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sexta-feira, 4 de junho de 2010

Fé: que é a Fé?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 008/1957)


«Que é a fé? Porque há mistérios e dogmas de fé? Não derrogam à razão e à dignidade do homem?»

Antes de propor uma definição ou quase-definição da fé, procuremos descrever as notas características desta.

1. A fé não é a conclusão de um raciocínio que leve o pensador a aderir a uma verdade plenamente compreensível para o intelecto humano. É, ao contrário, a adesão a um teste­munho, e a testemunho prestado por uma autoridade superior ao homem.

Tal autoridade, no caso, vem a ser Deus que falou por Jesus Cristo, Legado Divino, e fala pela Igreja, Corpo prolonga­do de Cristo (não para acrescentar novas proposições à Reve­lação feita pelo Cristo, mas para transmitir esta Revelação de forma autêntica; cf. Mt 28,20).

2. Disto se segue que a fé tem necessariamente por objeto verdades que, embora não sejam contraditórias à razão humana, ultrapassam o alcance da mesma; são verdades sobre­naturais, evidentes a Deus, a Deus só, que se dignou revelá-las ao homem, não para o constranger e humilhar, mas para lhe manifestar seus desígnios sábios e benévolos. Estas verdades ficarão sempre semi-obscuras para a criatura peregrina na terra, penetráveis, sim, até certo ponto, mas não totalmente. Chamamo-las «mistérios da fé» ou «dogmas» («dogmas», por­que apresentadas por autoridade); tais são: a SSma. Trindade, a Encarnação do Filho de Deus, a S. Eucaristia, etc. A existência desses mistérios não surpreende o pensador; é inerente ao con­ceito mesmo de «Religião», visto que a Religião (e só há uma verdadeira) põe o homem em contato com um Ser cuja sabe­doria é transcendente, ou seja, com Deus; uma religião sem mistérios deixaria a criatura no plano meramente humano, seria obra do bom senso apenas ou até da fantasia.

3. Conseqüentemente verifica-se que a adesão às propo­sições de fé não se impõe por si à inteligência (como, por exemplo, a conclusão de uma demonstração matemática); mas, visto que o objeto da fé fica semi-obscuro, é, em última análise, a vontade que move o intelecto a dizer «Sim» à Revelação divina. O homem tem fé desde que o queira (suposta natural­mente a graça de Deus, que a ninguém é denegada).

Em outros termos: para ter fé, basta à pessoa fazer uma profissão explícita do Credo (depois que se tenha certificado de que esta é plausível e razoável) e viver coerentemente com tal profissão; o próprio Deus, a seguir, se encarregará de mostrar ao seu fiel que ele não se enganou. Tenha-se por certo que «querer ter fé» já é «ter fé». Quem diz não ter fé, não julgue que esta lhe virá por uma iluminação extraordinária da inteligência (um «estalo») nem pense que a fé coincide com o entusiasmo sensível ou o deleite natural que o sujeito possa experimentar diante de uma verdade sobrenatural; a fé é movida pela vontade, independentemente das reações da sensi­bilidade; é, pois, plenamente compatível com a aridez ou a noite dos sentidos; cf. «Pergunte e Responderemos» 5/1957 qu. 2.

4. Mas então será o papel da razão humana desprezado e removido pela fé?

Não. Todo homem tem o direito (e, às vezes, até obrigação) de saber por que deve aderir ou adere a tais e tais mistérios. Em vista disto, aplicará sua inteligência ao exame das creden­ciais que tornam aceitável o testemunho da Revelação; assim toca à razão averiguar qual a autoridade de Jesus, qual a autoridade da Igreja, quais os frutos produzidos pela verdade revelada, etc.; toca-lhe também analisar os termos dos artigos de fé e verificar se não são absurdos em si mesmos. O homem de fé, portanto, não renuncia à dignidade de sua inteligência; ao contrário, é esta mesma que o leva a ver que mais razoável é crer do que não crer;. . . que se desvia da razão aquele que não crê, ao passo que quem crê, apenas vai além da razão, prosseguindo, porém, na mesma direção. É a própria razão humana que exige do homem desejoso de alcançar a verdade em plenitude, ultrapasse a si mesmo e dê assentimento a verdades divinas, desde que estas se apresentem devidamente cre­denciadas.

Para ilustrar quanto acabamos de dizer, consideremos o caso de quem acredita, por exemplo, haver arranha-céus em Nova Iorque. Tal pessoa, embora afirme algo de que ela mesma não tem evidência direta, não desdiz à sua nobreza de ser racional; no caso, a sua razão não investiga os edifícios daquela cidade nem a capacidade dos arquitetos norte-america­nos, mas apenas a autoridade das testemunhas que lhe asseve­ram haver tal gênero de construções em Nova Iorque; uma vez comprovada essa autoridade, a própria razão afirma ao homem ser razoável (e até necessário) crer, e ser desarrazoado ou absurdo não crer. Assim também não cabe à razão humana provar diretamente que o Senhor está presente na Eucaristia nem que o sacramento da Penitência apaga os pecados, mas toca-lhe assegurar-se de que Cristo afirmou realmente estas coisas e de que Cristo merece toda a confiança (esta segurança, uma vez obtida, já é suficiente para que o indivíduo diga o seu «Sim» sem renunciar à sua dignidade humana).

Na base destas observações, podia S. Tomaz afirmar: «Ninguém acreditaria se não visse que deve acreditar».

Quanto às credenciais que nos manifestam a autoridade divina de Cristo, veja-se “Pergunte e Responderemos” 8/1957 qu. 1. Sobre a autoridade dos Evangelhos e da Igreja Católica como transmissores da genuína Palavra de Cristo, veja-se «P. e R.» 7/1958, qu. 2-4.

5. Ainda parece oportuna uma ulterior observação sobre o sentido dos mistérios da fé. Costuma-se sublinhar que são «verdades transcendentes ou elevadas demais para a nossa compreensão». Assim o seu aspecto negativo e quase esmagador é realçado, ao passo que se focaliza pouco ou insuficientemente o caráter luminoso dos mesmos mistérios.

Na verdade, todo mistério da fé, ao mesmo tempo que vela ou encobre, revela e manifesta; sim, o mistério «localiza e delimita o inexplicável», tornando-se assim fonte de explicação para o conjunto da realidade. Notemos que, já no terreno do saber meramente humano, as explicações ditas «cientificas», consistem muitas vezes em «localizar (ou indicar) o inexplicável»; assim, para dar conta dos fenômenos eletrônicos, os cientistas recorrem aos fatores «eletricidade» e «magnetismo» e às leis de sua atividade, sem que contudo saibam explicar exatamente em que consiste o próprio «mistério» da eletricidade; para dar conta dos fenômenos químicos, recorrem à noção de afinidade entre os elementos e «localizam» a aplicação desta, sem que, porém, saibam indicar plenamente o que é tal afini­dade; para dar conta dos movimentos dos planetas, apelam para a atração vigente entre os corpos e para a sua atuação precisa em tal ou tal fenômeno, sem que, porém, possam indicar a razão última do fenômeno mesmo da atração.

Analogamente as fórmulas dos mistérios da fé nos permi­tem fixar e delimitar o que é transcendente ou os objetos que não podemos conhecer como os demais. Ora esta delimitação não pode deixar de produzir clareza sobre o conjunto da realidade. Não negaremos, por conseguinte, que a criação, a Trindade, a Encarnação são mistérios, mas reconheceremos outrossim que tais mistérios ajudam a compreender o sentido do mundo e da vida humana.

6. A fim de ilustrar esta afirmação, aparentemente pa­radoxal, seja aqui recordado um fato particularmente expres­sivo.

O mistério mais especulativo e, à primeira vista, mais árido da fé cristã é o da SSma. Trindade: um só Deus em três Pessoas.

Pois bem. Consideremos o panorama religioso contemporâ­neo. Só há atualmente uma religião monoteísta: a da Revelação judaico-cristã (o monoteísmo islânico não é senão uma deriva­ção do judaísmo e do cristianismo fundidos com antigas crenças árabes)[1]. Em torno do monoteísmo cristão, encontram-se hoje em dia o politeísmo (crença em muitos deuses), com suas múltiplas variedades (fetichismo, animismo, totemismo.. .) ou o panteísmo, sistema que identifica Deus com o mundo, conce­bendo a Divindade como substância neutra que evolui na natu­reza e no próprio homem.

Ao passo que o politeísmo é comum entre os povos selva­gens, o panteísmo vem a ser o apanágio principalmente das escolas orientais (o budismo, o hinduísmo e as formas modernas deste: a teosofia, o rosacrucianismo. . .) e de alguns sistemas filosóficos modernos (o spinozismo, o hegelianismo. . .).

Não há dúvida de que o politeísmo e o panteísmo represen­tam graus de pensamento aberrante, que não se poderia con­frontar com a posição monoteísta. O politeísmo, com efeito, esfacela a noção de Deus, que por si mesmo significa «Absolu­to, Infinito»; ora o Absoluto ou Infinito não pode ser parcelado porque não tem parte (cada parte diz por si limitação, e não é o acúmulo de limitações que faz o ilimitado). Do seu lado, o panteísmo, identificando a Divindade com o mundo, admite evolução e transitoriedade em Deus ou no Absoluto, o que é contraditório (o Absoluto repele, por seu conceito mesmo, qualquer mudança e contingência).

Dito isto, observemos que o monoteísmo, única posição reli­giosa coerente com o conceito de Deus e a razão humana, está, no decorrer da história, indissoluvelmente associado ao mistério da SSma. Trindade (o monoteísmo judaico estava todo orientado para o monoteísmo cristão, a título de escola prévia; depois que veio Cristo, o vigor religioso de Israel se esvaneceu; haja vista o moderno Estado de Israel). É, pois, o mistério da Trinda­de SSma. que, de fato, na história da Religião, tem garantido e garante a profissão desta verdade tão natural e racional que é o monoteísmo. De passagem, notemos que esta associação de monoteísmo e mistério da SSma. Trindade se explica sem difi­culdade pelo fato de que o mistério da Trindade, longe de ser adventício ao conceito de Deus Uno, decorre da essência mesma de Deus; cf. «Pergunte e Responderemos» 1/1958, qu. 3.

Onde não se professa o mistério da SSma. Trindade, veri­fica-se que também não se professa o monoteísmo, verdade meramente filosófica ou natural (reconheçamos que a reali­dade poderia ser outra, mas de fato é esta); o homem cai nas contradições do panteísmo e do politeísmo, deixando de usar sadiamente da sua razão[2]. — Chega-se então a estupenda conclusão: o Cristianismo, com o mistério da SSma. Trindade, ainda é mais razoável e humano do que os sistemas que, desembaraçados de dogmas e mistérios, professam o panteísmo e o politeísmo.

Por isto é que se diz que os mistérios da fé são luminosos; embora em si mesmos não sejam plenamente penetráveis à fraca razão humana, projetam em torno de si a luz necessária para se chegar a um entendimento coerente do mundo e do homem, entendimento que não se obtém nos sistemas religiosos alheios aos mistérios da fé cristã (uma falsa noção de Deus há de acarretar desvios em todos os demais setores da filosofia). Os mistérios da fé são, portanto, como um sol, tão brilhante que não pode ser fitado em si, mas tão luminoso que tudo é por ele iluminado. Daí a pergunta significativa de Jacques Rivière:

«Será lícito dizer que não se compreende aquilo (o mistério) sem o qual tudo mais se torna incompreensível?» (A la trace de Dieu 44).

O mundo e o homem sem os mistérios da fé se tornam muito mais misteriosos do que esses mistérios mesmos.

7. Depois de tais considerações, já se pode resumir o que é a fé, na seguinte fórmula elaborada pelo Concílio do Vaticano (1870):

«A fé é uma virtude sobrenatural,


Mediante a qual, prevenidos e auxiliados pela graça de Deus,


Temos como verdadeiras as proposições que Deus revelou,


Não por havermos percebido com nossa razão a veracidade


intrínseca das mesmas,


Mas por causa da autoridade de Deus,

Que não pode enganar a Si nem enganar a nós».


(Denziger, Enchiridion 1789).

Nesta definição interessa-nos explicitar a cláusula por vezes mal entendida: «prevenidos e auxiliados pela graça». Significa que a fé é dom de Deus; o que bem se entende, pois constitui autêntica participação do homem no conhecimento com que Deus conhece a Si. Tal dom a ninguém em absoluto é recusado, pois «Deus quer que se salvem todos os homens» (1 Tim 2,4). Apenas se exige da criatura um ânimo aberto à graça, desembaraçado do apego às paixões e, em particular, livre do orgulho.

Muitas vezes o problema da fé se traduz no dilema seguin­te: é preciso optar

ou pelo orgulho, que quer limitar o homem ao que ele «compreende» ou julga compreender (e isto é tão pouca coisa!); o orgulho fecha, portanto, o indivíduo em si e o torna anão intelectual e moral;

ou pela humildade, que exige da pessoa, ultrapasse a si mesma e se entregue a um Ser maior e mais nobre.

É somente optando por este segundo alvitre, o alvitre da fé, que o homem quebra os grilhões do próprio Eu e se desenvolve e engrandece normalmente.

A fim de que se tenha a coragem para dar este passo, a primeira arma a que se há de recorrer será a oração:

“Se não és atraído, ora para que venhas a ser tal” (S. Agostinho).

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NOTAS:

[1] Não levamos em conta aqui o «Deísmo», monoteísmo filo­sófico dos racionalistas dos séculos XVII/XVIII e dos contemporâneos. Não lhe cabe consideração à parte, pois já se tem dito — com razão — que toda a filosofia ocidental após Cristo sofre a influência, positiva ou negativa, do Cristianismo. É o caso do «Deísmo», que representa uma oposição ao Cristianismo.


[2] O espiritismo moderno, na medida em que é religião, não constitui senão um derivado (aberrante) do Cristianismo; era na linha deste que Allan Kardec se colocava codificando a «Terceira Revelação» (a primeira teria sido dada, por meio de Moisés, aos judeus; a segunda, aos cristãos, por meio de Cristo). Se a ideologia espírita professa o monoteísmo sem aceitar o mistério da SSma. Trindade, professa-o porquê retém parte das doutrinas que aprendeu na escola do Cristianismo.

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