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domingo, 6 de junho de 2010

Inferno: Deus perdoará os que estão no inferno?

Inferno: Deus perdoará os que estão no inferno?


(Revista Perguntee Responderemos PR 031/1960)


«Como pode o Pai do Céu, que é infinitamente bom, condenar o homem a um inferno eterno, quando os pais na terra não castigam seus filhos com punições sem fim?

Certamente Deus há de perdoar aos pecadores que se acham no inferno».

A dificuldade acima provém de uma concepção errônea do inferno: supõe, seja este um castigo que Deus na hora do juízo concebe mais ou menos arbitrariamente para atormen­tar a criatura; em tal caso, a sentença divina poderia ser re­formada ou até cancelada por anistia, à semelhança do que se dá nos tribunais humanos...

Na verdade, a condenação ao inferno não depende pro­priamente de um veredicto divino pronunciado após a morte do pecador; é, antes, a conseqüência muito lógica de certos princípios que caracterizam a existência do ser humano, de modo que se pode dizer que, anteriormente a uma sentença divina positiva, já o pecador lavrou sua sorte infernal; não é preciso que Deus tome alguma deliberação especial para que o inferno se tome realidade para o pecador.

É o que vamos recordar sumariamente, remetendo o leitor para quanto já foi dito sobre o inferno em «P. R.» 3/1957, qu. 5.

1. Todo homem traz em si uma aspiração inata e incoercível ao Bem Infinito, que é Deus (todos querem ser bem-aventurados sem que possam assinalar limites a essa sua sede de bem-aventurança).

2. Para conseguir a felicidade a que aspiram, Deus ou­torgou às criaturas humanas o livre arbítrio. Este lhes confere dignidade própria, fazendo que se movam, e não sejam sim­plesmente movidas, em demanda do Fim Supremo.

3. Se o homem, utilizando devidamente a sua liberdade de arbítrio, adere ao Infinito ou a Deus, compreende-se que esta atitude se lhe torne fonte de alegria e felicidade imensas; pois então convergem para o mesmo objetivo as aspirações inatas de sua natureza humana e a opção consciente da von­tade livre.

4. Admita-se, porém, que a criatura humana livremente preste adesão, e adesão total, a um bem criado (dinheiro, gozo, fama...), afastando-se conscientemente de Deus...

De tal atitude não pode deixar de resultar tremendo dua­lismo ou penosa dilaceração dentro da alma humana; a sua natureza, feita para o Bem Infinito, continua a bradar por Deus, enquanto a vontade adere a um bem finito.

Convém aqui lembrar que a adesão a um bem finito capaz de provocar tal dilaceração é chamada «pecado mortal», o qual só se dá quando as três seguintes condições são simultaneamente pre­enchidas:


a) haja matéria grave,


b) haja pleno conhecimento de causa (ato da inteligência).


c) haja vontade deliberada e consciente de aderir ao bem finito.


Caso estas três condições sejam preenchidas, toda a personalidade humana (por suas faculdades características: o intelecto e a vontade) está empenhada.

5. Enquanto o pecador é peregrino neste mundo, pode mitigar o drama que ele traz em seu íntimo: ocupando-se com as tarefas e as diversões da vida cotidiana, vai encobrindo aos seus próprios olhos a dura realidade de sua alma, e es­quece, ao menos parcialmente, a dilaceração de sua perso­nalidade.

6. Suponha-se, porém, que tal indivíduo venha a morrer nessa situação: sua alma se separa do corpo e deixa de usu­fruir, da parte das criaturas sensíveis, os paliativos que a consolavam neste mundo.

A conseqüência será clara: tal alma continuará a trazer dentro de si o desejo profundo e espontâneo de se saciar no Bem infinito; tal desejo está impregnado na natureza humana e é incoercível; nenhuma criatura humana pode ser conce­bida sem essa aspiração ou sem esse sinete característico. A mesma alma, porém, tomará consciência clara da monstruosi­dade de seu estado: sim, verificará que a sua vontade livre terá dirigido toda a personalidade do indivíduo para um bem limitado e lacunoso, incapaz de a satisfazer; ao finito terá dado a adesão que devia ter prestado ao Infinito. E não lhe será possível «esquecer» essa situação, pois não terá em torno de si algum dos objetos sensíveis que lhe serviam de paliativo neste mundo.

Daí redunda a mais profunda dilaceração de que seja capaz a criatura: de um lado, haverá o brado espontâneo da natureza, anterior a qualquer deliberação, brado voltado para Deus, o Infinito; do outro lado, existirá deliberada entrega da vontade a uma criatura, ao finito: estes dois clamores es­tarão em luta entre si, dividindo ou retorcendo (por assim dizer) a alma.

7. Tal é o estado em que, logo após a morte, entra na­turalmente a alma de quem tenha pecado gravemente. Vê-se então como, antes mesmo que Deus profira alguma sentença sobre ela, essa alma já traz dentro de si o inferno, ou o maior tormento possível. O juízo póstumo que o Senhor formula a seu respeito, não vem a ser senão o reconhecimento de tal situação; nada de novo induz na sorte que tal alma ocasionou para si.

Mas porque é que o Senhor reconhece e não muda essa ordem de coisas vigente na alma do réu?

O Senhor não a muda, porque só o faria forçando ou violentando a livre deliberação da criatura. Ora Deus, que dotou de personalidade livre o ser humano, não lhe retira a dignidade assim outorgada; antes, respeita-a plenamente.

Seja licito lembrar de novo o seguinte: todo pecado grave supõe, da parte do homem, claro conhecimento do mal e pleno desejo de o cometer; supõe, portanto, uma tomada de posição consciente e livre de toda a personalidade humana frente à mais séria das questões, que é a questão do Fim Último. Não se poderá, por conseguinte, tachar de pecado mortal qualquer ação que tenha aspecto de culpa grave, pois nenhum observador humano é capaz de penetrar o íntimo das consciências para lá discernir as possíveis atenuantes da culpabilidade. Não nos é licito, por conseguinte, em caso algum supor ou afirmar que determinada pessoa está no inferno. Se a justiça humana leva em conta os estados de obsessão e diminuída responsabilidade dos criminosos, muito mais a Justiça Divina os considera, de modo que ninguém padece a triste sorte do inferno sem realmente se ter encaminhado para ela.

8. Contudo talvez insista alguém: afinal, Deus, que é sumamente misericordioso, não poderia perdoar ?

— Sim; Deus poderia perdoar, e de fato, perdoa às suas criaturas, desde que, da parte destas, uma condição se verifi­que: haja repúdio do pecado ou arrependimento; em caso contrário, isto é, se a criatura não o quer receber, vão se torna o perdão. Ora acontece justamente que nenhuma das almas que morrem em pecado mortal e, por conseguinte, nenhum dos réprobos do inferno se quer arrepender e voltar para Deus, por muito tormentosa que seja a sua situação. Com efeito; a alma só muda de disposições ou se arrepende quando unida ao corpo: é só mediante a atividade dos sen­tidos externos e internos que ela pode conceber novos conhe­cimentos e desejos; por conseguinte, quando se separa do corpo ou dos sentidos, a alma humana se fixa irrevogavelmente na última disposição que teve durante esta vida (amor ou ódio a Deus). O pecador, portanto, que morra com aversão a Deus e apego apaixonado à criatura, para o futuro sentirá, de um lado, a tremenda dilaceração que este afeto acarreta, mas, de outro lado, não desejará em absoluto voltar para Deus, desfazendo-se do seu amor desregrado ao finito; não o desejando, está claro que o Senhor não o forçará.

Vê-se assim algo de aparentemente paradoxal, mas su­mamente verídico e significativo: não há quem esteja no in­ferno e daí queira sair; os réprobos sofrem, mas não querem abandonar o estado que lhes motiva o sofrimento. Se algum deles pedisse perdão, Deus não lhe negaria.

Esta afirmação é ilustrada pela parábola do filho pródigo (cf. Lc 15, 11-32). Não há dúvida, tal trecho do S. Evangelho visa incutir a suma confiança em Deus, cuja misericórdia surpreende a expecta­tiva humana; o Senhor perdoa ultrapassando todas as categorias da benevolência humana. Contudo a parábola bem mostra que esse perdão só é outorgado à criatura que, cheia de arrependimento o deseje e peça: «Pai, pequei contra o céu e contra Ti; já não sou digno de ser chamado teu filho.» (Lc 15. 18). exclamou o herói da narrativa. Ora foi justamente o fato de se ter reconhecido indigno que lhe mereceu ser recebido como filho bem-amado!.. . Oxalá os homens que se afastam de Deus. procedessem até as últimas instâncias como o filho pródigo! Então seriam sempre tratados como este...

9. Deve-se observar outrossim que o estado aflitivo do réprobo não tem fim, porque a alma humana é, por sua natu­reza, imortal (não consta de partes que se desgastem e de­componham); cf. «P.R.» 2 1957, qu. 5.

Deus poderia, a rigor, aniquilar as criaturas que estão no inferno. Ele não o faz, porém, pois a existência desses seres tem seu sentido no conjunto do universo. Note-se bem que o centro ou o ponto de referência de todas as criaturas não é o homem, mas Deus; todas as criaturas são chamadas a dar glória a Deus; portanto, desde que realizem esta finalidade, sua existência tem valor no grande quadro do universo. Ora o pecador sofre no inferno justamente porque reconhece que Deus é sumamente bom e que ele voluntariamente se incompatibilizou com o Sumo Bem (se não reconhecesse a Bondade de Deus, o réprobo não sofreria). Vê-se então que o tormento mesmo do pecador é proclamação da perfeição e da santidade de Deus; destarte a existência do réprobo não é vã, mas preenche sua finalidade primária e suprema.

A modalidade de que essa existência, para o respectivo sujeito, é infeliz, torna-se secundária; Deus fez o homem para ser, e ser sempre (claro está que. . . à semelhança do Exemplar Divino, o qual é sempre feliz); a modalidade de ser feliz, porém, Deus a quis tornar dependente da livre opção do homem; este a pode frustrar. Contudo, o bem fundamental que é o ser, existir, Deus o quis tomar a seus exclusivos cui­dados: o Criador o dá irrevogàvelmente; não o retira, mesmo que o homem não cumpra a sua parte, abusando do dom do Benfeitor. O homem, por conseguinte, existirá sempre, como Deus planejou bondosamente, mesmo que, em conseqüência de uma livre opção sua, não exista feliz. Sua existência, mesmo nessas circunstâncias, não carecerá de significado e valor.

10. Talvez ainda nos aflore à mente uma última dúvida: Deus, sabendo que tal ou tal criatura se perderia no inferno, não poderia ter deixado de a criar? Não deveria ter feito apenas criaturas que usassem da sua liberdade para o bem?

Reflitamos um pouco sobre o valor dessa «sedutora» so­lução do problema. «Liberdade» diz, por seu conceito mesmo, variedade e multiplicidade de realizações; é natural, portanto, que a liberdade humana se afirme na história com essa mul­tiplicidade de formas que a caracterizam; se tal variedade não se verifica, tem-se estranha liberdade,. . . liberdade arti­ficialmente canalizada numa só direção; ora, isto não sendo normal, não se poderia pretender que Deus procedesse assim. O essencial é que nenhuma das criaturas livres, mesmo usando plenamente da sua liberdade, deixe de ser uma expressão da santidade do Criador; ora isto se verifica também nos répro­bos, os quais, por todo o seu ser, no inferno, proclamam a Perfeição e, em particular, a Bondade do Criador.

O Senhor não criou seres livres que artificialmente só optassem por um alvitre, como também não criou flores de papel, mas criou flores naturais; é somente o homem que, não podendo produzir flores naturais, fabrica flores artificiais, flores que não murcham,... mas flores que parecem ser flores, quando, na verdade, não o são!


11. Outras questões atinentes ao inferno já foram abordadas em «P. R.» 3/1957, qu. 5. O que interessava, na presente questão, era mostrar que o inferno nada tem de arbitrário da parte de Deus; não é um castigo que o Criador estipule atendendo a um código de penas e sanções, à semelhança do que se dá na justiça humana, código naturalmente reformável... O inferno, em verdade, não é senão a última conseqüência da violação dos princípios que definem a estrutura do ser humano: quem voluntariamente ingere veneno, morre, simples­mente porque contradisse às leis que regem a vida física do homem...

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