declarações da Igreja a respeito de liberdade religiosa. Vê-se que são tão amplas quanto possível, só não pac­tuando com o erro professado de má fé, pois isto seria pactuar com o próprio mal, reconhecendo-lhe direitos de legitimidade. Fora isto, a S. Igreja deseja que se reconheça mesmo aos cida­dãos que erram de boa fé, o direito à liberdade religiosa; não se lhes imponha constrangimento de consciência.

Eis, porém, que mais de um leitor poderia conceber profunda sur­presa ao confrontar tais normas eclesiásticas de nossos dias com as que no século passado foram enunciadas: parece haver contradição, pois outrora os prelados se mostravam muito rígidos em torno dos mesmos pontos que eles hoje encaram com largueza. Como se poderia explicar isto?

É o que vamos ver no parágrafo seguinte.

5. Continuidade ou contradição da doutrina da Igreja?

Quem lê alguma declaração eclesiástica, deve sempre ter o cui­dado de a recolocar no quadro histórico em que foi proferida, a fim de a entender de acordo com as intenções da autoridade que assim se pronunciou. Em caso contrário, o leitor se arriscaria a atribuir aos do­cumentos da Igreja doutrinas que absolutamente não correspondem ao seu teor.

1) O primeiro texto que importa considerar no tocante ao nosso assunto, é a seguinte passagem da encíclica «Quanta cura» de Pio IX («Acta Sanctae Sedis» III [1867] 162):

«Em conseqüência dessa idéia absolutamente falsa (o naturalis­mo)..., não hesitam em favorecer a opinião errônea, extremamente nociva para a Igreja Católica e a salvação das almas, opinião segundo a qual a liberdade de consciência e de cultos é direito próprio de todo homem, direito que deve ser proclamado e assegurado em todo Estado bem constituído. Já nosso predecessor de feliz memória, Gregório XVI, tinha essa proposição na conta de loucura (deliramentum)».

Analisando cuidadosamente este texto, verifica-se que tem em vista o racionalismo do séc. XIX, o qual, proclamando a liberdade de consciência, intencionava incutir três proposições inaceitáveis a um cristão:

a) a consciência do indivíduo humano não está sujeita a lei alguma, nem mesmo à Lei de Deus.

Pio IX, aliás, no seu «Sílabo» em 1864, condenou explicitamente a seguinte tese, que serve de fundo à tal proclamação da liberdade de consciência:

«A razão humana, emancipada de qualquer consideração para com Deus, é o único árbitro da verdade e do erro, do bem e do mal. Ela constitui a sua própria lei e, por sua capacidade natural, é suficiente para promover o bem dos homens e dos povos» (Denzinger, Enchiridion Symbolorum 1703).

b) Haja liberdade de cultos, porque não existe propriamente ver­dade em matéria de Religião; a verdade religiosa é estipulada exclusi­vamente pelo arbítrio da razão natural de cada indivíduo.

Eis a proposição «de fundo» rejeitada por Pio IX no mesmo «Si­labo»:

«Todo indivíduo é livre para abraçar e professar a religião que, à luz de sua razão natural, lhe parecer verdadeira» (Denzinger, Enchiridion 15).

Era a mentalidade do indiferentismo ou do relativismo religioso que inspirava a «liberdade de consciência» dos racionalistas e que Pio IX, seguindo Gregório XVI, intencionava condenar como «loucura».

c) Haja absoluta separação entre a Igreja e o Estado, porque este é plenamente competente para estabelecer ou cancelar os direitos da personalidade humana; a própria Igreja deve ser incorporada ao organismo do Estado e submetida à suprema autoridade do poder civil.

A este respeito, também se poderia citar a proposição de fundo, igualmente rejeitada no «Sílabo»:

«O Estado é fonte e origem de todos os direitos; por isto goza de jurisdição ilimitada» (Denzinger, Enchiridion 1739).

Era esta tese laicista e positivista que Pio IX visava ao condenar a «liberdade de consciência» propugnada pelos livres pensadores do século passado.

Positivamente, mediante tal condenação, Pio IX (e, com ele, a Igreja) visava defender a verdadeira dignidade e liberdade do ser humano. Com efeito, o fundamento de toda a nobreza do homem consiste em ser dotado de inteligência e vontade e, por isto, ser portador da imagem e semelhança de Deus. Esta carac­terística faz que o homem se ache em direta relação com Deus e em absoluta dependência do Criador. É em tal dependência que se baseia a necessidade de Religião ou a necessidade de que o homem, em consciência, tome uma atitude definida diante de Deus. Tal atitude, conscientemente abraçada, vem a ser uma das grandes expressões da dignidade humana.

É claro que esta necessidade ou este dever acarreta para todo homem o direito de reivindicar para si a liberdade de religião ou a liberdade de relações com o Senhor Deus, sem que neste setor se possa admitir interferência de alguma autoridade humana.

Combatendo, pois, o laicismo e o indiferentismo religioso do século passado (arvorados sob o título de «liberdade de consciência»), a Igreja tinha em vista não propriamente perseguidores e opressores da Religião (tal não era o caso), mas os filósofos que queriam negar as relações que o homem necessariamente deve ter, em consciência, com o seu Criador. «Liberdade», nos lábios dos racionalistas, queria dizer não propriamente «paz para todos os cidadãos na sociedade» (a respeito disto não se discutia), mas isenção de qualquer ditame religioso ou de qualquer relação do homem com Deus - isenção esta que equivaleria, sem dúvida, a degradação da personalidade humana, como lembrou a Igreja pela palavra dos Papas Gregorio XVI e Pio IX. Estes quiseram frisar que o Estado deve deixar liberdade aos súditos em matéria reli­giosa, não, porém, para que os cidadãos se abstenham de religião, mas para que possam com a própria inteligência e a livre vontade tomar conscientemente o caminho que leva para Deus.

2) O pensamento da Igreja pôde exprimir-se com mais amplidão, ou seja, menos solicitado pela necessidade de repelir o laicismo e o racionalismo agudos, nos tempos do Papa Leão XIII (1878-1903). Este Pontífice deixou-nos, por exemplo, os seguintes pronunciamentos:

«Ninguém tem motivo para acusar a Igreja de rejeitar concessões e acomodações razoáveis ou de ser inimigo de sadia e legítima liber­dade. - Com efeito; se a Igreja julga que não é lícito colocar os diver­sos cultos no mesmo pé legal que a verdadeira Religião, Ela nem por isto condena os chefes de governo que, visando alcançar determinado bem ou impedir certo mal, toleram na prática que esses diversos cultos tenham cada qual seu lugar no Estado. - É, aliás, costume da Igreja cuidar com todo o zelo, para que ninguém seja constrangido a abraçar a fé católica contra a sua vontade, pois, como observa S. Agostinho, a fé só pode existir onde haja espontaneidade» (enc. «Immortale Dei», de 1° de novembro de 1885; Denzinger, Enchiridion 1873-1875).

Em outra encíclica, prosseguia o S. Padre:

«Em sua consideração materna, a Igreja leva em conta o peso acabrunhador da fraqueza humana; Ela não ignora a onda (libertina) que, em nossa época, arrasta os espíritos e as coisas. Por isto, embora só reconheça direitos ao que é verídico e honesto, Ela não se opõe à tolerância de que os poderes públicos dão provas frente a certas insti­tuições contrárias a verdade e a justiça, tendo em vista evitar maiores males ou obter e conservar maiores bens.

Deus mesmo, em sua Providência, embora infinitamente bom e todo-poderoso, permite, não obstante, a existência de certos males no mundo ora para não impedir bens maiores, ora para evitar mais vul­tuosos males. No regime das nações, convém que os governantes

imi­tem Aquele que governa o mundo. Mais ainda: não podendo impedir todos os males particulares, a autoridade dos homens está obrigada a permitir e deixar impunes muitas coisas que a justo título cairão sob o juízo da Providência Divina. Observe-se, porém, o seguinte: se, em vista do bem comum,... as leis dos homens podem e mesmo devem tolerar o mal, nunca o podem ou devem aprovar e desejar em si mesmo. Com efeito, o mal é a privação do bem; por conseguinte, ele se opõe ao bem comum que o legislador está obrigado a desejar e defender do melhor modo possível. Neste ponto também as leis humanas devem procurar imitar a Deus...» (ene. «Libertas», de 20 de junho de 1888).

3) Nos anos do Papa Pio XI (1922-1939), já não havia tanto motivo para temer que uma falsa concepção da liberdade prejudicasse a dignidade humana. Muito mais funesta era a in­fluência do totalitarismo do Estado, que ameaçava extinguir os direitos à liberdade civil e religiosa dos respectivos súditos. Assim as declarações da Igreja se foram mais e mais voltando para a delicada questão das relações do Estado com as confissões religiosas existentes em cada nação.

Eis o que se pode colher dos documentos de Pio XI:

Este Pontífice continuou a rejeitar o laicismo, que equivale a de­pauperamento ou mesmo sufocação do senso religioso:

«O que Pio X condenou, Nós o condenamos igualmente: todas as vezes que por ‘laicismo’ se entendem sentimentos ou intenções contrá­rios ou estranhos a Deus e a Religião, reprovamos formalmente esse laicismo e declaramos abertamente que deve ser reprovado» («Maximam gravissimamque», A.A.S. XVI [1924] pág. 10).

Pio XI, porém, foi mais adiante: ainda explicitou o pensamento da Igreja fazendo distinção entre «liberdade de consciência» e «liberdade das consciências». Recusou o uso da primeira destas expressões, pois lhe parecia equívoca, já que podia ser entendida no sentido do laicismo, como «absoluta independência da consciência, coisa absurda no homem criado e resgatado por Deus». Contudo mostrou-se favorável a expres­são «liberdade das consciências», dizendo estar «feliz e nobremente cioso por combater o bom combate em prol da liberdade das consciências» (Carta Apostólica «Non abbiamo bisogno», de 21/VI/1931, A.A.S. XXIII [1931] 310s). E, essa «liberdade das consciências», o Pontífice a enten­dia no sentido de «direito, inerente a todo homem, de honrar a Deus de acordo com as normas da sua reta consciência».

Poucos anos mais tarde na encíclica «Mit brennender Sorge» a respeito do nacional-socialismo, o S. Padre dizia formalmente:

«O fiel tem um direito inalienável de professar a sua fé e de a pra­ticar como ela deve ser praticada. Leis que suprimam ou dificultem a profissão e a prática dessa fé, contradizem a lei natural» (A.A.S. XXIX [1937] 160).

Assim ficava claramente reivindicada a liberdade das consciências.

4) Pio XII (1939-1958), tendo ante os olhos novas e novas expressões do totalitarismo de Estado, enunciou certa vez «os direitos fundamentais da pessoa humana.», incluindo entre eles «o direito ao culto de Deus particular e público, compreendida aí a ação caritativa religiosa» (Rádio-mensagem de 24/XII/1942, A. A. S. XXXV [19431 19).

Não menos importante é a afirmação do mesmo Pontífice referente à atitude que o Estado deve tomar diante de erros ocorrentes na sociedade civil. Nem sempre, dizia Pio XII, con­virá que o Governo civil os reprima diretamente; poderá, sim, haver casos em que a prudência e os interesses do bem comum recomendem a tolerância a fim de se evitarem males maiores:

«O dever de reprimir os desvios morais e religiosos não pode ser tomado como norma suprema de ação. Deve ser subordinado a normas mais elevadas e mais gerais que em certas circunstâncias permitem que se imponha... como o melhor alvitre o de não impedir o erro, a fim de se promover um bem maior...

Um olhar para a realidade das coisas... mostra que o erro e o pecado se encontram no mundo em larga escala. Deus os reprova; não obstante, permite que existam. De outro lado, verifica-se que mesmo à autoridade humana Deus não impôs um preceito absoluto e universal (de repressão violenta), nem no setor da fé nem no da moral. Tal pre­ceito não se encontra nem na convicção comum dos homens, nem na consciência cristã, nem nas fontes da Revelação, nem na praxe da Igreja. Para não falarmos aqui de outros textos da S. Escritura..., Cristo na parábola do joio fez a advertência seguinte: 'No campo do mundo deixai crescer o joio juntamente com a boa semente por causa do trigo' (Mt 13, 24-30) ».

Donde conclui o S. Padre: «Primeiramente: o que não corresponde à verdade e à lei moral, não tem objetivamente direito à existência, nem à propaganda nem à atividade. Em segundo lugar: não obstante, em vista de um bem superior e maior, pode-se justificar o fato de não se impedir por leis do Estado e meios coercitivos a existência do mal acima apontado» (Discurso aos juristas católicos italianos, em 61XII/1953) .

Note-se que a tolerância assim apregoada equivale simplesmente a mera não-intervenção; de modo nenhum significa, assista ao governo o direito de promulgar «alguma ordem positiva ou alguma autorização positiva para se ensinar ou fazer coisa contrária à verdade religiosa ou ao bem moral». Pois, explica Pio XII:

«Uma ordem ou uma autorização desse gênero não teria força obri­gatória e seria ineficaz. Nenhuma autoridade poderia promulgá-la, por­que é contrário à natureza obrigar o espírito e a vontade do homem ao erro e ao mal, ou obrigar a considerar o erro e o mal como coisas indi­ferentes. Nem mesmo Deus poderia dar uma tal ordem positiva ou tal positiva autorização, porque cairia em contradição com a sua absoluta veracidade e santidade» (Discurso acima citado, em «Discorsi e Radio­messaggi» XV. 1954, pág. 487; cf. «Revista Eclesiástica Brasileira» 1954, 196).

Estas palavras dispensam qualquer comentário: promover direta­mente o erro ou o mal nunca poderá ser lícito; somente é permitido tolerar o erro e o mal existentes, caso se tenha em vista um bem maior a ser preservado.

5) Por fim, o Papa João XXIII (1958-1963) seguiu a linha de seus antecessores, principalmente na encíclica «Pacem in terris» (11/IV/1963). Neste documento, declarava S. Santidade dever-se incluir entre os direitos do homem «o de honrar a Deus segundo as retas normas de sua consciência e professar a Reli­gião tanto particular como publicamente» (A. A. S. [1963] 260s).

Os comentadores (entre os quais, S.E. o Cardeal Bea no discurso citado no inicio desta resposta) observam que na declaração acima o Papa João XXIII salvaguarda o direito à liberdade religiosa mesmo para os que erram de boa fé (isto é, julgando sinceramente que estão acertando), contanto que não perturbem o bem comum, S. Santidade falou, sim, de «normas retas», isto é, sinceras, traçadas de boa fé (mes­mo na base de princípios errôneos), e não propriamente de «normas verídicas ou verazes». Tal pronunciamento, como sabemos, está longe de significar relativismo religioso; existe, sem dúvida, um só Credo ver­dadeiro, destinado a todos os povos; contudo a adesão a esse Credo, da parte do homem, há de ser livre e consciente; nunca poderá ser imposta por constrangimento.

Eis, em suma, o que a S. Igreja, de maneira coerente com as suas declarações anteriores, quer lembrar ao mundo no dia de hoje, no tocante à liberdade religiosa.

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