«Como se justifica que a Bíblia, em linguagem aparentemente tão grosseira, fale do dedo, da mão e do braço de Deus?
Deus é espírito puro. Que sentido então podem ter tais expressões?»
As citadas expressões constituem o que se chama «antropomorfismos», isto é, maneiras de apresentar Deus à semelhança de um homem. Existem em grande número na Escritura Sagrada; e isto, por dois motivos:
1) o pensamento semita, compartilhado pelos autores bíblicos, era pouco afeito a conceitos abstratos; ficava muito preso a sinais concretos e sensíveis. Compreende-se então que os escritores bíblicos, devendo falar de Deus, tenham proposto os atributos divinos como se proporiam os de um homem dotado de corpo e de afetos semelhantes aos nossos. O leitor avisado não toma tais expressões ao pé da letra, mas nelas vê figuras de linguagem ou símbolos de predicados divinos imateriais, tais como convêm a um puro espírito.
2) Além disto, um desígnio divino mesmo parece ter sugerido certos antropomorfismos. - Sim; pode-se crer que, mediante estes artifícios, o próprio Deus tenha intencionado elucidar, desde remotas épocas e de maneira muito viva, o mistério central da história do mundo e da Revelação cristã, ou seja, o mistério da Encarnação. Na plenitude dos tempos, Deus quis tomar a carne humana e manifestar-se com semblante humano, braços, mãos e pés. Entende-se, em conseqüência, que Ele haja proferido como que acordes antecipados da Encarnação mediante os antropomorfismos do Antigo Testamento. Destes, um dos mais freqüentes é o da «mão (de Deus)», ao qual estão associadas as imagens do «dedo» e do «braço (de Deus)».
A figura da mão, portanto, serão dedicadas as páginas que se seguem, a fim de se poder apreender o seu significado genuíno. Percorreremos três etapas sucessivas, analisando primeiramente o simbolismo que compete à mão humana como tal (um antropomorfismo não pode ser entendido sem um mínimo de antropologia). A seguir, consideraremos a utilização e a evolução desse simbolismo nos livros do Antigo e do Novo Testamento.
Que significa concretamente para nós a nossa mão de criaturas humanas?
A. A mão, órgão de relações com o mundo
a) Órgão do contato com as criaturas. Sem dúvida, é pela mão que mais freqüentemente se exerce o sentido do tato. Este sentido na mão não é meramente passivo (como muitas vezes acontece em outras partes do corpo, onde há, por exemplo, o contato passivo do corpo com as respectivas vestes), mas é ativo e soberano: de fato, a mão toca, apalpa, e, tocando, apalpando, costuma averiguar com exatidão a realidade das coisas que a cercam.
A mão pode assim em certo grau suprir o sentido da vista nos cegos: o cego «vê» (lê, por exemplo) com as mãos. Diz-se, pois, com acerto que a mão é a expressão e o instrumento da inteligência do homem. Cf. «P. R.» 35/1960, qu. 4.
b) Órgão do trabalho, da luta com os elementos que rodeiam o homem. É a mão que faz que as nossas relações com o mundo não se reduzam a conhecer, mas também transformem o mundo. É pela mão que o homem domina as criaturas inferiores, submetendo-as ao seu uso.
Mas o trabalho das mãos não é apenas exercício de domínio; é também aperfeiçoamento dos elementos do universo; estes são assim chamados a participar das atividades inteligentes do homem. Na verdade, as mãos e o corpo se prolongam nos utensílios que fabricam (nisto o homem difere dos macacos ditos «antropóides»).
c) Órgão da arte. As tarefas do homem não são unicamente as de artesanato, tarefas que visam utilidade concreta e próxima, mas são também atividades que, através de sinais
sensíveis, exprimem um ideal estético, moral e religioso. É o que dá fundamento ao sábio adágio: «Dize-me (mostra-me) o que é a tua mão, e eu te direi quem tu és». Cf. «P. R.» 21/1959, qu. 6 (a quiromancia).
Em resumo, concluir-se-á que a mão é o órgão da inteligência e do poder do homem, poder tanto moral quanto físico. Pelos gestos de suas mãos, o ser humano exprime a sua vontade de agir, lutar e vencer: o orador, em um discurso, dá a entender pela gesticulação os seus desígnios de transformar os elementos ou os homens; um chefe ou comandante, também pela gesticulação, transmite as ordens aos súditos...
Assim somos levados a considerar outro aspecto das mãos humanas:
B. A mão órgão de relações com o próximo
a) A mão é o órgão de contato físico, que simboliza no raro transmissão de poder ou de autoridade. Haja vista o rito da imposição das mãos, com o qual um chefe comunica determinado encargo ou missão.
b) A mão é também o órgão da jurisdição. «Colocar a mão» sobre alguma coisa significa «tomar posse... », muitas vezes com direito de destruir o objeto possuído.
c) A mão é outrossim o instrumento da doação; abre-se para dar, fecha-se para recusar. Diz-se que toda mão humana é necessariamente ou generosa ou mesquinha.
d) A mão vem a ser igualmente o órgão do acolhimento feito ao próximo. Os corpos humanos são simétricos entre si; isto quer dizer que a mão de um indivíduo e a mão de outro indivíduo são «recíprocas» ou, em certo sentido, configuradas uma para a outra.
É pela mão que fazemos sinal a alguém,... que o convidamos e o recebemos em nosso consórcio. Um aperto de mãos significa intercâmbio de amizade o rito do matrimônio utiliza este gesto em sua plenitude de significado, pois os nubentes, colocando uma mão dentro da outra, exprimem doação e acolhimento mútuos; doravante cada qual se consagrará a promover o bem do outro, tanto no setor espiritual como no corporal. - O aperto de mãos também é sinal de aliança ou pacto, assim como é símbolo de confiança outorgada a alguém.
e) A mão estendida tanto pode expressar doação como prece e súplica; o indigente estende a mão para implorar e mendigar. «Mão estendida» pode significar brado de desespero de quem está necessitado (por exemplo, de quem está submergindo nas águas), como também pode designar a salvação (a mão de quem tira o náufrago das águas).
Em uma palavra: pode-se dizer que a mão é o próprio homem. A sua importância se evidencia em grau máximo quando alguém vê sua mão doente, imobilizada ou amputada...
Observando os fatos acima apontados (aos quais ainda outros poderiam ser acrescentados), os homens em todos os tempos recorreram ao simbolismo das mãos na sua linguagem cotidiana.
Para ilustrar esta afirmação, considere-se em um dicionário de qualquer língua o emprego muito variado da palavra «mão» tanto em sentido próprio como em sentido figurado.
Aqui transcrevemos as expressões mais usuais em Portugal e no Brasil, como as apresenta a «Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira» XVI pág. 181-185
«Dar uma mão»: auxiliar;
«Darem-se as mãos»: unirem-se, aliarem-se;
«Dar a mão a palmatória»: reconhecer o próprio erro ou a veracidade de outrem;
«Bater as mãos»: mostrar contentamento, aprovação;
«Beijar a mão»: render preito, homenagem;
«Estar a mão»: estar pertinho;
«Abrir mão de...»: abandonar, desinteressar-se de...
«Carregar a mão»: insistir, censurar asperamente;
«Trazer alguém na palma das mãos»: amimar, acariciar;
«Por mãos a obra: começar;
«Meter os pés pelas mãos»: atrapalhar-se, contradizer-se;
«Não ter mãos a medir»: estar muito atarefado, ter dificuldade para atender a tudo;
«Lavar as mãos»: não tomar a responsabilidade de...
«Lançar mão de...»: recorrer a; segurar, apreender;
«Ter a mão na massa»: estar trabalhando em... ;
«De mão beijada»: gratuitamente, por favor;
«Em primeira mão»: em uso inédito;
«Em segunda mão»: em uso repetido;
«De mãos a abanar»: sem recurso, sem dinheiro;
«Fora de mão»: longe, distante;
«Com ambas as mãos»: com toda a boa vontade;
«Com a mão do gato»: sorrateiramente;
«De mãos, postas»: em oração ou súplica;
«Com mão firme»: com energia e destemor;
«Mão por baixo, mão por cima»: cautelosamente;
«Mão de anéis»: mão delicada;
«Mãos de prata»: mãos muito habilidosas;
«Uma mão de mimosas»: pequeno feixe de flores;
«Uma mão de cenouras, de hortaliça»; unidade de medida popular;
«Uma mão de tinta»: uma camada de tinta;
«Mãos ao alto!»: render-se, capitular.
Tão vasto uso da palavra «mão» constitui eloqüente indício da elevada carga de simbolismo e significado que toca a esse vocábulo. Em conseqüência, o próprio Deus quis descer a essa imagem, tão espontânea e tão viva, do falar humano, para fazer passar por ela uma mensagem divina, não menos viva e rica de sentido.
É o que se verá no parágrafo seguinte.
Focalizaremos sumariamente alguns textos seletos do Antigo e do
Novo Testamento.
A. Antigo Testamento
Utilizando os diversos aspectos do simbolismo das mãos humanas, os autores sagrados descreveram diversas facetas das relações de Deus com os homens. Assim
a) A Mão de Deus (= o poder de Deus benévolo e carinhoso) é criadora ou produtora dos seres.
É este um dos aspectos em que a imagem aparece com mais ênfase e pujança, pois a criação é obra da Onipotência Divina, obra primeira absoluta. Javé mesmo o proclama:
«Foi minha mão que fundou a terra
E minha destra que estendeu os céus».
(Is 48, 13)
«O céu é meu trono,
E a terra meu supedâneo. Fui eu que fiz o universo,
E tudo a Mim pertence, declara o Senhor».
(Is 66, ls)
Até as criaturas inferiores ao homem o afirmam:
«Interroga os animais de gado, e eles te ensinarão.
As aves do céu, e elas te instruirão;
Fala aos répteis da terra, e eles te responderão.
Aos peixes do mar, e eles te darão lições.
Entre todos esses seres, quem não sabe
Que a mão do Senhor fez isso tudo?»
(Jó 12, 7-9)
Conseqüentemente, torna-se vão pedir contas a Deus a respeito de suas obras:
«Compete a vós interrogar-me no tocante a meus filhos
E dar-me ordens sobre o trabalho de minhas mãos?
Fui Eu que fiz a terra,
E a povoei de homens.
Foram as minhas mãos que estenderam os céus».
(Is 45, 11s)
Contudo esse mesmo poder das mãos de Deus (que pode assustar, pois ultrapassa a compreensão humana) é também motivo de confiança para a criatura, a qual sabe que o Altíssimo não abandonará a obra de suas mãos:
«Se eu caminhar em meio às angústias,
Estenderás a mão contra a cólera dos meus inimigos,
Salvar-me-á a tua destra.
O Senhor completará o que em meu auxílio começou...
Não abandones a obra de tuas mãos».
(Sl 137, 7s)
b) Tendo criado os viventes, a Mão de Deus (= sábio poder) intervém continuamente para lhes dar o alimento sem o qual recairiam no nada:
«Todos esperam de Ti
Que lhes dês o alimento em tempo oportuno.
Tu lhes dás, e eles o recolhem,
Abres a mão, e saciam-se de bens».
(SI 103, 27s)
c) Logicamente daí se segue que a Mão de Deus está presente e assiste ao homem em toda parte
«Tu me cercas por trás e pela frente,
Colocas sobre mim a tua mão...
Caso eu vá habitar nos confins do mar,
Será ainda a tua mão que para lá me levará
E a tua destra que me sustentará».
(SI 138, 5.9)
d) Essa mesma mão de Deus é, ao mesmo tempo, sinal da Justiça Divina e do castigo; por isto, ela intimida os maus:
«Eis o que diz o Senhor Deus:
Levanto a mão, juro: as nações que vos cercam,
Terão também elas de sofrer ignomínia».
(Ez 36, 7)
«Eis a decisão tomada contra toda a terra;
É assim que estendo a mão contra todas as nações.
Desde que o Senhor dos exércitos tenha tomado uma decisão,
Quem ousará mudar a sua sentença?
Desde que haja estendido a mão,
Quem a fará retirar?»
(Is 14,26s)
«Tua mão encontrará todos os teus adversários,
Tua destra atingirá todos os que te odeiam.
(SI 20, 9)
Também o pecador penitente fala dessa Mão de Deus, que se exerce sobre ele a fim de o purificar:
«Calei-me, e meus ossos se mirraram
Entre contínuos gemidos.
Dia e noite tua mão pesava sobre mim».
(SI 31, 3s)
e) A Mão de Deus, que pode espantar, é também a Mão que atrai. É o seu poder de auxiliar e salvar misericordiosamente que desperta a confiança e a súplica do justo aflito:
«Disse: ‘Eis o que me acabrunha
A destra do Altíssimo já não é a mesma!
Recordo-me das maravilhas que Ele outrora realizou...
Minha voz então se eleva a Deus e clamo.
Minha voz se eleva a Deus, Ele me ouve.
No dia da angústia procuro o Senhor,
De noite as minhas mãos se levantam para Ele sem descanso».
(SI 76, 11s. 2s)
No texto acima, as mãos do homem que pede e a Mão de Deus que responde, ocorrem sucessivamente ao leitor.
Abaixo, a Mão de Deus, que salva realmente, opõe-se à mão do homem, que engana e decepciona:
«Estende do alto a tua mão,
Tira-me da caudal e livra-me
Das mãos do estrangeiro,
Cuja boca só profere mentiras
E cuja destra é destra de perjúrio».
(SI 143, 7s)
Há ainda uma série de textos que se comprazem em afirmar que a Mão de Deus jamais é curta para salvar, ou seja, para atingir o homem no mais profundo dos abismos em que ele se possa encontrar:
«O Senhor respondeu a Moisés: ‘Acaso seria curta a mão do Senhor? Verás sem demora se se cumprirá ou não a palavra que Eu te disse'» (Núm 11, 23).
Pelo Profeta Isaías, o Senhor interpela seu povo:
«Por que ninguém respondeu ao meu apelo?
Seria minha mão demasiado curta para libertar
Ou não teria Eu suficiente força para salvar?»
(Is 50, 2)
O próprio Profeta fornece a resposta:
«Não! Não é a mão do Senhor que é demasiado curta para salvar,
Nem seu ouvido surdo para ouvir.
São vossos pecados que colocaram uma barreira
Entre vós e vosso Deus».
(Is 59, ls)
f) Convém ainda lembrar que a Mão do Senhor é a Mão (= Providência, expressão da Sabedoria benévola) que rege as sortes do povo através da história.
Canta Israel em sua liturgia sagrada, recordando a época principal do seu passado
«Ó Deus, ouvimos com os nossos próprios ouvidos,
Nossos pais nos contaram
A obra que fizeste em seus dias,
Nos tempos de outrora.
Para implantá-los, expulsaste com as tuas mãos nações pagãs...
Não foi com a sua espada que conquistaram esta terra,
Nem foi seu braço que os salvou,
Mas foi tua destra, foi teu braço,
Foi o resplendor da tua face, porque os amavas».
(SI 43, 2-4)
g) Por fim, a Mão de Deus é a mão que utiliza a mão do homem; dignifica a ação das criaturas e lhe dá pleno êxito
«O Senhor disse a Moisés: '... Levanta o teu bastão, estende a mão sobre o mar e divide-o, para que os filhos de Israel possam passar a pé enxuto...'
Então Moisés estendeu a mão sobre o mar. E o Senhor fez que este recuasse mediante um vento impetuoso do Oriente... E pôs o mar a seco» (Ex 14, 15s. 21).
Contudo no canto de vitória Moisés atribuiu o feito portentoso à Mão do Senhor:
«Ao sopro do teu hálito,
O mar tragou-os (os egípcios) ...
Estendeste a tua destra,
E a terra os devorou».
(Ex 15, 10.12).
É «pela mão de Moisés, de Aarão, dos Juízes, dos Profetas, de Judite» (cf. Jdt 9, 10; 15, 10) que Deus realiza sua obra salvífica em Israel. Ó admirável condescendência divina, expressa por imagem tão simples e eloqüente!
Compendiando as grandes idéias até aqui enunciadas, pode-se dizer: toda a história de Israel se deixa muito bem representar pelo jogo de duas mãos, a Divina e a humana, que se procuram mutuamente, se encontram e se entrelaçam na execução de um só plano, ... mas também se separam uma da outra, para mais tarde se encontrar e unir de novo. Nesse embate, a Mão salvífica de Deus tem sempre a iniciativa benévola; Ela se antecipa ao homem, oferece-lhe a vida verdadeira e permanece fiel. A mão do homem, ao invés, falha, recusa e abandona a salvação mesma que ela outrora implorou.
Faz-se mister agora considerar o
B. Novo Testamento
-que Deus interviesse de novo na história dos homens, estendendo sua Mão libertadora à mão do homem perdido; dessa vez, porém, que o fizesse de maneira mais pujante e profunda do que outrora;
-que a Mão de Deus, em sua nova manifestação, se aproximasse tanto da miséria dos homens que pudesse ser apreendida por todos os filhos de Adão mediante o mínimo de esforço possível, e independentemente de raça, cultura ou posição social;
-que essa Mão forte 'trouxesse à criatura os meios necessários para que o homem, tendo-a uma vez agarrado, pudesse não mais a largar.
Pois bem. Foi o que se deu realmente. O relato desse alto feito foi consignado pelos autores do Novo Testamento. Estes empregam linguagem muito mais depurada, muito mais livre de antropomorfismos do que os do Antigo Testamento. Falam menos de dedo, mão ou braço de Deus; contudo apresentam a plenitude da realidade insinuada pelos antropomorfismos dos antigos israelitas: mostram, sim, como Deus se fez realmente homem e se dignou utilizar um braço e uma mão semelhantes aos nossos, a fim de comunicar à humanidade a salvação que o Antigo Testamento anunciava em tipos e figuras.
Por conseguinte, o antropomorfismo da mão se tornou ainda mais concreto, mas também tomou dimensões transcendentes, que até então ele não possuía.
2. Assim, no limiar do Novo Testamento, a Virgem SS. fez ressoar acordes muito característicos do estilo do Antigo Testamento, para cantar a realização do mistério da Encarnação. Retomou então a imagem do braço do Senhor, mas dessa vez em plena consonância com a realidade das coisas, pois Deus, de fato, já assumira corpo humano:
«Manifestou o poder do seu braço...
Veio em auxílio de Israel seu servo,
Recordado da sua misericórdia».
(Lc 1, 51.54)
O auxilio ou a salvação concedidos pelo Senhor ultrapassaram as mais otimistas expectativas da humanidade:
Em linguagem figurada, dir-se-ia: a Mão de Deus e a mão do homem se uniram para sempre em Cristo, travando a nova e definitiva Aliança.
Seria lícito também afirmar: a «Mão de Deus» de que falava o Antigo Testamento, fez-se carne; a Mão salvadora de Javé identificou-se com a mão de carne de Jesus Cristo. E, já que cada mão humana é recíproca ou correspondente a todas as demais mãos humanas, a mão de Cristo vem a ser a Mão de Deus (= o auxílio, o carinho de Deus) estendida em resposta a toda e qualquer mão humana que se abra em meio à indigência e à penúria; é a Mão única de uma salvação universal.
3. Dentro desta perspectiva, deverão ser lidos os textos do S. Evangelho em que o autor sagrado realça explicitamente a ação salvífica da mão de Jesus Cristo.
Assim mão e mão se tocam no caso seguinte, anunciando de certo modo a vinda do Messias ao mundo:;
«Tendo entrado em casa de Pedro, Jesus aí encontrou a sogra de Pedro prostrada pela febre. Tocou-lhe a mão; a febre deixou-a, ela se levantou e pôs-se a servir» (Mt 8, 14s).
Leve-se em conta outrossim:
«Em um sábado, estava Jesus ensinando em uma das sinagogas. Apareceu ali uma mulher, que havia dezoito anos estava possessa de um espírito que a tornava enferma. Andava encurvada, e não podia absolutamente olhar para cima... Jesus impôs-lhe as mãos e ela no mesmo instante se ergueu e começou a glorificar a Deus» (Le 13,10s.13).
«Levaram a Jesus um homem surdo-mudo, e pediam-lhe que lhe impusesse a mão. Jesus levou-a à parte, longe da multidão, pôs-lhe os dedos nos ouvidos, e, tomando um pouco de saliva, com ela tocou-lhe a língua. Levantando os olhos ao céu, suspirou e disse-lhe: 'Efatá', o que quer dizer ‘Abre-te’. Imediatamente seus ouvidos se abriram. Desfez-se o empecilho de sua língua e começou a falar distintamente»
«Jesus cuspiu no chão, e fez lodo com a saliva e untou com o dedo os olhos do cego. E disse-lhe: ‘Vai, e lava-te na piscina de Siloé...'. Ele foi, lavou-se e voltou enxergando» (Jo 9, 6s).
Essa mão de Cristo salva não somente da doença, mas da própria morte, pois o Senhor veio restaurar a vida, e a vida em sentido pleno - a vida eterna:
«Quando Jesus chegou à casa do príncipe da sinagoga e viu os tocadores de flauta e a multidão em alvoroço, disse: ‘Retirai-vos, porque a menina não está morta, mas dorme'. Eles, porém, riram-se dele.
Depois que a multidão foi afastada, Jesus entrou, segurou a mão da menina e ela se levantou» (Mt 9, 23-25).
«Quando o Senhor viu a viúva de Naím, sentiu-se movido de compaixão para com ela e disse-lhe: ‘Não chores'. Aproximou-se e tocou no caixão. Pararam logo os que o levavam. Disse então: ‘Jovem, eu te digo, levanta-te'. O que tinha estado morto, levantou-se e começou a falar. E Jesus o entregou à sua mãe» (Le 7, 13-15).
Destarte conclui-se que no S. Evangelho o antropomorfismo da mão de Javé foi abolido como figura de estilo, porque se tornou realidade viva; Deus, de fato, quis ter mão humana a fim de preencher mais eficazmente o papel simbolizado pela mão (papel de auxiliar e salvar benevolamente). Os textos do Antigo Testamento foram, desse modo, ultrapassados, mas simultaneamente levados à plenitude da sua significação.
4. Depois da Ascensão de Jesus aos céus, o mistério da Mão de Deus se prolonga na Igreja e pela Igreja, pois esta, por sua vez, prolonga a Encarnação de Cristo. É dessa forma que a mão (ou a misericórdia salvífica) do Senhor continua a agir na história através dos séculos, como o atesta a oração dos Apóstolos perseguidos:
«Considerai, Senhor, as ameaças que fazem, e concedei a vossos servos que anunciem vossa palavra com toda a segurança, estendendo a vossa mão para que se realizem curas, milagres e prodígios pelo nome de vosso santo servo Jesus» (At 4, 29s).
5. Em particular, no Ritual dos Sacramentos a Igreja faz questão de repetir os gestos das mãos de Cristo: haja vista, por exemplo, a imposição dos dedos do sacerdote nos ouvidos do catecúmeno, a repetir o que Cristo fez quando curou o surdo-mudo (cf. Mc 7, 32-35). S. Agostinho justificaria esta praxe nos termos seguintes: «Batize Pedro, é Cristo quem batiza; batize Paulo, é Cristo quem batiza; batize Judas, é Cristo quem batiza (In Io 6). Em suma: é sempre Cristo quem age através dos sacramentos devidamente administrados.
6. Vê-se, pois, que a metáfora da Mão de Deus, grosseira e primitiva como parece, é portadora de profunda riqueza doutrinária; basta lê-la na sua perspectiva autêntica, isto é, dentro das grandes linhas que constituem o conjunto da mensagem bíblica.
Através do exemplo que acaba de ser apresentado, poderá o leitor moderno ainda imperito familiarizar-se com o estilo bíblico e com a genuína maneira de o entender.
(Na redação do estudo acima, muito nos servimos do fascículo «
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