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quarta-feira, 23 de junho de 2010

Protestantismo: e o cisma dos Ortodoxos?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 010/1958)


«Como se explica o cisma dos cristãos chamados 'ortodoxos'?


Quais os pontos de doutrina em que diferem dos católicos?»

O grande cisma oriental, que chegou à sua fase definitiva no séc. XI, não é senão o último episódio de longo período da história, em que se defrontaram duas mentalidades — a grega e a latina — a inspirar de maneira notável o curso dos acon­tecimentos. As características próprias de gregos e latinos foram tomando, no decorrer dos séculos, tal vulto que provo­caram a ruptura religiosa (ruptura, porém, que não impede se reconheça a verdadeira Igreja de Cristo).

Importa-nos, por conseguinte, antes do mais, esboçar a índole de mente e conduta dos cristãos orientais e ocidentais nos primeiros séculos. A seguir, veremos como a ruptura se deu e quais os traços que a caracterizam hoje em dia.

1. Divergências de índole e de comportamento

1. O Imperador Diocleciano no fim do séc. III d. C. dividiu o Império Romano em duas partes: a oriental e a ocidental. Esta divisão concorreu para acentuar diferenças de índole e cultura próprias dos habitantes do Império, diferenças que se poderiam discriminar como se segue:

a) Quanto ao caráter: os gregos eram dotados de notável engenho especulativo; por isto amavam as pesquisas filosóficas e teológicas sutis, assim como tudo que há de belo (as letras, as artes e as disciplinas liberais). Os romanos, ao contrário, eram os amigos do direito, da organização e da vida prática. Em conseqüência, os gregos facilmente poderiam exagerar seu ponto de vista e desprezar os ocidentais como sendo homens alheios aos valores do espírito, dados unicamente à guerra à barbárie ou aos elementos contingentes da vida. Os romanos, por sua vez, poderiam acusar os gregos de ser tagarelas, incons­tantes, pouco fiéis na sua conduta prática («graeca fides, nulla fides»); cf. At 17,21.

No plano estritamente cristão, verifica-se que os fiéis orientais desde cedo manifestaram nítida tendência à especula­ção teológica e à argumentação dialética, ao passo que os ocidentais voltavam sua atenção de preferência para questões de ordem missionária e pastoral.

b) Quanto à língua e à cultura em geral: os primeiros documentos de Roma cristã foram redigidos em grego; depois do séc. IV, porém, esta língua quase desapareceu do Ocidente, cedendo ao latim, ao passo que no Oriente o latim, desde o Imperador Justiniano († 565), se tornou quase desconhecido e desprezado.

Significativo é o fato de que o Imperador Leão III (717-741) concedeu aos mais altos dignitários do Império os títulos latinos de «Dominus, Caesar, Augustus», tradicionalmente reservados a Sua Ma­jestade, para tomar as designações gregas de «Autokrator, Basileus». Por seu lado, o arquidiácono latino Gregório (depois Papa São Gre­gório Magno, † 604) no fim do séc. VI passou cinco anos na corte de Constantinopla como legado papal, sem aprender o grego; embora fosse homem de valor intelectual, julgava que isso não valia a pena...

Ora a ignorância mútua das línguas muito contribuía para que as comunicações entre Oriente e Ocidente se tornas­sem mais raras e difíceis, dependentes frequentemente de cicerones que não eram fiéis (assim consta que as atas do concílio ecumênico de Nicéia II, 787, foram mal traduzidas do grego para o latim; já que a versão não distinguia devida­mente entre os conceitos de adoração e veneração, os latinos hesitaram em aceitar tais atas).

c) Quanto à liturgia e à disciplina eclesiástica: seguiam-se, por vezes, tradições diferentes no Oriente e no Ocidente, no tocante, por exemplo, ao calendário de Páscoa, aos dias de jejum (o sábado era dia em que os latinos jejuavam, e os gregos não), à matéria do sacramento da Eucaristia (pão sem fermento no Ocidente; pão fermentado no Oriente), ao celibato do clero. . . Essas tradições por não afetarem o dogma, mas questões acidentais, eram perfeitamente aceitáveis; have­riam, porém, de tornar-se motivo de debates em tempos de controvérsia.

2. Leve-se em consideração outrossim a mentalidade que se foi formando em Bizâncio, ou seja, o chamado «bizantinismo».

Em 330 Constantino elevava a cidade de Bizâncio, no Bósforo, à dignidade de capital do Império Romano do Oriente ou de «Nova Roma». Esta fora até então uma localidade insignificante, que muito sofrera por parte dos Imperadores Romanos. Do ponto de vista eclesiástico, Bizâncio também carecia de significado; a sua comunidade cristã não fora fun­dada por algum dos Apóstolos (como as de Jerusalém, Antio­quia, Alexandria, Roma.); o primeiro bispo que se lhe conhece, Metrófanes, é do início do séc. IV (315-325) e sufragâneo do metropolita de Heracléia na Trácia.

Compreende-se então que, o prestígio que Bizâncio não possuía por suas tradições, os bizantinos o quisessem obter por suas reivindicações de índole civil e religiosa. De modo geral, ia-se tornando difícil aos bizantinos o reconhecimento da autoridade religiosa de Roma, já que todo o esplendor da corte imperial se havia transferido para Constantinopla.

Acresce que os Imperadores bizantinos, recordados talvez do título de «Pontifex Maximus» que lhes convinha nos tempos do paganismo, se ingeriam demasiadamente em questões eclesiásticas, intervindo, por exemplo, na nomeação dos bispos e procurando manter a Igreja oriental sob o seu controle (cesaropapismo). Os monarcas nas controvérsias dogmáticas muitas vezes favoreciam as doutrinas heréticas, contrapondo-se assim a Roma e ao seu bispo, que defendiam a reta fé. Os Patriarcas de Constantinopla, por sua vez, muito dependen­tes do Imperador, procuravam a preeminência sobre as demais sedes episcopais do Oriente e queriam rivalizar com o Patriarca romano, sucessor de São Pedro, aderindo à heresia e provo­cando cismas: dos 58 bispos de Constantinopla desde Metró­fanes até Fócio (858), 21 foram partidários de heresia; do concílio de Nicéia I (325) até a ascensão de Fócio (858), a Igreja de Bizâncio passou mais de 200 anos em cisma com Roma.

Registraram-se mesmo atos de violência cometidos pelos Imperadores contra alguns Papas: Justiniano I mandou buscar à força o Papa Vigilio em Roma e o quis coagir a aprovar normas religiosas baixadas pelo monarca (cerca de 550); Constante II procedeu de forma análoga contra o Papa Mar­tinho I, que em Roma (649) se opusera à heresia monotelista favorecida pelo Imperador; Justiniano II mandou prender em Roma o Papa Sérgio I, que não queria reconhecer inovações promulgadas pelo concílio Trulano II (692); Leão III, icono­clasta, em 731 subtraiu a Roma a jurisdição sobre a Ilíria e sobre parte do «patrimônio de São Pedro» (Itália meridional).

3. O distanciamento entre orientais e ocidentais, tão influenciado por motivos políticos, ainda foi acentuado pela criação do «Sacro Império Romano da Nação dos Francos», cujo primeiro Imperador, Carlos Magno, recebeu a coroa em 800 das mãos do Papa Leão III.

O descaso (ou a hostilidade) dos bizantinos, associado à opressão dos lombardos ao norte da Itália, dera motivo a que os Papas se voltassem aos poucos, com olhar simpático, para um povo recém-convertido e fiel à Igreja — os francos —, pedindo-lhes o auxílio necessário para se instaurar nova ordem de coisas no Ocidente. A entrega da coroa imperial a Carlos Magno visava prestigiar os francos nessa sua missão. Como se compreende, em Bizâncio tal ato foi mal acolhido; os orientais julgavam que só podia haver um Império cristão, como só pode haver um Deus; o Imperador reinava em nome de Cristo e era como que o representante visível da unidade da Igreja; daí grande surpresa e escândalo quando em 800 souberam que o bispo de Roma sagrara um «bárbaro» para governar um segundo Império cristão!

Apesar de tudo, porém, deve-se dizer que até o séc. IX o primado de Roma ainda era satisfatoriamente reconhecido pelos orientais. A tensão de ânimos se manifestou em termos novos e funestos sob a chefia dos Patriarcas Fócio († 897) e Miguel Cerulário († 1059).

2. A ruptura

Em 858 foi ilegitimamente deposto por adversários polí­ticos o Patriarca Inácio, de Constantinopla.

Em seu lugar, subiu à cátedra episcopal um comandante da guarda imperial, Fócio, que o Imperador favorecia. O novo prelado recebeu em cinco dias todas as ordens sacras e foi entronizado sem que a sé estivesse vaga (pois Inácio não renunciara).

Não conseguindo impor-se ao bispo de Roma, que em 863 o declarou destituído dos poderes pastorais, Fócio, ainda apoiado pelo Imperador, abriu violenta campanha contra os cristãos ocidentais. Em 867 chegou a romper abertamente com Roma.

Quais os motivos alegados para justificar tal passo?


Fócio acusava Roma nos seguintes ponto:


ensinar que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho e ter acrescentado a profissão desta doutrina (mediante a inserção do «Filioque») ao símbolo de fé;


observar o jejum aos sábados;


usar de laticínios na primeira semana da Quaresma;


exigir o celibato do clero;


não reconhecer aos presbíteros a faculdade de administrar o sa­cramento da Crisma;


misturar água natural ao óleo da Crisma;


permitir que os diáconos latinos não usassem barba, etc.


Como se vê, de todas essas acusações, só a primeira tocava o depósito da fé, versando as demais sobre pontos contingentes de dis­ciplina (a doutrina de que o Espírito Santo procede do Filho, constitui realmente uma verdade dogmática, pois, em caso contrário, o Espírito Santo se identificaria com o Filho na SSma. Trindade, não há dis­tinção senão entre termos correlativos; o Pai não é o Filho justamente porque o Pai é o princípio e o Filho o termo de uma processão).

Ao Imperador Miguel III, protetor de Fócio, sucedeu Basílio Macedônio, que se mostrou conciliante; após negocia­ções com o Papa Adriano II, reuniu-se um concílio universal em Constantinopla (869/870), que condenou Fócio e professou solenemente fidelidade ao Pontífice Romano. — A paz, porém, havia de ser efêmera, pois nos ânimos ficavam chagas profun­das, produzidas pelos recentes atritos.

A cisão foi renovada, e de maneira definitiva, em 1054 sob o Patriarca de Constantinopla Miguel Cerulário, que ale­gava as mesmas acusações propaladas por Fócio, e outras de caráter igualmente sutil, tais como: usarem os latinos pão sem fermento na Ceia do Senhor; comerem carne às quartas-feiras, queijo e ovos na sexta-feira santa; permitirem que dois irmãos esposassem duas irmãs (em casamento monogâmico, é claro).

O cisma declarado em Constantinopla foi, sem demora, reproduzido pelos demais bispos do Oriente; estendeu-se aos povos que haviam sido evangelizados por Bizâncio, acarretando a grande divisão que ainda hoje perdura (veja-se a tabela à pag. 418s deste fascículo).

Não compete ao historiador julgar a consciência dos homens que tomaram parte nos episódios da ruptura (os legados latinos en­viados a Constantinopla para tratar com Cerulário em 1054 foram talvez pouco compreensivos no seu modo de proceder; possivelmente eles e alguns escritores latinos que tomaram parte nas controvérsias desde o séc. IX, concorreram para exasperar os ânimos dos bizanti­nos). Somente Deus sonda os corações. O que o cristão pode e deve afirmar com segurança, é que a Santa Igreja, representada pelo sucessor de São Pedro em Roma e pelos fiéis que estão em comunhão com ele, continua a ser, mesmo após a separação dos bizantinos, a Esposa de Cristo sem mancha nem ruga (não afetada pela fraqueza humana de seus membros), depositária junto à qual todo homem encontrará sempre incontaminados os meios para se santificar.

Não faltaram tentativas de reconstituir a união após o séc. XI, algumas das quais chegaram a feliz resultado. As duas mais notáveis trouxeram à comunhão da Santa Igreja os rutenos (habitantes da Polônia) em 1596 e os rumenos da Transilvânia em 1697. Pode-se mencionar outrossim a volta, ocorrida no séc. XIX, de grupos búlgaros, gregos, etíopes. . . Em suma, contam-se hoje cerca de nove milhões de cristãos pertencentes a comunidades outrora cismáticas que encontra­ram a via de volta à Esposa de Cristo.

O maior obstáculo à união se deriva do sistema oriental da «Igreja de Estado», ou seja, da identificação de Igreja e nação no Oriente; os limites territoriais de um povo vêm a ser geralmente também os de uma Igreja ou comunidade cristã; cada nação cismática oriental tem, por conseguinte, seu Chefe religioso autônomo ou quase autônomo, o que é de certo modo uma barreira ao reconhecimento da autoridade espiritual do sucessor de São Pedro, colocado por Cristo à frente de todos os grupos nacionais.

3. As divergências doutrinárias

Como se vê, o cisma que acabamos de analisar, se deu não propriamente por motivos doutrinários, mas em virtude de discrepâncias de mentalidade e disciplina religiosa (discre­pâncias exacerbadas por razões políticas e rivalidades dos homens).

Ao se separarem de Roma, portanto, no séc. XI, os bizanti­nos não eram propriamente herejes (negando o «Filioque» no Credo, não tinham a intenção de identificar o Espírito Santo com o Filho), mas cismáticos, isto é, desobedientes e rebeldes. Daí o título com que se designam até hoje: ortodoxos; era este o qualificativo com que se caracterizavam antes do cisma, quando defendiam a reta fé contra a heresia monofisita. — A ruptura da comunhão eclesiástica, porém, havia de provocar entre os cismáticos distanciamento doutrinário.

Nos séc. XII/XV o catálogo de acusações dirigidas pelos gregos aos latinos foi-se aumentando; chegaram ao total de 62 as objeções levantadas pelos bizantinos. . ., objeções, porém, tão pouco consistentes quanto as que Fócio e Cerulário arquitetaram. Finalmente em 1438 no concílio de Florença, convo­cado para tratar da união, os teólogos gregos e latinos verifi­caram ser cinco os pontos em que realmente divergiam entre si:

1) o purgatório. Os gregos não impugnavam propria­mente a existência deste, mas sim o chamado fogo do purga­tório (fogo que, segundo a teologia ocidental, significa uma pena infligida às almas por elementos corpóreos, sem que se possa determinar ulteriormente em que consista). Alguns gregos julgavam outrossim que as almas justas só entrarão na visão de Deus face a face após o juízo universal;

2) o acréscimo da partícula «Filioque» ao símbolo de fé;

3) a processão do Espírito Santo a partir do Pai e do Filho;

4) o uso de pão ázimo (sem fermento) na celebração da S. Eucaristia (uso, aliás, que é conforme às narrativas do S. Evangelho);

5) a autoridade do Pontífice Romano.

Na verdade, as divergências acima poderiam reduzir-se a quatro apenas, já que a segunda e a terceira não afetam senão um ponto de doutrina.

Com o decorrer dos tempos, os bizantinos julgaram dever aumentar a lista. Assim o Patriarca Antimo VII de Constan­tinopla, convidado por S. S. o Papa Leão XIII a voltar à comunhão com a Igreja, respondeu em 1895 apontando-lhe as seguintes dificuldades ocasionadas pelos latinos:

1) a afirmação de que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho;

2) a inserção do termo «Filioque» no Credo;

3) a administração do Batismo por aspersão ou por infusão (não por imersão);

4) a celebração da Eucaristia com pão ázimo (não fermentado);

5) o não-reconhecimento do valor consecratório da Epiclese (os orientais, encabeçados por Nicolau Cabasilas, a partir do séc. XIV, propugnam que a consagração do pão e do vinho eucarísticos na Missa se faz por uma invocação ou '”epiclese” dirigida ao Espírito Santo, e não propriamente pela repetição das palavras de Cristo);

6) a entrega da S. Comunhão aos leigos sob as espécies de pão apenas;

7) a doutrina concernente ao «fogo» do purgatório e à consecução da visão beatífica antes do juízo universal;

8) a definição do dogma da Imaculada Conceição de Maria;

9) a aceitação do Primado Romano;

10) a definição da infalibilidade pontifícia.

Antimo afirmava outrossim que, desses itens, o mais importante é o que se refere ao primado romano (e, consequen­temente, à infalibilidade do magistério pontifício em assuntos de fé e moral). Não há dúvida, pode-se dizer mesmo, com autores orientais contemporâneos, que o verdadeiro foco de discórdia entre os cismáticos e a Sta. Igreja é a questão do reconhecimento do Papa como Vigário de Cristo; todos os demais temas apontados na lista acima ou não são dogmá­ticos (a Sta. Igreja, por exemplo, não tem dificuldade em reconhecer a validade do batismo por imersão ou a celebração da Eucaristia com pão fermentado ou a administração da mesma sob as espécies de pão e vinho, onde tais usos sejam tradicionais) ou se resolvem sem dificuldade uma vez aceito o magistério infalível do Pontífice Romano (o dogma da Imaculada Conceição, por exemplo, não é estranho à doutrina dos antigos Padres e teólogos orientais; definindo-o, o Sumo Pontífice apenas fez torná-lo explícito).

A proximidade de doutrina assim verificada não pode deixar de suscitar a novo título nos cristãos ocidentais grande interesse pela volta dos irmãos separados ao grêmio da Santa Madre Igreja.

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