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quarta-feira, 6 de junho de 2007

Deus, existência: Deus não existe?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 071/1963)

Assim como se prova que Deus existe, há quem queira provar que Deus não existe.

Como julgar estas razões negativas?»

Em «P. R.» 6/1957, qu.1, já apresentamos as vias pelas quais, desde os tempos da filosofia grega pré-cristã, se prova a existência de Deus.

Eis, porém, que em algumas escolas modernas se formulam objeções contra essas provas; donde resultaria que Deus não existe nem poderia existir («se Deus existisse, seria preciso matá-lo!», exclamou Bakúnine). Estas objeções procedem de dupla fonte, ou seja, dos conceitos de Criador e de Governador do universo.

A noção de criação, dizem, é absurda. Por conseguinte, não pode existir Criador; o que equivale a dizer: não pode existir Deus.

O conceito de Governador Providente do mundo é, como asseve­ram, igualmente absurdo, pois o mal existente neste mundo parece constituir a prova mais cabal de que não existe Governador do uni­verso; por conseguinte, não existe Deus.

Este segundo aspecto do problema já foi mais de uma vez abordado em «P. R.» (cf. 5/1957, qu. 1; 32/1960, qu. 3; 36/1960, qu. 2). Por isto, não voltaremos ao assunto neste artigo. Consideraremos, porém, as difi­culdades que se fazem contra as idéias de criação e Criador.

1. «A noção mesma de criação (= produção a partir do nada) é absurda!»

Deixemos que fale Sebastião Faure (1858-1942), um dos mais ardentes impugnadores da existência de Deus:

«Criar é tirar qualquer coisa do nada; é, com nada, fazer qualquer coisa do todo; é formar o existente do não-existente.

Ora eu imagino que é impossível encontrar-se uma única pessoa dotada de razão que conceba e admita que do nada se possa tirar ou fazer qualquer coisa. Suponhamos um matemático. Procurai o calcula­dor mais autorizado; colocai-o diante de uma louza e pedi-lhe que es­creva zeros sobre zeros. Terminada a operação, solicitai-lhe que os mul­tiplique da forma que entender, que os divida até se cansar, que faça, enfim, toda a sorte de operações matemáticas, e haveis de ver como ele não extrairá, desta acumulação de zeros, uma única unidade.

Com nada, nada se pode fazer; de nada, nada se obtém. É por isso que o famoso aforismo de Lucrécio ex nihilo nihil é duma certeza e duma evidência manifestas. O gesto criador é um gesto impossível de admitir - é um absurdo.

... Conseqüentemente, a hipótese dum ser verdadeiramente criador é uma hipótese que a razão repudia.

O ser criador não existe, não pode existir» (Provas da inexistência de Deus. Rio de Janeiro 1958, pág. 54).

Que dizer a tais reflexões?

1. Realmente, a filosofia e a teologia definem criar como sendo produzir alguma coisa a partir do nada.

A fim de evitar as dificuldades que este conceito possa cau­sar a um estudioso, note-se o seguinte:

Não se deve entender o «nada» da definição como se fosse a matéria prima da qual procedem os seres visíveis. Nisto have­ria flagrante contradição; supor-se-ia que o nada é alguma coisa, donde sai outra coisa.

A expressão «a partir do nada» exclui justamente qualquer matéria ou sujeito que entre na constituição intrínseca do novo ser ou do ser criado.

Em termos positivos, poder-se-ia dizer: criar é produzir um ser em toda a sua substância; toda a realidade desse novo ser é produzida pelo ato criador.

Por conseguinte, quando se diz que Deus criou o mundo, afirma-se que Deus deu existência ao universo (ou produziu o universo) sem recorrer a matéria preexistente, apenas mediante um ato de sua vontade todo-poderosa. Ora isto não implica em contradição, pois produzir diz unicamente exercer influência sobre determinado efeito; não diz exigência de sujeito ou ma­téria preexistente.

Vão, portanto, seria querer opor (como já se tem feito) ao conceito de criação o axioma «Do nada, nada se faz». Na ver­dade, este adágio supõe sempre um agente finito, agente que precise de matéria para agir. Ora Deus, infinitamente poderoso como é, pode agir mesmo sem tal matéria; Ele produz efeitos e exerce influência sobre esses efeitos, ainda que não tenha algum sujeito preexistente à sua ação.

2. Contra o conceito teológico de criação tem-se evocado outrossim o axioma «Na natureza nada se perde, nada se cria». Fora de propósito, porém. Na realidade, tal axioma significa apenas que a matéria criada, a matéria que nós hoje observa­mos, é indestrutível, mas não quer dizer que a matéria indestru­tível não tenha sido criada ou não tenha sucedido ao zero, ao nada, por efeito de um ato da vontade de Deus.

Sabemos, sim, que um dardo arremessado ao espaço produz deter­minada ação e desprende certo calor, que são equivalentes ao poten­cial de sua energia. Nada se perde em tal caso, como também nada se cria. Contudo isto não quer dizer que o dardo se tenha arremessado por si mesmo, por uma moção própria ou autônoma. Não; o seu movi­mento, ele o recebeu, ... e o recebeu do ser humano que o atirou. A lei da conservação da energia e da matéria, por conseguinte, quer dizer que nenhuma causa segunda ou nenhuma criatura pode destruir coisa alguma; não significa, porém, que a Causa Primeira, Deus, não esteja apta a produzir, a partir do nada, o que quer que Lhe agrade (contanto que o objeto não seja ilógico ou contraditório em si mesmo, como, por exemplo, um círculo quadrado).

3. Pode-se mesmo dizer que a razão humana entrevê a conveniência de admitir um Deus Criador ou um Deus que pro­duza efeitos a partir do nada. Na verdade, agir é uma perfeição. Por conseguinte, se existe um ser que é todo perfeito (como Deus é, por definição), não se vê por que sua ação só se poderia ma­nifestar dentro de tais e tais limites, isto é:... desde que tenha à sua disposição uma matéria bruta preexistente. Se a causali­dade de Deus fosse restrita ou limitada como a dos demais seres (restritos ou limitados), Deus não teria ação específica ou ação proporcionada à sua natureza e característica da sua infinitude.

Estas considerações parecem evidenciar suficientemente que os conceitos de criação e Criador não são absurdos e que, por conseguinte, deles nada se deduz contra a existência de Deus.

2. «Não se vê por que motivo Deus teria criado o mundo!»

Passemos de novo a palavra a Sebastião Faure, expoente do ateísmo moderno na obra já citada:

«Com o pensamento examinaremos Deus antes da criação... Basta-se a si próprio. É perfeitamente sábio, perfeitamente feliz, per­feitamente poderoso. Ninguém lhe pode acrescentar a sabedoria, nin­guém lhe pode aumentar a felicidade, ninguém lhe pode fortificar o poderio.

Este Deus não pode experimentar nenhum desejo, visto que a sua felicidade é infinita. Não pode perseguir nenhum fim, visto que nada falta à sua perfeição. Não pode arriscar nenhum intuito, visto que nada falta ao seu poder. Não pode determinar-se a fazer seja o que for, visto que não tem nenhuma necessidade.

Eia! filósofos profundos, pensadores subtis, teólogos prestigiosos, respondei a esta criança que vos interroga e dizei-lhe por que é que Deus a criou e lançou ao mundo!

Eu estou tranqüilo. Vós não lhe podeis responder...».

Já que não se pode assinalar motivo pelo qual Deus tenha criado, prossegue o autor, a criação seria ato de demência, e Deus Criador seria um demente. Ora um Deus demente é um absurdo. Por conse­guinte, Deus não existe, conclui o escritor (ob. cit., pág. 64-66).

A tal raciocínio dar-se-á a resposta seguinte:

A criação é, sem dúvida, um ato livre da parte de Deus. Por isto, vão seria procurar um motivo apodíctico que demons­trasse que Deus tinha necessariamente de criar. Podemos, porém, assinalar uma razão de conveniência a qual ajuda a admitir o fato de que Deus realmente criou o mundo.

Com efeito,

1) A criação é ato da livre vontade divina, porque Deus, sendo o Bem Infinito, não está obrigado a procurar fora de si complemento algum. Tudo que Deus quer fora de si, portanto, Ele o quer gratuita e benevolamente.

Pode-se então indicar alguma razão que justifique ou, de certo modo, explique, tenha Deus benevolamente ou gratuita­mente desejado a criação do mundo?

-Sim!

2) Ensina um adágio da filosofia neo-platônica que «o Bem é difusivo de si». Ora, aplicando este axioma ao Senhor Deus, diremos: Deus é o Sumo Bem. Portanto há de ser suma­mente difusivo de si (salvaguardada sempre a liberdade divina, como se compreende, ... nunca por necessidade). Donde se vê que era sumamente conveniente que Deus por bondade quisesse comunicar o seu ser e a sua perfeição, tirando do nada seres que fossem (cada qual do seu modo) raios e reflexos da infinita Perfeição Divina.

Cada um dos seres assim criados teria por destino exprimir, por sua existência mesma, a Sabedoria Divina. Nesse conjunto, as criaturas intelectivas (ou seja, dotadas de inteligência e von­tade), além de exprimir a Sabedoria do Criador por sua própria existência, seriam chamadas a participar (de acordo com a sua capacidade) da bem-aventurança eterna de Deus.

Eis o que explica, tenha Deus concebido o plano de criar. Vê-se que é um plano de exclusiva bondade, não de interesse cobiçoso ou egoísta. Está claro, porém, que as criaturas só podem atingir a sua finalidade ou bem-aventurança dando glória a Deus.

Essa glória a Deus é dita «extrínseca» ou «acidental»; não signi­fica que a felicidade do Altíssimo seja aumentada, mas apenas que os dons espalhados pelo Criador na criação tendem naturalmente a procla­mar a perfeição da sua Fonte.

É impossível às criaturas ser felizes por outra via: somente dando glória ao Criador é que elas se realizam plenamente. Com efeito; cada qual delas, sendo do seu modo uma pequena cópia da Perfeição Divina, só se consuma caso se aproxime do Exem­plar (Deus), espelhando cada vez melhor a Perfeição Divina e dando-a a conhecer, proclamando-a, de maneira cada vez mais adequada. Por conseguinte, toda criatura que tenda ao seu pró­prio bem, tende ao mesmo tempo, ou mesmo primeiramente, a manifestar e apregoar a Perfeição de Deus.

Ao contrário, caso a criatura se afaste do Criador, abusando do seu livre arbítrio, ela se degrada, e acarreta a sua própria infelicidade.

Observe-se também que seria absurdo imaginar, pudesse Deus querer a felicidade de suas criaturas independentemente da glorificação do Criador. Na verdade, é impossível que algum ser relativo, contingente ou criado chegue à sua perfeição por outro caminho que não seja a adesão plena ao Absoluto, ao Eterno, ao Criador, ou por outro caminho que não seja o reco­nhecimento e a proclamação de que Deus é bom, e de que é bom aderir a Ele. - Considere-se que os termos mesmos «criaturas» e «Criador» são correlativos entre si, e se evocam um ao outro inevitavelmente.

Em linguagem técnica, exprime-se tal verdade nas seguin­tes fórmulas:

A finalidade primária da criação é a glória do Criador, gló­ria extrínseca ou acidental (nem poderia deixar de ser, pois Deus, por definição, é o Alfa e o Omega, o Princípio e o Fim de todos os homens e de todas as coisas; cf.. Apocalipse 1,8; aos Ro­manos 11, 35s).

A finalidade secundária da criação é a felicidade das criaturas.

O desenvolvimento destas idéias nos levaria a perguntar: o mundo criado por Deus é realmente espelho da Sabedoria Divina? E, caso o seja, Deus terá criado (ou devia ter criado) o «melhor dos mundos possíveis»?

A estas questões já foi dada resposta em «P. R.» 40/1961, qu. 2. - Aqui seja apenas recordado que a idéia do melhor dos mundos possí­veis é algo de absurdo. De fato, toda criatura, por definição, é finita; em conseqüência, não há criatura tão perfeita que não se possa con­ceber outra mais perfeita do que ela; como não há número tão ele­vado que não se possa conceber outro ainda mais elevado... O infinito não existe fora de Deus. Entre o finito e o Infinito há uma distância intransponível; por conseguinte, o que é finito pode ser sempre aumentado sem que, por isto, chegue a ser o Infinito. Daí se vê que é contra­ditório falar de um superlativo absoluto quando se trata de criaturas; «o melhor dos mundos possíveis» vem a ser, pois, mera fórmula destituída de conteúdo ou de lógica.

Ulteriores objeções contra a existência de Deus serão consideradas no próximo número de «P. R.»

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