Em síntese: A Igreja não se opõe à cremação de cadáveres, desde que não seja solicitada por motivos anticristãos ou materialistas; segundo a Tradição bíblica e cristã, o sepultamento dos mortos é preferível, pois distingue melhor dos detritos indesejáveis e incinerados o corpo humano, templo do Espírito Santo.
A cremação hoje em dia é justificada por motivos urbanísticos, ecológicos, higienísticos... Todavia parece também ser a expressão do horror da morte que tem marcado a sociedade contemporânea; esta vem apagando os símbolos da morte e da sobrevivência, descaracterizando os cemitérios ou transformando-os em parques de lazer. A incineração, neste contexto, pode vir a ser um dos recursos mais radicais para extinguir a imagem do defunto (nem túmulo nem visita do túmulo pode haver, se as cinzas são lançadas num rio ou num jardim ameno).
Com isto não queremos impugnar peremptoriamente a cremação dos cadáveres, que pode ter suas razões legitimantes, nem intencionamos defender as manifestações teatrais de dor e luto perante a morte que ocorreram no passado, mas temos em vista lembrar que: 1) a morte é a única certeza que a criança e o adulto têm; daí ser desarrazoado evitar considerá-la; 2) a morte, inevitável como é, não seja considerada pelos cristãos como ruptura ou fim, mas, sim, como plenitude de uma vida que a criança recebe germinal no Batismo e que tende a se desabrochar cada vez mais até a sua consumação no Além ou na visão de Deus face-à-face
***
Registra-se a tendência, ao menos em certos países, a substituir a tradicional inumação dos mortos pela cremação dos respectivos cadáveres. Há mesmo quem julgue que tal será a praxe mais freqüente num futuro não muito distante. Todavia esta previsão parece contraditada por certa aversão natural de numerosas pessoas à perspectiva da cremação, pois esta faz que ao corpo humano se aplique o mesmo tratamento que a objetos indesejáveis ou inúteis.
Entre alguns dados interessantes a propósito, seja citado um inquérito realizado na França junto a 1.128 pessoas, de mais de quinze anos de idade; comportava cerca de cinqüenta perguntas concernentes à incineração. Eis alguns de seus tópicos mais significativos:
À pergunta "Você prefere ser enterrado(a) ou incinerado(a), 53% responderam preferir ser enterrados; 20%, incinerados; 27% nada responderam.
A pergunta "Algumas pessoas preferem ser incineradas; você julga que isto ocorre principalmente
- por motivos ecológicos?' - 28% responderam Sim;
- "por motivos econômicos (é menos caro)?" - 7% responderam Sim;
- "por razões filosóficas?" - 41% disseram Sim;
- "por outros motivos?" -14% responderam Sim;
- Não se pronunciaram 10%.
Esta estatística faz pensar. Apenas 20% preferiram a incineração, mas na mesma época (1979) houve na França menos de 1% de cremações... - o que significa que a teoria e a prática não se sobrepõem exatamente. Observe-se também que 41% julgaram haver motivos filosóficos para se, preferir a incineração; isto é significativo, pois, em última análise, se verifica que é o sentido do homem e de sua vida que está em causa quando se discute a cremação de um cadáver.
Eis outra estatística, concernente à pratica da cremação em diversos países no ano de 1983:
Japão, 90%; Grã-Bretanha, 76%; Dinamarca, 60%; Holanda, 38%; Alemanha Ocidental, 19%; Bélgica, 9%; Luxemburgo, 6%; França, 1, 83%; Itália, 0,4%.
Estes números parecem confirmar a tese de que determinada filosofia de vida está, não raro, associada à prática da cremação. Diante desta verificação, examinaremos: 1) aposição da Igreja Católica perante tal uso; 2) motivos subjacentes à cremação em nossos dias.
A Igreja e a cremação
1.1. fundamentação bíblica
A cremação de cadáveres foi e é praticada por numerosos povos. Todavia os judeus sempre lhe preferiram a inumação. A propósito cita-se o texto de Dt 21, 22s:
“Se um homem , culpado de crime que merece a pena de morte, é morto e suspenso a uma árvore, seu cadáver não poderá permanecer na árvore à noite; tu o sepultarás no mesmo dia, pois o que for suspenso é um maldito de Deus. Deste modo não tornarás impuro o solo que o Senhor teu Deus te dará por herança”
Não ser sepultado era castigo, conforme os seguintes textos:
Jr 8, 1 s “Naquele tempo - oráculo do Senhor - tirarão de seus sepulcros os ossos dos reis de Judá, os ossos de seus príncipes, os ossos dos sacerdotes, os ossos dos profetas e os ossos dos habitantes de Jerusalém. Eles os espalharão diante do sol, da luz e de todo o exército celeste, que eles amaram, serviram e interrogaram e diante dos quais eles se prostraram”:
2Rs 9, 36s: "Jeú disse: 'Esta foi a palavra do Senhor, que pronunciou por intermédio de seu servo Elias, o tesbita: No campo de Jezrael, os cães devorarão a carne de Jezabel; e o cadáver de Jezabel será como esterco espalhado no campo, de modo que não se poderá dizer: Esta é Jezabel”:
Os casos de incineração eram exceções:
1 Sm 31, 12s: "Todos os valentes... retiraram do muro de Betsã o cadáver de Saul e os dos seus filhos... e os incineraram. Depois recolheram os seus ossos e os enterraram debaixo da tamareira de Jabes”
Os cristãos herdaram o costume judaico do sepultamento; mediante ritos especiais, tencionavam mostrar seu respeito aos cadáveres. Foi, aliás, isto que se deu com o próprio Jesus:
Jo 19, 40-42: "Tomaram o corpo de Jesus e o envolveram em panos de linho com os aromas, como os judeus costumam sepultar. Havia um jardim no lugar onde ele fora crucificado e, no jardim, um sepulcro novo, no qual ninguém fora ainda colocado. Ali então por causa da Preparação dos judeus e porque o sepulcro estava perto, eles depositaram Jesus”:
Sobre tal base bíblica desenvolveu-se a história do Cristianismo.
1.2. Na história da Igreja
Distinguem-se quatro fases, de duração desigual, na história do tratamento dos cadáveres dentro da Igreja:
1.2.1. Até a Paz de Milão (313)
Os primeiros séculos até 313 foram marcados por violentas perseguições aos cristãos; os adversários os agrediam também pela violação de suas sepulturas e pela incineração dos corpos dos mártires. Os cristãos reagiram contra tais invectivas, não porque a cremação fira diretamente algum artigo de fé ou Moral católica; ela não impede a ressurreição final dos corpos, pois em qualquer hipótese é claro que o cadáver se reduz a cinzas, que muitas vezes são devoradas pelos vermes. Não obstante, Deus reconstituirá o composto de corpo e alma, no fim dos tempos ou por ocasião da segunda vinda de Cristo, unindo à alma que sobreviverá, aquilo que a filosofia chama "matéria prima" ou "pura potência"; esta assumirá os traços típicos da pessoa em foco.
A Igreja seguiu a praxe bíblica, cavando catacumbas (cemitérios) para sepultar seus mortos e empregando todos os meios para recuperar os cadáveres de seus mártires. Disto temos um testemunho muito nítido nas Atas dos Mártires de Lião (Gália), que morreram em 177:
"Estávamos em grande aflição por não poder sepultar seus corpos na terra. A noite não nos ajudava. .O dinheiro não seduzia os guardas, nem a oração os perturbava. Vigiavam heroicamente como se fosse de seu interesse que os corpos não tivessem sepultura... Por conseguinte, os cadáveres dos mártires foram expostos e deixados ao ar livre durante seis dias,- a seguir, foram cremados e reduzidos a cinzas pelos perversos, que os atiraram no Ródano, a fim de que não ficasse mais nenhum vestígio deles na terra. Os pagãos faziam isto como se pudessem vencer a Deus e privar os mortos de novo nascimento, a fim de que, como diziam, os mártires não tivessem esperança de ressurreição" (Eusébio, História Eclesiástica, I. V, c. 1, § 61).
Este texto manifesta claramente, de um lado, o vivo desejo, dos cristãos, de sepultar seus mortos, a ponto mesmo de subornar os guardas, e, de outro lado, a firme intenção, dos pagãos, de atingir os cristãos em sua fé na ressurreição.
1.2.2. Do século IV ao século XIX
Após a era das perseguições torna-se tranqüila a praxe de sepultar os mortos. A Liturgia das Exéquias foi-se desenvolvendo em vista da inumaçãodos cadáveres. Os cemitérios eram construídos, muitas vezes, ao lado da Igreja matriz da cidade, de modo que se dedicava aos mortos um religioso respeito; os defuntos e os sobreviventes pareciam continuar em comunhão entre si, sem que se sentisse a necessidade de relegar a necrópole (= cidade dos mortos) para longe da cidade dos vivos. Sabe-se também que muitos personagens medievais aspiravam a ser sepultados na própria igreja ou nos claustros dos mosteiros e dos templos sagrados. Mais: a veneração de relíquias também atestava o respeito tributado aos mortos e aos seus despojos; estas eram considerados como resquícios do templo vivo de Deus (cf. l Cor 3, 16s; 6, 19; 2Cor 6, 16), e “instrumentos utilizados pelo Espírito Santo para toda obra boa”, como dizia S. Agostinho.
Foi-nos transmitida a notícia de incineração em casos raros, como, por exemplo, os de epidemia: a autoridade do Imperador prescrevia então a cremação; realizada esta, recolhiam-se as cinzas numa urna, que era depositada na terra, com as mesmas honras que tocavam a um cadáver sepultado.
Há também notícia de punição infligida a quem, sem motivo sério, incinerasse um cadáver. Assim, por exemplo, uma lei de Carlos Magno datada de 789, punia com a morte "quem tivesse incinerado o corpo de um defunto, conforme o rito dos pagãos, e reduzido os seus ossos a cinzas". O Papa Bonifácio VIII excomungou em 1299, mediante a Decretal Detestandae Feritatis (L. 11 1, tit. VI), quem infligisse macabro trato a cadáveres, para torná-los mais leves e poder transportá-los mais facilmente; dispunha que não gozariam de sepultura eclesiástica os restos mortais decorrentes de tais manipulações.
No século XVIII, porém, a Revolução Francesa despertou no Ocidente a atenção para a cremação. Em 1798 foi proposta a construção, em Paris (Montmartre), de um columbário (ou edifício a nichos) no qual seriam guardadas as urnas funerárias portadoras das cinzas de cadáveres cremados. Quatro grandes portas lhe dariam acesso, dedicadas respectivamente à Infância, à Juventude, à Maturidade e à Velhice; quatro entradas, sinuosas como sinuosa é a vida, levariam até o monumento central desse edifício, ... monumento que seria uma pirâmide coroada de um tripé, a significar o fim de tudo. O projeto encontrou pouca ressonância, de modo que, embora muito focalizada e discutida, a cremação não chegou a ser usual nos países cristãos até a segunda metade do século XIX.
Este, fortemente marcado por idéias materialistas e atéias, constituiu um clima propício à disseminação da tese e da prática da cremação; naquela época, esta praxe significava uma réplica ao Cristianismo ou a expressão de que nada há após a morte, podendo consequentemente o cadáver humano ser tratado como lixo.
1.2.3. Na transição do século XIX ao século XX
Sob a pressão da Maçonaria, no século XIX fundaram-se associações para promover a cremação de cadáveres e realizaram-se Congressos destinados a justificá-la na Europa.
Na França, aos 15/11/1887 foi votada uma lei que autorizava a escolha de funerais ou por inumação ou por cremação. O primeiro crematório de Paris foi inaugurado em 1889 na área do cemitério do Père-Lachaise.
A Igreja se pronunciou sucessivamente contra a nova prática. Assim aos 19/05/1886 era proibido aos católicos filiar-se a alguma sociedade partidária da incineração ou pedir a incineração para si mesmos. Aos 15/12/1886 eram privados da sepultura eclesiástica aqueles que tivessem persistido no desejo de ser incinerados. Aos 27/07/1892 tais declarações eram confirmadas e se lhes acrescentava a proibição de celebrar publicamente a S. Missa por um católico que tivesse sido incinerado (não era proibida a celebração em caráter privado); aos funcionários dos crematórios certas restrições eram impostas.
As razões de tais determinações derivavam-se de que os pedidos e a prática da cremação no século XIX tinham caráter filosófico, isto é, prendiam-se geralmente a maçons, que tencionavam dessa forma afirmar que não existe outra vida e que o corpo humano, após esta existência terrestre, pode ser tratado como qualquer detrito indesejado. O sepultamento, segundo a praxe bíblica e o exemplo de Jesus Cristo, era normativo para a Igreja naquela época.
Em 1917 foi promulgado o Código de Direito Canônico (hoje substituído pelo de 1983), que rezava:
Cânon 1203: "Os corpos dos fiéis defuntos devem ser sepultados; é reprovada a sua cremação. Se alguém, de qualquer modo, pedir que seu cadáver seja incinerado, será ilícito executar tal desejo. Se esse pedido for acrescentado a um contrato, um testamento ou algum outro ato, seja tido como não existente
Cânon 1240 § 1°, 5°. "Serão privados da sepultura eclesiástica, a menos que tenham dado sinal de penitência antes da morte, ... os que tiverem pedido que seus corpos sejam queimados'
Aos 19/06/1926, nova Instrução do S. Ofício recordava as prescrições anteriores e acrescentava-lhes três observações:
- a incineração como tal não é intrinsecamente pecaminosa; por isto pode ser permitida em casos de interesse geral (epidemias, guerras...); mas são gravemente ilícitas a prática sistemática e a propaganda da mesma;
- se a incineração resulta não da vontade do defunto, mas da decisão de terceiros, poderão ser celebradas exéquias religiosas, desde que se evite todo escândalo;
- as cinzas de alguém que tenha pedido a incineração, não poderão ser depositadas num cemitério cristão; caso as autoridades civis o exijam, os sacerdotes hão de protestar e recusarão qualquer participação nos ritos funerários.
Como se vê, esta última determinação já comportava certa abertura, reconhecendo a legitimidade da incineração em casos especiais. A posição da Igreja era explicada em 1948 por um canonista muito conceituado, o Prof. Raoul Naz:
"Não se julgue que a cremação seja um obstáculo à Onipotência Divina no dia da ressurreição dos corpos. Ocorre, porém, que essa prática é preconizada segundo intenções hostis à Igreja, no intuito de substituir o simbolismo cristão da inumação pelo simbolismo materialista e pagão da incineração. É certo que a propaganda em prol da cremação tem origens maçônicas.
Mons. Chollet cita este trecho de uma circular dirigida pelas Lojas aos seus membros:
'Os franco-maçons deveriam recorrer a todos os meios para propagar o uso da cremação. A Igreja, proibindo a incineração dos corpos, afirma os seus direitos sobre os vivos e os mortos e procura conservar no povo as antigas crenças referentes à alma espiritual e à vida futura, atualmente dissipadas por evocação da luz da ciência' "(Traité de Droit Canonique, t. III, pp. 39s).
Passemos agora à época contemporânea.
1.2.4. Na segunda metade do século XX
Os tempos evoluíram. As autoridades eclesiásticas puderam verificar que muitos pedidos de cremação não se inspiravam em razões filosóficas anti-cristãs, mas sim em motivos pragmáticos. Daí a revisão da legislação anterior, devida a uma disposição do S. Ofício datada de 08/05/1963:
"Haja cuidadoso empenho em manter fielmente o costume de sepultar os corpos dos fiéis defuntos.
2. Doravante as prescrições dos cânones 1203 § 29 e 1240 10, 50 não serão observadas a não ser que se comprove ter sido a cremação solicitada como recusa dos dogmas cristãos, em espírito sectário ou por ódio à religião católica ou à Igreja.
3. Segue-se que os sacramentos e as preces públicas não deverão ser recusadas aos que pedirem a incineração de seus corpos, a menos que seja evidente que tal pedido foi feito pelos motivos acima, contrários à doutrina crista:
4. Para não debilitar a estima do povo cristão à tradição eclesiástica e para mostrar a aversão da Igreja à incineração, os ritos das exéquias eclesiásticas e dos sufrágios ulteriores nunca poderão ser celebrados no lugar da própria incineração. Também não se deverá acompanhar o corpo até aquele local”
Esta legislação, que já reconhecia a legitimidade da cremação por motivos pragmáticos, ainda foi abrandada pelo Ritual dos Funerais publicado aos 15/08/1969, que suprimiu a proibição do n.4 anterior:
“Aqueles que preferirem a incineração de seus cadáveres, dever-se-á conceder o rito dos funerais cristãos, exceto se for evidente que fizeram tal escolha por motivos hostis à doutrina cristã... As exéquias serão celebradas segundo o estilo usual na região, de tal modo, porém, que não se dissimule a preferência da Igreja pelo sepultamento dos cadáveres à semelhança do que o Senhor mesmo quis para si; evite-se escandalizar os fiéis ou causar-lhes surpresa.
Os ritos previstos para a capela do cemitério ou para junto do túmulo podem, em tal caso, ser efetuados no lugar mesmo da incineração e até, na falta de outro lugar apropriado, junto ao forno crematório, evitando-se prudentemente provocar escândalo ou parecer favorecer o indiferentismo religioso’’
Finalmente o atual Código de Direito Canônico datado de 1983 endossou tal prática, ao declarar muito brevemente:
'’A Igreja recomenda vivamente que seja conservado o piedoso costume de sepultar os corpos dos defuntos; todavia ela não proíbe a cremação, a não ser que haja sido escolhida por motivos contrários à doutrina cristã" (cânon 1176, § 3).
E ainda:
Cânon 1184 § 1°: "Devem ser privados das exéquias eclesiásticas, a não ser que antes da morte tenham dado algum sinal de penitência eclesiástica.
.........
20 os que tiverem escolhido a cremação de seu corpo por motivos contrários à doutrina cristã”:
Este percurso histórico evidencia bem que a aversão da Igreja à cremação nunca foi devida a princípios dogmáticos, mas era condicionada pelo significado que os materialistas davam a tal prática, ... significado contingente, mas que implicava uma contradição à fé católica.
Em nossos dias, desde que se peça a cremação por motivos pragmáticos, a Igreja não se opõe à prática... Entre as razões mais aduzidas atualmente, contam-se: a higiene (o mito de uma morte "limpa"), o urbanismo (os grandes espaços ocupados pelos cemitérios tornam-se ociosos), a ecologia (a terra pertence aos vivos!), o progresso (a cremação é praticada nos países mais avançados em tecnologia), a economia (alega-se erroneamente o menor custo financeiro da cremação)... Além disto, porém, os observadores julgam poder descobrir na onda ascensional da cremação um elemento sutil, subjacente, que passamos a considerar, visto ser assaz importante.
2. Cremação: uma reflexão sobre o fenômeno
Um fato urbanístico chama-nos a atenção.
Na Idade Média cristã, o cemitério não constituía uma área à parte, mas se situava em torno da igreja principal da cidade, portanto nos centros urbanos, grandes ou pequenos. Parecia desempenhar certo papel dentro da sociedade, unindo os vivos e os mortos no quadro de uma grande família, cujos membros coabitavam. Isto quer dizer ainda que o cemitério não era escondido ou ocultado aos olhares dos viventes, mas bem caracterizado por sua arquitetura e seus sinais, que falavam da morte e da sobrevivência póstuma. - Ainda hoje há remanescentes desse tipo de cemitérios vastos, espetaculares e monumentais; além dos que existem nas cidades do Brasil, sejam citados o do Père-Lachaise de Paris, o Cemitero Monumentale de Milão, o Staglieno de Gênova, o Forest Lawn Memorial Park perto de Los Angeles... São necrópoles, cidades dos mortos, bem definidas como tais.
Nota-se, porém, nos tempos atuais uma tendência a apagar, tanto quanto possível, os sinais da morte. Esta parece tornar-se algo de tão horrendo que até os seus símbolos clássicos são removidos do convívio dos mortais. A imortalidade ou a sobrevivência parece ser um "antigo sonho", produto de mentalidade simplória ou de imaginação fecunda. O famoso mentor da Revolução Francesa, Maximilien de Robespierre (+ 1794), tinha a crença na ressurreição como uma "ficção necessária". A morte é o silêncio e impõe o silêncio sobre a própria morte e o post mortem. "Os vivos têm medo dos mortos; têm medo principalmente da morte" (G. de Menas).
Se não, há mais lugar para o "antigo sonho" da imortalidade, também já não deve haver espaço físico para exprimi-lo..., não deve existir "terra dos mortos". É o que se verifica em algumas sociedades contemporâneas; aí os cemitérios vão desaparecendo ou tornando-se algo cada vez mais vago e descaracterizado.
Uma das maneiras de realizar essa chamada "estética do desaparecimento" consiste em assemelhar os cemitérios a parques ou áreas verdes, nas quais até as crianças se divertiriam. Tal é a tendência dos anglo-saxões.[1]
Outra forma da "estética do desaparecimento" concebe as necrópoles como imóveis modernos ou edifícios-torres, que não se distinguem dos demais no conjunto de prédios das cidades.
Segundo estas duas maneiras de proceder, já não aparecem novos cemitérios nos ambientes dos vivos, mas, ao contrário, ocultam-se ou dissimulam-se as necrópoles ou as cidades dos mortos.
Outro comportamento, mais radical ainda, é observado mais recentemente: há projetos de necrópoles subterrâneas, de tal modo que os cemitérios são, por sua vez, "enterrados" ou subtraídos aos olhares dos viventes.
Por último, verifica-se em alguns casos que se vêm repetindo: no planejamento de novas cidades, os urbanistas simplesmente esquecem-se de prever um espaço para os mortos.
Todos estes fatos parecem ter uma raiz comum, a saber: o desejo de afastar a recordação da morte. Esta, quando não pode ser silenciada, é travestida ou relegada para as fronteiras do invisível. Nada mais se tem a dizer sobre a imortalidade e a sobrevivência; no próprio interior! das necrópoles, os túmulos são estandartizados, mudos, atrofiados em sua simbologia. Os antigos cemitérios parecem ilhas estranhas no conjunto urbanístico[2].
É sobre este fundo de cena que se pode considerar a cremação em nossos dias. Não seria ela, ao menos em alguns casos, a expressão do anseio, cada vez mais difundido, de apagar os vestígios da morte?
Esta, aliás, começa a ser escamoteada nos hospitais: em nome da técnica médica ou da obstinação terapêutica, o paciente é isolado; a assistência que se lhe presta, é estritamente profissional, às vezes impessoal; o doente se vê cercado de aparelhos e de profissionais que observam os registros da aparelhagem, às vezes em dolorosa solidão (visto que os entes mais caros só fugazmente o podem abordar).[3]
Uma vez averiguada a morte, os técnicos se empenham por fazer desaparecer o cadáver... A morte é marcada por um interdito ou um tabu, mais forte do que o do sexo?[4]
A cremação vem a ser uma ulterior etapa de apagamento da morte. É a maneira mais científica, mais limpa, mais eficaz e mais rápida da eliminação de cadáveres que se tornam embaraçosos, onerosos, talvez insuportáveis, para os sobreviventes. Embora não seja mais econômica, é a forma de dispensar os vivos de conservar o túmulo e visitar os mortos no cemitério. As cinzas ou são guardadas em columbários de modo muito impessoal ou atiradas dentro das águas de rio ou de mar ou lançadas ao ar num jardim de saudades... A cremação tornou possíveis os genocídios cometidos por Adolf Hitler: o problema dos carrascos não era o de matar, mas o de se desfazer dos montões de cadáveres...
Verdade é que a perspectiva da incineração suscita muitas vezes certa repulsa ou mesmo o desespero. É também verdade que as razões alegadas em favor da cremação podem ser sinceras e fundamentadas: higiene, urbanismo, ecologia, progresso, economia (?)... Mas não se pode negar que exprimem outrossim o modo de pensar (consciente ou inconsciente) de uma sociedade secularizada ou dessacralizada, ... sociedade para a qual a dedicação de tempo gratuito e ritual aos mortos não tem sentido, visto que há tão pouco tempo para dedicar aos interesses dos vivos. Os pacientes que pedem a cremação de seus cadáveres para não onerar a sua família, corroboram essa logística tecnicista, ainda que só pensem em aliviar os seus parentes.
A bem da verdade, pode-se crer que a voga da cremação nos países ocidentais se deve, em parte, também à influência das religiões orientais, especialmente da Índia. Para estas, o corpo é o invólucro perecível que o espírito depõe na hora da morte, a fim de poder revestir-se de outro invólucro na próxima reencarnação. Esta convicção, sem dúvida, subestima ou relativiza o valor do corpo que cada indivíduo tem na vida presente. Outra é a concepção cristã, que admite uma só passagem do homem por esta terra e, por isto, aprecia grandemente o corpo humano como sendo instrumento e teatro do aperfeiçoamento ou da auto-realização da alma humana.
Em alguns casos, os familiares pedem a urna portadora das cinzas do defunto a fim de a guardar em casa... A intenção pode ser boa ou ditada por saudades. Parece, porém, contraditória em relação ao rito da cremação, que é a forma mais radical de acabar com algo que se torna oneroso e indesejado. A experiência ensina que em alguns casos a presença da urna em residência da família tem dado origem a ritos familiares e fantasiosos; restauram o culto dos mortos, que a incineração parece querer apagar.
Passemos a uma
3. Conclusão
Não há dúvida, a incineração tem seus aspectos válidos e positivos; pode implicar benefícios para a sociedade contemporânea. Mas não deixa de ter seu caráter ambíguo: ela entra em voga precisamente numa época em que a imagem da morte tende a ser apagada da memória dos vivos; a incineração é, sem dúvida, uma forma expedita e sumária de contribuir para esse apagamento da morte... Ora a fuga do conceito de morte e dos seus símbolos não somente é anti-cristã, mas é também anti-humana. Com efeito; a morte é a única certeza que a criança pode ter ao nascer; é o grande Norte que deve nortear toda a existência terrestre de alguém. Já os antigos romanos diziam: "In omnibus respice finem. - Em tudo o que faças, considera o fim". É o fim que dita as etapas da caminhada e que indica o rumo a seguir; quem não quer pensar no fim, 'torna-se um barco à deriva das ondas e não vê sentido em sua existência. Daí a importância de não se esquecer o desfecho da vida humana; esta pode ser comparada a um livro, do qual cada dia o indivíduo escreve uma página e que há de ser revisto e entregue lúcido, polido e rico de mensagem aos sobreviventes no dia em que o autor terminar sua jornada terrestre. - Para o cristão, estas reflexões filosóficas são mais significativas ainda, pois ele sabe que a morte não é uma ruptura, uma perda, mas é a transição para a plenitude da vida; nesta perspectiva, a morte perde o seu caráter horrendo e detestável, para tornar-se a consumação almejada por muitos e muitos justos no decorrer da história. Santa Teresa dizia: "É tempo de acabar esta noite de má pousada!" ou ainda: "Senhor, é tempo de nos vermos!"
Ao enfatizar estas verdades, não tencionamos contradizer às tendências modernas de evitar o masoquismo ou as atitudes macabras, sentimentais e teatrais que a morte suscitou em tempos passados. É oportuna, sim, a reação a tal desolação. A fé cristã só pode apoiar e fortalecer atitudes sóbrias e comedidas perante a morte; a Liturgia dos defuntos hoje em dia canta o Aleluia, à diferença do que acontecia outrora. Mas o que a fé cristã não aceita, é o apagamento da realidade da morte e dos seus símbolos; é a fuga sistemática de tal recordação como se fosse algo de feio ou um tabu. O cristão tenha em vista diariamente a possibilidade da morte, que não pede licença e muitas vezes não manda aviso prévio; enquadre este desfecho dentro de uma prospectiva de confiança e otimismo..., confiança e otimismo que têm seu fundamento na Palavra de Deus, à qual cada indivíduo responderá mediante uma conduta de vida íntegra ou fiel à sua vocação. Quem vive de tal modo, vai perdendo o medo da morte, para considerá-la cada vez mais como colheita feliz de uma farta semeadura ou como plenitude de uma vida interior que vai desabrochando aos poucos no decorrer da existência terrestre.
Bibliografia:
ANGUÉ JEAN-LOUIS, Incineration et ritual des funérailles, em Etudes, dezembro 1985, pp. 663-676.
BAGNARD, GUY Les incinerations et I'Eglise, em La Documentation Catholique, n. 1993, 5/11/1989, pp. 961s.
LOTZ/KA, INËS, Incineration: malaise pour un dernier adieu, em Etudes, dezembro 1985, pp. 657-662.
SCHLEGEL, JEAN-LOUIS, Logiques de l'incineration, em Etudes, dezembro 1985, pp. 677-680.
URBAIN, JEAN-DIDIER, Les cimetières d'Occident, em Etudes, août-septembre 1982, pp. 193-203.
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NOTAS:
[1] Em 1986 o Deputado Freitas Nobre no Brasil elaborou um projeto que transformava os cemitérios em jardins de lazer e de pesquisas científicas. Os mortos seriam enterrados em posição vertical; em cima dos cadáveres colocar-se-iam estrume e adubantes a fim de tornar o solo fértil, e neste se plantariam árvores e vegetais destinados a proporcionar bem-estar a quem desejasse passear, e matéria de pesquisas aos estudiosos da flora e da fauna. Cf. PR 293/1986, pp. 475-478.
[2] Não há dúvida, as observações acima são muito mais consentâneas com a realidade européia do que com a brasileira. Verifica-se, porém, que as tendências de além-mar vão penetrando aos poucos em nosso país e ganhando voga crescente em nossos centros urbanos.
[3] Nada se pode objetar ao emprego da técnica médica e dos procedimentos mais requintados da ciência (desde que não firam a Ética). Mas o que muitos pensadores registram, é que os recursos modernos condenam freqüentemente o enfermo a uma solidão dolorosa, na qual lhe falta o acompanhamento dos familiares e amigos.
[4] Sabemos que Freud julgava serem o Eros e o Thánatos, o sexo e a morte, o amor e a agressividade, os dois impulsos fundamentais do ser humano.
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