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quinta-feira, 24 de junho de 2010

Purgatório: para que purgatório?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 008/1957)


"Que necessidade há de purgatório?"

Em resposta, examinaremos sucessivamente em que con­siste o purgatório e quais os fundamentos bíblicos desta dou­trina.

1. Em que consiste o purgatório.

A Sagrada Escritura ensina que o homem foi chamado a ver a Deus face a face (cf. Mt 5,8; 1 Cor 13, lls; 1 Jo 3,1-3).

E' claro, porém, que só pode conseguir tal fim o indivíduo que, na hora de comparecer finalmente diante do Senhor, es­teja livre de qualquer tendência desregrada, incompatível com Deus, que é a Verdade e o Amor subsistentes.

Ora mesmo os homens virtuosos não raro terminam seus dias trazendo na consciência pequenas faltas e, no intimo de sua natureza, inclinações mais ou menos desregradas (culpa­das, porque não suficientemente combatidas).

Em tais condições, a criatura evidentemente não é o receptáculo ao qual Deus se possa comunicar num consórcio ple­no; é ontologicamente impossível a conciliação do impuro com o Puro.

Em vista disto, Deus, que não quer rejeitar a sua criatura, lhe proporciona a ocasião póstuma de se habilitar à plena comunhão com o Senhor; tal é o purgatório, favor gratuito e misericordioso do Criador.

E como se dá esta purificação?

A pena primária do purgatório é a chamada pena de dilação. A vida terrestre constitui o período normal em que o homem se deve preparar para ver a Deus face a face; termi­nada a peregrinação neste mundo, a criatura deveria, segun­do a ordem reta das coisas, entrar imediatamente no gozo do seu Senhor. Ora a alma que, ao deixar o corpo, verifique não estar habilitada a isto por causa de sua negligência em com­bater as imperfeições, não pode deixar de experimentar pro­funda dor por tal motivo; chegou-lhe o tempo de se encontrar diretamente com o Divino Amigo, e eis que ela ainda não pode sustentar a visão imediata desse Amigo! Separada do corpo, a alma compreende muito melhor o valor imenso da visão de Deus face a face, assim como a hediondez que há em todo peca­do, toda leviandade. Em conseqüência, ela experimenta espon­taneamente a necessidade de se purificar, repudia as suas de­sordens com generosidade nova; separa-se de seu amor próprio para se identificar com a justiça de Deus, sofrendo a dilaceração e a dor daí conseqüentes. Esta dor vai mais e mais pene­trando a alma, libertando-a de todo o egoísmo que o pecado e as más inclinações implicam; figuradamente dir-se-ia: vai raspando, até a mais profunda camada, toda a ferrugem que adere às faculdades da criatura. As almas, portanto, sofrem o seu purgatório voluntariamente: sequiosas de ver a Deus, não são menos sequiosas de se purificar em oportuno estágio.

Além da pena da dilação, que é espiritual, há no purga­tório uma pena física, que se costuma chamar o castigo do fogo. Não se poderia dizer precisamente em que consista (nem é este o aspecto do purgatório que mais mereça nossa atenção). Não se pense em fogo igual ao deste mundo. Provavelmente, trata-se de um estímulo físico que, por permissão de Deus, age sobre a alma impedindo-lhe o uso das faculdades — inteligên­cia e vontade — tal como ela o quisera; esta coibição, partindo de uma criatura material, tem também o caráter de humilha­ção para o espírito humano.

2. Os fundamentos bíblicos da doutrina

A existência do purgatório decorre logicamente das afir­mações bíblicas segundo as quais Deus exige do homem a expiação pessoal de faltas cometidas. Com efeito, lê-se em mais de uma passagem da Sagrada Escritura que o Senhor, mesmo depois de perdoar a culpa do pecador, ainda lhe pediu reparasse a ordem violada. Note-se que tal satisfação não era, nem é, al­go que Deus imponha arbitrariamente: já que todo pecado consiste na ruptura, mais ou menos violenta, da ordem reta das coisas, ele não pode ser cancelado, caso não se dê a restaura­ção da harmonia por ele burlada. Eis os exemplos bíblicos mais significativos:

Adão foi certamente tirado ou absolvido do seu pecado (cf. Sab 10,2); não obstante, o Criador o quis submeter a graves penas até o fim da vida (cf. Gên. 3,17s);

Moisés e Aarão cederam à pouca fé em dado momento de sua vida; por isto viram-se pelo Senhor privados de entrar na Terra Prometida, embora não haja dúvida de que a culpa lhes tenha sido perdoada (cf. Núm 20,12s; 27,12-14; Dt 34,4s);

Davi, culpado de homicídio e adultério, foi agraciado ao reconhecer o delito; não obstante, teve que sofrer a pena de perder o filho do adultério (cf. 2 Sam 12,13s).

Em outros textos, o perdão é estritamente ligado com obras de expiação; cf. Tcb 4,lls; Dan 4,24; Jl 2,12s .

Além destas passagens, que manifestam o princípio geral segundo o qual Deus cancela o pecado, costumam-se citar outros trechos diretamente alusivos ao purgatório:

2 Mac 12.39-46: Judas Macabeu († 160 a.C.) descobriu, debaixo das túnicas de seus soldados falecidos, pequenos ídolos, objetos impuros dos quais se haviam apoderado no saque de Jâmnia. Em conseqüência, considerou a morte de seus homens como castigo que Deus lhes infligira. Não obstante, Judas, ten­do verificado que os prevaricadores haviam "morrido piedosamente" (v. 45) (supunha, por conseguinte, se houvessem arre­pendido de seus pecados), mandou arrecadar esmolas a fim de se oferecer pelos defuntos um sacrifício expiatório; julgava, pois, que lhes ficavam aderências da culpa, mesmo depois de haverem obtido o perdão e terem passado para outra vida; acreditava outrossim que seriam purificados de tais resquícios e conseguiriam finalmente "a bela recompensa" (v. 45), se os vivos, por seus sufrágios, os ajudassem a prestar expiação.

Mt 5,25 (cf. Lc 12,58s): Jesus recomenda aos seus discípu­los, percorram a caminhada desta vida em boa paz com os ir­mãos; em caso contrário, finda a peregrinação terrestre, terão que responder ao Juiz Supremo, que lhes imporá duro castigo — duro castigo, porém, do qual serão libertados depois de sa­tisfazer à Justiça.

1 Cor 3,10-16: São Paulo distingue entre operários que no reino de Deus trabalham zelosamente, produzindo a melhor obra de que são capazes, e outros que, sem deixar de trabalhar, se mostram negligentes. Diz que os primeiros, no dia do juízo, nada terão a temer, ao passo que os outros (tipo dos homens que servem a Deus com as tibiezas do pecado venial) se salva­rão, mas após haver experimentado dores e penas devidas à sua conduta imperfeita. Embora o Apóstolo, como Jesus em Mt 5,25s, se sirva de expressões figuradas, percebe-se com clareza suficiente que sob as metáforas de Mt 5,25s e 1 Cor 3,10-15 es­tão contidas as idéias que definem a doutrina do purgatório.

Vê-se destarte que o purgatório, longe de ser invenção hu­mana, é expressão da santidade e da misericórdia de Deus, que, mesmo fora do tempo normal, conciliando justiça e bon­dade, sabe outorgar à criatura os meios de O possuir eterna­mente.

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