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sábado, 9 de junho de 2007

Deus, existência: a mão de Deus

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 079/1964)

«Como se justifica que a Bíblia, em linguagem aparen­temente tão grosseira, fale do dedo, da mão e do braço de Deus?

Deus é espírito puro. Que sentido então podem ter tais expressões?»

As citadas expressões constituem o que se chama «antropomorfismos», isto é, maneiras de apresentar Deus à semelhança de um homem. Existem em grande número na Escritura Sagra­da; e isto, por dois motivos:

1) o pensamento semita, compartilhado pelos autores bíblicos, era pouco afeito a conceitos abstratos; ficava muito preso a sinais con­cretos e sensíveis. Compreende-se então que os escritores bíblicos, de­vendo falar de Deus, tenham proposto os atributos divinos como se pro­poriam os de um homem dotado de corpo e de afetos semelhantes aos nossos. O leitor avisado não toma tais expressões ao pé da letra, mas nelas vê figuras de linguagem ou símbolos de predicados divinos imate­riais, tais como convêm a um puro espírito.

2) Além disto, um desígnio divino mesmo parece ter sugerido certos antropomorfismos. - Sim; pode-se crer que, mediante estes artifícios, o próprio Deus tenha intencionado elucidar, desde remotas épocas e de maneira muito viva, o mistério central da história do mundo e da Re­velação cristã, ou seja, o mistério da Encarnação. Na plenitude dos tempos, Deus quis tomar a carne humana e manifestar-se com sem­blante humano, braços, mãos e pés. Entende-se, em conseqüência, que Ele haja proferido como que acordes antecipados da Encarnação me­diante os antropomorfismos do Antigo Testamento. Destes, um dos mais freqüentes é o da «mão (de Deus)», ao qual estão associadas as ima­gens do «dedo» e do «braço (de Deus)».

A figura da mão, portanto, serão dedicadas as páginas que se se­guem, a fim de se poder apreender o seu significado genuíno. Percorreremos três etapas sucessivas, analisando primeiramente o simbolismo que compete à mão humana como tal (um antropomorfismo não pode ser entendido sem um mínimo de antropologia). A seguir, considerare­mos a utilização e a evolução desse simbolismo nos livros do Antigo e do Novo Testamento.

1. A mão do homem: símbolo natural

Que significa concretamente para nós a nossa mão de cria­turas humanas?

A. A mão, órgão de relações com o mundo

a) Órgão do contato com as criaturas. Sem dúvida, é pela mão que mais freqüentemente se exerce o sentido do tato. Este sentido na mão não é meramente passivo (como muitas vezes acontece em outras partes do corpo, onde há, por exemplo, o contato passivo do corpo com as respectivas vestes), mas é ativo e soberano: de fato, a mão toca, apalpa, e, tocando, apal­pando, costuma averiguar com exatidão a realidade das coisas que a cercam.

A mão pode assim em certo grau suprir o sentido da vista nos cegos: o cego «vê» (lê, por exemplo) com as mãos. Diz-se, pois, com acerto que a mão é a expressão e o instrumento da inteligência do ho­mem. Cf. «P. R.» 35/1960, qu. 4.

b) Órgão do trabalho, da luta com os elementos que ro­deiam o homem. É a mão que faz que as nossas relações com o mundo não se reduzam a conhecer, mas também transformem o mundo. É pela mão que o homem domina as criaturas inferiores, submetendo-as ao seu uso.

Mas o trabalho das mãos não é apenas exercício de domínio; é também aperfeiçoamento dos elementos do universo; estes são assim chamados a participar das atividades inteligentes do ho­mem. Na verdade, as mãos e o corpo se prolongam nos utensí­lios que fabricam (nisto o homem difere dos macacos ditos «antropóides»).

c) Órgão da arte. As tarefas do homem não são unicamente as de artesanato, tarefas que visam utilidade concreta e próxima, mas são também atividades que, através de sinais

sen­síveis, exprimem um ideal estético, moral e religioso. É o que dá fundamento ao sábio adágio: «Dize-me (mostra-me) o que é a tua mão, e eu te direi quem tu és». Cf. «P. R.» 21/1959, qu. 6 (a quiromancia).

Em resumo, concluir-se-á que a mão é o órgão da inteligência e do poder do homem, poder tanto moral quanto físico. Pelos gestos de suas mãos, o ser humano exprime a sua vontade de agir, lutar e vencer: o orador, em um discurso, dá a entender pela gesticulação os seus desígnios de transformar os elementos ou os homens; um chefe ou coman­dante, também pela gesticulação, transmite as ordens aos súditos...

Assim somos levados a considerar outro aspecto das mãos humanas:

B. A mão órgão de relações com o próximo

a) A mão é o órgão de contato físico, que simboliza no raro transmissão de poder ou de autoridade. Haja vista o rito da imposição das mãos, com o qual um chefe comunica determi­nado encargo ou missão.

b) A mão é também o órgão da jurisdição. «Colocar a mão» sobre alguma coisa significa «tomar posse... », muitas vezes com direito de destruir o objeto possuído.

c) A mão é outrossim o instrumento da doação; abre-se para dar, fecha-se para recusar. Diz-se que toda mão humana é necessariamente ou generosa ou mesquinha.

d) A mão vem a ser igualmente o órgão do acolhimento feito ao próximo. Os corpos humanos são simétricos entre si; isto quer dizer que a mão de um indivíduo e a mão de outro indivíduo são «recíprocas» ou, em certo sentido, configuradas uma para a outra.

É pela mão que fazemos sinal a alguém,... que o convidamos e o recebemos em nosso consórcio. Um aperto de mãos significa intercâm­bio de amizade o rito do matrimônio utiliza este gesto em sua pleni­tude de significado, pois os nubentes, colocando uma mão dentro da outra, exprimem doação e acolhimento mútuos; doravante cada qual se consagrará a promover o bem do outro, tanto no setor espiritual como no corporal. - O aperto de mãos também é sinal de aliança ou pacto, assim como é símbolo de confiança outorgada a alguém.

e) A mão estendida tanto pode expressar doação como prece e súplica; o indigente estende a mão para implorar e men­digar. «Mão estendida» pode significar brado de desespero de quem está necessitado (por exemplo, de quem está submergindo nas águas), como também pode designar a salvação (a mão de quem tira o náufrago das águas).

Em uma palavra: pode-se dizer que a mão é o próprio homem. A sua importância se evidencia em grau máximo quando alguém vê sua mão doente, imobilizada ou amputada...

Observando os fatos acima apontados (aos quais ainda outros pode­riam ser acrescentados), os homens em todos os tempos recorreram ao simbolismo das mãos na sua linguagem cotidiana.

Para ilustrar esta afirmação, considere-se em um dicionário de qualquer língua o emprego muito variado da palavra «mão» tanto em sentido próprio como em sentido figurado.

Aqui transcrevemos as expressões mais usuais em Portugal e no Brasil, como as apresenta a «Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasi­leira» XVI pág. 181-185

«Dar uma mão»: auxiliar;

«Darem-se as mãos»: unirem-se, aliarem-se;

«Dar a mão a palmatória»: reconhecer o próprio erro ou a veraci­dade de outrem;

«Bater as mãos»: mostrar contentamento, aprovação;

«Beijar a mão»: render preito, homenagem;

«Estar a mão»: estar pertinho;

«Abrir mão de...»: abandonar, desinteressar-se de...

«Carregar a mão»: insistir, censurar asperamente;

«Trazer alguém na palma das mãos»: amimar, acariciar;

«Por mãos a obra: começar;

«Meter os pés pelas mãos»: atrapalhar-se, contradizer-se;

«Não ter mãos a medir»: estar muito atarefado, ter dificuldade para atender a tudo;

«Lavar as mãos»: não tomar a responsabilidade de...

«Lançar mão de...»: recorrer a; segurar, apreender;

«Ter a mão na massa»: estar trabalhando em... ;

«De mão beijada»: gratuitamente, por favor;

«Em primeira mão»: em uso inédito;

«Em segunda mão»: em uso repetido;

«De mãos a abanar»: sem recurso, sem dinheiro;

«Fora de mão»: longe, distante;

«Com ambas as mãos»: com toda a boa vontade;

«Com a mão do gato»: sorrateiramente;

«De mãos, postas»: em oração ou súplica;

«Com mão firme»: com energia e destemor;

«Mão por baixo, mão por cima»: cautelosamente;

«Mão de anéis»: mão delicada;

«Mãos de prata»: mãos muito habilidosas;

«Uma mão de mimosas»: pequeno feixe de flores;

«Uma mão de cenouras, de hortaliça»; unidade de medida popular;

«Uma mão de tinta»: uma camada de tinta;

«Mãos ao alto!»: render-se, capitular.

Tão vasto uso da palavra «mão» constitui eloqüente indício da elevada carga de simbolismo e significado que toca a esse vocábulo. Em conseqüência, o próprio Deus quis descer a essa imagem, tão espontânea e tão viva, do falar humano, para fazer passar por ela uma mensagem divina, não menos viva e rica de sentido.

É o que se verá no parágrafo seguinte.

2. A Mão de Deus

Focalizaremos sumariamente alguns textos seletos do Antigo e do

Novo Testamento.

A. Antigo Testamento

Utilizando os diversos aspectos do simbolismo das mãos hu­manas, os autores sagrados descreveram diversas facetas das relações de Deus com os homens. Assim

a) A Mão de Deus (= o poder de Deus benévolo e cari­nhoso) é criadora ou produtora dos seres.

É este um dos aspectos em que a imagem aparece com mais ênfase e pujança, pois a criação é obra da Onipotência Divina, obra primeira absoluta. Javé mesmo o proclama:

«Foi minha mão que fundou a terra

E minha destra que estendeu os céus».

(Is 48, 13)

«O céu é meu trono,

E a terra meu supedâneo. Fui eu que fiz o universo,

E tudo a Mim pertence, declara o Senhor».

(Is 66, ls)

Até as criaturas inferiores ao homem o afirmam:

«Interroga os animais de gado, e eles te ensinarão.

As aves do céu, e elas te instruirão;

Fala aos répteis da terra, e eles te responderão.

Aos peixes do mar, e eles te darão lições.

Entre todos esses seres, quem não sabe

Que a mão do Senhor fez isso tudo?»

(Jó 12, 7-9)

Conseqüentemente, torna-se vão pedir contas a Deus a respeito de suas obras:

«Compete a vós interrogar-me no tocante a meus filhos

E dar-me ordens sobre o trabalho de minhas mãos?

Fui Eu que fiz a terra,

E a povoei de homens.

Foram as minhas mãos que estenderam os céus».

(Is 45, 11s)

Contudo esse mesmo poder das mãos de Deus (que pode assustar, pois ultrapassa a compreensão humana) é também mo­tivo de confiança para a criatura, a qual sabe que o Altíssimo não abandonará a obra de suas mãos:

«Se eu caminhar em meio às angústias,

Estenderás a mão contra a cólera dos meus inimigos,

Salvar-me-á a tua destra.

O Senhor completará o que em meu auxílio começou...

Não abandones a obra de tuas mãos».

(Sl 137, 7s)

b) Tendo criado os viventes, a Mão de Deus (= sábio poder) intervém continuamente para lhes dar o alimento sem o qual recairiam no nada:

«Todos esperam de Ti

Que lhes dês o alimento em tempo oportuno.

Tu lhes dás, e eles o recolhem,

Abres a mão, e saciam-se de bens».

(SI 103, 27s)

c) Logicamente daí se segue que a Mão de Deus está presente e assiste ao homem em toda parte

«Tu me cercas por trás e pela frente,

Colocas sobre mim a tua mão...

Caso eu vá habitar nos confins do mar,

Será ainda a tua mão que para lá me levará

E a tua destra que me sustentará».

(SI 138, 5.9)

d) Essa mesma mão de Deus é, ao mesmo tempo, sinal da Justiça Divina e do castigo; por isto, ela intimida os maus:

«Eis o que diz o Senhor Deus:

Levanto a mão, juro: as nações que vos cercam,

Terão também elas de sofrer ignomínia».

(Ez 36, 7)

«Eis a decisão tomada contra toda a terra;

É assim que estendo a mão contra todas as nações.

Desde que o Senhor dos exércitos tenha tomado uma decisão,

Quem ousará mudar a sua sentença?

Desde que haja estendido a mão,

Quem a fará retirar?»

(Is 14,26s)

«Tua mão encontrará todos os teus adversários,

Tua destra atingirá todos os que te odeiam.

(SI 20, 9)

Também o pecador penitente fala dessa Mão de Deus, que se exerce sobre ele a fim de o purificar:

«Calei-me, e meus ossos se mirraram

Entre contínuos gemidos.

Dia e noite tua mão pesava sobre mim».

(SI 31, 3s)

e) A Mão de Deus, que pode espantar, é também a Mão que atrai. É o seu poder de auxiliar e salvar misericordiosamente que desperta a confiança e a súplica do justo aflito:

«Disse: ‘Eis o que me acabrunha

A destra do Altíssimo já não é a mesma!

Recordo-me das maravilhas que Ele outrora realizou...

Minha voz então se eleva a Deus e clamo.

Minha voz se eleva a Deus, Ele me ouve.

No dia da angústia procuro o Senhor,

De noite as minhas mãos se levantam para Ele sem descanso».

(SI 76, 11s. 2s)

No texto acima, as mãos do homem que pede e a Mão de Deus que responde, ocorrem sucessivamente ao leitor.

Abaixo, a Mão de Deus, que salva realmente, opõe-se à mão do homem, que engana e decepciona:

«Estende do alto a tua mão,

Tira-me da caudal e livra-me

Das mãos do estrangeiro,

Cuja boca só profere mentiras

E cuja destra é destra de perjúrio».

(SI 143, 7s)

Há ainda uma série de textos que se comprazem em afirmar que a Mão de Deus jamais é curta para salvar, ou seja, para atingir o homem no mais profundo dos abismos em que ele se possa encontrar:

«O Senhor respondeu a Moisés: ‘Acaso seria curta a mão do Senhor? Verás sem demora se se cumprirá ou não a palavra que Eu te disse'» (Núm 11, 23).

Pelo Profeta Isaías, o Senhor interpela seu povo:

«Por que ninguém respondeu ao meu apelo?

Seria minha mão demasiado curta para libertar

Ou não teria Eu suficiente força para salvar?»

(Is 50, 2)

O próprio Profeta fornece a resposta:

«Não! Não é a mão do Senhor que é demasiado curta para salvar,

Nem seu ouvido surdo para ouvir.

São vossos pecados que colocaram uma barreira

Entre vós e vosso Deus».

(Is 59, ls)

f) Convém ainda lembrar que a Mão do Senhor é a Mão (= Providência, expressão da Sabedoria benévola) que rege as sortes do povo através da história.

Canta Israel em sua liturgia sagrada, recordando a época principal do seu passado

«Ó Deus, ouvimos com os nossos próprios ouvidos,

Nossos pais nos contaram

A obra que fizeste em seus dias,

Nos tempos de outrora.

Para implantá-los, expulsaste com as tuas mãos nações pagãs...

Não foi com a sua espada que conquistaram esta terra,

Nem foi seu braço que os salvou,

Mas foi tua destra, foi teu braço,

Foi o resplendor da tua face, porque os amavas».

(SI 43, 2-4)

g) Por fim, a Mão de Deus é a mão que utiliza a mão do homem; dignifica a ação das criaturas e lhe dá pleno êxito

«O Senhor disse a Moisés: '... Levanta o teu bastão, estende a mão sobre o mar e divide-o, para que os filhos de Israel possam passar a pé enxuto...'

Então Moisés estendeu a mão sobre o mar. E o Senhor fez que este recuasse mediante um vento impetuoso do Oriente... E pôs o mar a seco» (Ex 14, 15s. 21).

Contudo no canto de vitória Moisés atribuiu o feito portentoso à Mão do Senhor:

«Ao sopro do teu hálito,

O mar tragou-os (os egípcios) ...

Estendeste a tua destra,

E a terra os devorou».

(Ex 15, 10.12).

É «pela mão de Moisés, de Aarão, dos Juízes, dos Profetas, de Judite» (cf. Jdt 9, 10; 15, 10) que Deus realiza sua obra salvífica em Israel. Ó admirável condescendência divina, expressa por imagem tão simples e eloqüente!

Compendiando as grandes idéias até aqui enunciadas, pode­-se dizer: toda a história de Israel se deixa muito bem represen­tar pelo jogo de duas mãos, a Divina e a humana, que se pro­curam mutuamente, se encontram e se entrelaçam na execução de um só plano, ... mas também se separam uma da outra, para mais tarde se encontrar e unir de novo. Nesse embate, a Mão salvífica de Deus tem sempre a iniciativa benévola; Ela se ante­cipa ao homem, oferece-lhe a vida verdadeira e permanece fiel. A mão do homem, ao invés, falha, recusa e abandona a salvação mesma que ela outrora implorou.

Faz-se mister agora considerar o

B. Novo Testamento

1. A história do Antigo Testamento põe em evidencia as tristes conseqüências do pecado instaladas no íntimo do homem debilitação da vontade, sofrimento, morte, e incapacidade de sair desse estado de coisas. Para dar remédio cabal e definitivo a esses achaques, era necessário

-que Deus interviesse de novo na história dos homens, esten­dendo sua Mão libertadora à mão do homem perdido; dessa vez, porém, que o fizesse de maneira mais pujante e profunda do que outrora;

-que a Mão de Deus, em sua nova manifestação, se aproximasse tanto da miséria dos homens que pudesse ser apreendida por todos os filhos de Adão mediante o mínimo de esforço possível, e independentemente de raça, cultura ou posição social;

-que essa Mão forte 'trouxesse à criatura os meios necessários para que o homem, tendo-a uma vez agarrado, pudesse não mais a largar.

Pois bem. Foi o que se deu realmente. O relato desse alto feito foi consignado pelos autores do Novo Testamento. Estes empregam linguagem muito mais depurada, muito mais livre de antropomorfismos do que os do Antigo Testamento. Falam me­nos de dedo, mão ou braço de Deus; contudo apresentam a ple­nitude da realidade insinuada pelos antropomorfismos dos anti­gos israelitas: mostram, sim, como Deus se fez realmente ho­mem e se dignou utilizar um braço e uma mão semelhantes aos nossos, a fim de comunicar à humanidade a salvação que o An­tigo Testamento anunciava em tipos e figuras.

Por conseguinte, o antropomorfismo da mão se tornou ainda mais concreto, mas também tomou dimensões transcen­dentes, que até então ele não possuía.

2. Assim, no limiar do Novo Testamento, a Virgem SS. fez ressoar acordes muito característicos do estilo do Antigo Testamento, para cantar a realização do mistério da Encarna­ção. Retomou então a imagem do braço do Senhor, mas dessa vez em plena consonância com a realidade das coisas, pois Deus, de fato, já assumira corpo humano:

«Manifestou o poder do seu braço...

Veio em auxílio de Israel seu servo,

Recordado da sua misericórdia».

(Lc 1, 51.54)

O auxilio ou a salvação concedidos pelo Senhor ultrapassaram as mais otimistas expectativas da humanidade: em Jesus Cristo, Deus e o homem (Deus Salvador e o homem perdido) se uniram a ponto de formar uma só personalidade: por sua existência mesma, Cristo na terra era a reconciliação entre Deus e a humanidade. O próprio nome de «Jesus» significa em hebraico «Javé salva»; a salvação é Jesus Cristo.

Em linguagem figurada, dir-se-ia: a Mão de Deus e a mão do homem se uniram para sempre em Cristo, travando a nova e definitiva Aliança.

Seria lícito também afirmar: a «Mão de Deus» de que falava o Antigo Testamento, fez-se carne; a Mão salvadora de Javé identificou-se com a mão de carne de Jesus Cristo. E, já que cada mão humana é recíproca ou correspondente a todas as demais mãos humanas, a mão de Cristo vem a ser a Mão de Deus (= o auxílio, o carinho de Deus) estendida em resposta a toda e qualquer mão humana que se abra em meio à indigência e à penúria; é a Mão única de uma salvação universal.

3. Dentro desta perspectiva, deverão ser lidos os textos do S. Evangelho em que o autor sagrado realça explicitamente a ação salvífica da mão de Jesus Cristo.

Assim mão e mão se tocam no caso seguinte, anunciando de certo modo a vinda do Messias ao mundo:;

«Tendo entrado em casa de Pedro, Jesus aí encontrou a sogra de Pedro prostrada pela febre. Tocou-lhe a mão; a febre deixou-a, ela se levantou e pôs-se a servir» (Mt 8, 14s).

Leve-se em conta outrossim:

«Em um sábado, estava Jesus ensinando em uma das sinagogas. Apareceu ali uma mulher, que havia dezoito anos estava possessa de um espírito que a tornava enferma. Andava encurvada, e não podia absolutamente olhar para cima... Jesus impôs-lhe as mãos e ela no mesmo instante se ergueu e começou a glorificar a Deus» (Le 13,10s.13).

«Levaram a Jesus um homem surdo-mudo, e pediam-lhe que lhe impusesse a mão. Jesus levou-a à parte, longe da multidão, pôs-lhe os dedos nos ouvidos, e, tomando um pouco de saliva, com ela tocou-lhe a língua. Levantando os olhos ao céu, suspirou e disse-lhe: 'Efatá', o que quer dizer ‘Abre-te’. Imediatamente seus ouvidos se abriram. Desfez-se o empecilho de sua língua e começou a falar distintamente» (Mc 7, 32-35).

«Jesus cuspiu no chão, e fez lodo com a saliva e untou com o dedo os olhos do cego. E disse-lhe: ‘Vai, e lava-te na piscina de Siloé...'. Ele foi, lavou-se e voltou enxergando» (Jo 9, 6s).

Essa mão de Cristo salva não somente da doença, mas da própria morte, pois o Senhor veio restaurar a vida, e a vida em sentido pleno - a vida eterna:

«Quando Jesus chegou à casa do príncipe da sinagoga e viu os toca­dores de flauta e a multidão em alvoroço, disse: ‘Retirai-vos, porque a menina não está morta, mas dorme'. Eles, porém, riram-se dele.

Depois que a multidão foi afastada, Jesus entrou, segurou a mão da menina e ela se levantou» (Mt 9, 23-25).

«Quando o Senhor viu a viúva de Naím, sentiu-se movido de com­paixão para com ela e disse-lhe: ‘Não chores'. Aproximou-se e tocou no caixão. Pararam logo os que o levavam. Disse então: ‘Jovem, eu te digo, levanta-te'. O que tinha estado morto, levantou-se e começou a falar. E Jesus o entregou à sua mãe» (Le 7, 13-15).

Destarte conclui-se que no S. Evangelho o antropomorfismo da mão de Javé foi abolido como figura de estilo, porque se tornou realidade viva; Deus, de fato, quis ter mão humana a fim de preencher mais efi­cazmente o papel simbolizado pela mão (papel de auxiliar e salvar benevolamente). Os textos do Antigo Testamento foram, desse modo, ultrapassados, mas simultaneamente levados à plenitude da sua signi­ficação.

4. Depois da Ascensão de Jesus aos céus, o mistério da Mão de Deus se prolonga na Igreja e pela Igreja, pois esta, por sua vez, prolonga a Encarnação de Cristo. É dessa forma que a mão (ou a misericórdia salvífica) do Senhor continua a agir na his­tória através dos séculos, como o atesta a oração dos Apóstolos perseguidos:

«Considerai, Senhor, as ameaças que fazem, e concedei a vossos servos que anunciem vossa palavra com toda a segurança, estendendo a vossa mão para que se realizem curas, milagres e prodígios pelo nome de vosso santo servo Jesus» (At 4, 29s).

5. Em particular, no Ritual dos Sacramentos a Igreja faz questão de repetir os gestos das mãos de Cristo: haja vista, por exemplo, a im­posição dos dedos do sacerdote nos ouvidos do catecúmeno, a repetir o que Cristo fez quando curou o surdo-mudo (cf. Mc 7, 32-35). S. Agos­tinho justificaria esta praxe nos termos seguintes: «Batize Pedro, é Cristo quem batiza; batize Paulo, é Cristo quem batiza; batize Judas, é Cristo quem batiza (In Io 6). Em suma: é sempre Cristo quem age através dos sacramentos devidamente administrados.

6. Vê-se, pois, que a metáfora da Mão de Deus, grosseira e primitiva como parece, é portadora de profunda riqueza dou­trinária; basta lê-la na sua perspectiva autêntica, isto é, dentro das grandes linhas que constituem o conjunto da mensagem bíblica.

Através do exemplo que acaba de ser apresentado, poderá o leitor moderno ainda imperito familiarizar-se com o estilo bíblico e com a genuína maneira de o entender.

(Na redação do estudo acima, muito nos servimos do fascículo «La Main de Dieu») de E. Barbotin, publicado em «Vérité et Vie» LXII, 1963/64 n° 466B2).

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