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quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Deus, ateismo: os ritos soviéticos

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 292/1986)


Em síntese: A Rússia Soviética, embora professe oficialmente a ideo­logia atéia, instituiu ritos cívicos para acompanhar a vida dos seus cidadãos desde o nascer até o morrer,... ritos que lembram de perto as cerimônias re­ligiosas e suscitam, a seu modo o senso místico dos participantes. Tal fato é altamente significativo, pois evidencia quanto o senso religioso é profundo no ser humano, a ponto de se manifestar sob formas leigas quando é privado de suas expressões autenticamente inspiradas pela fé.

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Verifica-se na Rússia Soviética contemporânea que a vida dos cida­dãos, desde o nascer até o morrer, é acompanhada por ritos cívicos, que apresentam grande semelhança com os ritos religiosos e despertam, a seu modo, o senso místico dos participantes. Também as grandes festas do calendário nacional, a transição das estações do ano, a celebração dos heróis do país... são ocasião de cerimônias rituais significativas. - A se­guir, examinaremos a origem e a inspiração fundamental de tais ritos, a exporemos o desenrolar dos principais dentre eles.

1. Origem e inspiração básica

Já na época de Trotsky pensavam os mentores soviéticos na cele­bração ritual de algumas datas cívicas. Na década de 1950 e principal­mente nas regiões do Mar Báltico (N.O. da URSS), na Bielorússia Oci­dental, na Ucrânia e na Moldávia foram adotadas de maneira sistemática tais cerimônias a fim de contrapor-se às reminiscências religiosas dos ci­dadãos; em tais territórios a religião ainda era um símbolo da indepen­dência e da consciência nacional das respectivas populações.- A primeira de tais cerimônias foi a de "entrada da idade adulta", concebida para apagar o ritual de Confirmação dos luteranos e inaugurada em 1957.[1] O êxito de tal praxe incitou as autoridades soviéticas a introduzir outras ce­rimônias rituais, desta vez relativas ao casamento, ao nascimento e aos funerais...

Aliás, não somente o desejo de combater a religião sugeriu aos go­vernantes a adoção de tais ritos; visavam também a difundir entre os jo­vens um certo idealismo e entusiasmo que dissipassem o ceticismo, a de­linqüência, o alcoolismo, o divórcio... existentes em camadas da popula­ção, especialmente nas mais jovens. Uma certa "educação" dos cidadãos seria assim obtida, com benefícios para a fidelidade ao socialismo e ao patriotismo soviético. O jornal Pravda de 18/10/1984 apontava como fina­lidade de tais ritos: "incutir nos jovens uma visão do mundo científico-­materialista do mundo". "Do avanço desses novos ritos dependerá o de­saparecimento dos preconceitos religiosos. Esses ritos são um meio efi­caz de luta contra a influência da religião", escrevia um especialista no assunto. Por sua vez, Constantino Chernenko em discurso de junho de 1983 afirmava: "A transformação revolucionária da sociedade não será possível sem que transformemos o próprio homem. E nosso Partido adota o princípio de que a formação do homem novo não é apenas um objetivo da mais alta importância, mas é também um meio obrigatório da construção comunista".

Por isto os ritos são preparados por Comissões de peritos: artistas, sociólogos, historiadores, representantes do Partido e do Soviet local... Estes elaboram os textos para cada cerimônia antes de entregá-los aos agentes de propaganda, que desenvolvem intensas campanhas de difu­são dos mesmos.

Examinemos agora o desenrolar de algumas de tais cerimônias.

2. Principais ritos

Enumeraremos quatro cerimônias principais.

2.1. A Atribuição do Nome

Tal é o rito que corresponde ao Batismo cristão. A partir de 1960, foi muito fomentado para substituir a cerimônia do oktiabriny,[2] que caira em desuso. Pode ser celebrado dentro das primeiras seis semanas de existência da criança.

No dia aprazado, os pais, familiares e amigos do pequenino (não raro portadores de medalhas ganhas na guerra patriótica) dirigem-se ao Palácio do Malioutka (= Recém-nascido, em russo); são acompanhados pelos respondentes ou padrinhos. A recepcionista do Palácio, trajando vestido longo, acolhe mãe e filho num salão especialmente destinado a preparar a cerimônia. A seguir, convida solenemente todos a subirem para a sala dos ritos. O pai então toma a criança nos braços, precedido pela recepcionista, o cortejo caminha processionalmente ao som de mar­cha própria. A sala dos ritos é dominada por vitro, que representa mãe e criança; diante deste há algo que não é propriamente nem uma mesa simples, nem uma escrivaninha, mas se assemelha a um altar, portador de flores e do emblema da República. É então que entra em cena a fun­cionária que presidirá à cerimônia ritual.

Também revestida de traje longo, trazendo ao pescoço um grande colar do qual pende uma medalha com os símbolos da República (foice e martelo), a dirigente pronuncia breve discurso, no qual felicita com sim­patia a família portadora da criança. Diz então:

“Os filhos são tesouro inestimável na sociedade socialista. Tornam-se objeto de preocupação constante do nosso Partido leninista. Vamos hoje proceder ao registro de novo cidadão da URSS. Qual o nome que desejais dar à criança?"

Após a resposta dos genitores, toca-se o hino da União Soviética, em honra do novo cidadão.

A seguir, os genitores e os responsáveis se comprometem a educar a criança em conformidade com "as exigências da sociedade". São cha­mados a assinar um por um, a declaração de nascimento e o registro civil da criança. Em troca, são-lhes entregues um certificado, que equivale a um salvo-conduto, e uma "carta para o futuro" comemorativa de tal dia. Em torno do pescoço da criança coloca-se uma fita (azul ou rosa, segun­do o sexo) com uma medalha. Após o quê, os participantes são convida­dos a passar para a sala contígua, onde um copo de mousseux espu­mante é oferecido a todos pelos genitores, os quais recebem congratula­ções calorosas de cada convidado. Retiram-se então para a casa da famí­lia em festa, que continua a celebração no lar.

O esquema da cerimônia da "Atribuição do Nome" é o mesmo em toda a União Soviética; os pormenores, porém, variam de região para re­gião. Eis, por exemplo, passagens do discurso proferido pelo(a) presi­dente da cerimônia em Kiev (Ucrânia):

"Caros pais... recordai-vos do vosso dever sagrado para com a socie­dade socialista: educar um filho que seja digno combatente até a vitória com­pleta do comunismo. Educai nele o amor ao trabalho e à sua grande pátria so­viética. Seja honesto, sincero, bom, cheio de respeito, de modo que a Mãe­-pátria se tome ufana, dele... E vós, veneráveis avós, trabalhastes sem trégua
durante a vossa vida; fizestes muito bem aos homens; educastes bons filhos, que vos deram netinhos... "

Não se pode dizer que a apresentação ao Palácio do Recém-Nasci­do seja obrigatória; contudo sabe-se que é calorosamente estimulada.

2.1. O Compromisso dos Jovens

Com dezesseis anos de idade, o cidadão recebe, em rito próprio, a sua carteira de identidade (em russo dir-se-ia "o seu passaporte", válido tão-somente para uso dentro das fronteiras do país). Esta cerimônia foi introduzida em 1976, quando os "passaportes" de todos os cidadãos so­viéticos foram sendo progressivamente trocados. O rito tem por finalida­de "evidenciar aos jovens e às jovens a importância do acesso à plena ci­dadania; a carteira de identidade lembra a cada cidadão soviético a ne­cessidade de respeitar escrupulosamente as leis e as normas da vida soviética" (Nachi Prazdniki, Nossas Festas, Moscou 1977, p. 137).

O elemento central e altamente emocionante dessa cerimônia, cu­jos pormenores são oscilantes, é o juramento prestado por um jovem em nome de seus colegas:

"Eu, cidadão da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, neste dia e nesta hora solene da minha vida, comprometo-me perante meus pais, meus amigos, meus colegas, meus mestres, diante do meu grande país e de todo o povo soviético, a ser sempre fiel à minha Pátria bem-amada, a trazer garbosa e dignamente o titulo de cidadão soviético, a cumprir honestamente e até o fim os meus deveres de cidadão, a trabalhar e a estudar com afinco, colocando todas as minhas forças e todas as minhas capacidades a serviço do meu Po­vo e da minha grande Pátria".

E todos os jovens de dezesseis anos exclamam: "Nós o juramos! Nós o juramos!"
Outros ritos marcam a passagem para a maioridade, a entrada na classe operária, o recrutamento para o Exército soviético. Todavia as formas rituais dessas celebrações ainda não foram uniformizadas.

2.3. O casamento

Existe nas cidades soviéticas o Palácio dos Casamentos, que fre­qüentemente é ornamentado com imagens simbólicas: ferraduras de ca­valo estilizadas, "sinais de boa sorte e felicidade", quadros elaborados sobre madeira, à semelhança dos ícones, que representam o amor, a fa­mília e a felicidade.

Os nubentes, ao penetrar nesse Palácio, são acolhidos pela recep­cionista, que os leva, em companhia das testemunhas, para salões separa­dos, onde confirmam sua opção matrimonial. A noiva está vestida de branco, e traz na cabeça um véu que lembra um coração. O noivo se acha vestido com terno escuro e gravata. Ao sairem cada qual do respectivo salão, deparam-se com outra recepcionista, que desce pela escada de honra, cujos degraus são dourados ("a escada dourada da felicidade"). Em tom de voz levemente enfático, ela convida os nubentes a subir para a sala dos ritos. Então sobem todos, enquanto se toca música apropriada. A sala dos ritos é simples. Sobre a parede de fundo, vê-se uma tapeçaria com personagens simbólicas, tendo em relevo a Fé, a Esperança e o Amor (em russo, "Vera, Nadiejda e Lioubov", três santos muito venera­dos pelos russos ortodoxos). Diante dessa tapeçaria, vê-se uma espécie de altar de pedra, semelhante ao da Casa do Recém-Nascido.

A pessoa que preside à cerimônia, de pé atrás do "altar", evoca to­da a importância do rito e pede o consentimento matrimonial dos nu­hentes. Tendo-o obtido, ela os declara unidos pelos laços do casamento. Assinam então, juntamente com as testemunhas, o termo de matrimônio. A seguir, são levados a um pequeno tapete colocado à frente e à esquer­da do "altar"; ali uma funcionária lhes oferece solenemente a taça co­mum, da qual bebem alguns goles de suco. Depois, com uma fita ata o antebraço direito do marido ao da esposa, para "simbolizar a união in­dissolúvel". A família e os amigos são convidados a felicitar os jovens es­posos. A seguir, passam para a sala contígua ornamentada simbolica­mente com uma nave, que serve de lâmpada e que representa a família a enfrentar as águas tumultuadas da vida. Uma cornucópia, símbolo de fartura, é colocada sobre a mesa. Bebem à saúde do novo casal.

O ritual de casamento varia segundo as regiões da URSS. Em Rostov-sobre-o-Don, no Sul do país, é influenciado pelas cerimônias da Igreja Ortodoxa. Essa usa, sim, o tapete sobre o qual se coloca o casal, a taça (que lembra a Eucaristia) e o laço que ata os braços dos nubentes entre si. Na Ucrânia, porém, a influência é mais pagã. No hall de entrada do Palácio arde o "Fogo Eterno", "símbolo da sucessão das tradições re­volucionárias de luta e de combate do povo soviético". O presidente da cerimônia pronuncia a fórmula seguinte: "Aproximai-vos do Fogo eter­no. O Fogo simboliza nossa recordação de todos aqueles que sacrifica­ram a vida pela liberdade e a independência da nossa Pátria soviética, pelos ideais comunistas, por um céu puro acima de nós, por nossa felici­dade e pela de nossos filhos. Que ele arda eternamente em vossos cora­ções!" O nubente acende então a tocha que ele há de levar à frente da procissão até a sala dos ritos...

Os discursos também podem diferir. Eis outro espécimen:

"Sob o céu pacifico de nossa Pátria bem-amada, o Povo Soviético, guiado pelo Partido de Lenin, segue a via luminosa que leva ao comunismo. Sois filha e filho de vosso povo heróico, esperança e futuro desse povo... Ago­ra sois também esposa e esposo. Fundais uma nova família, perpetuais vossa linhagem para o bem do nosso Estado socialista, a imortalidade do Povo so­viético e para a vossa felicidade pessoal".

Em Moscou os jovens esposos vão depositar flores no túmulo do soldado desconhecido, diante do qual arde o Fogo eterno. São levados ao muro do Kremlin, onde se encontra o Memorial dos mortos da guerra, em grandes veículos alugados para tal fim, e portadores de dois grandes anéis de ouro entrelaçados. Em Kazakhstan, na Ásia Central, foram tam­bém integrados no rito soviético elementos tradicionais.

2.4. Os funerais

Há também cerimônias soviéticas fúnebres. Constam de duas par­tes: uma panikhide (palavra russa que designa o Ofício dos Mortos na I­greja Ortodoxa) civil, ou seja, discursos em memória do defunto, e uma procissão que acompanha o caixão ao som de música fúnebre. As autori­dades têm procurado tornar cada vez mais significativos esses ritos, que regulamentam minuciosamente a música, o caixão e as covas.

Nem sempre os ritos soviéticos conseguem erradicar dos cidadãos a reminiscência das cerimônias religiosas. Não raro os interessados parti­cipam daqueles e destas, principalmente quando se trata do casamento. É evidente que o ritual civil é muito mais pobre de significado do que o religioso.

3. Conclusão

O fato de que o Estado Soviético ateu promove um cerimonial li­túrgico para as grandes datas civis da sua população, bem mostra que o senso religioso continua vivo no povo russo. Este manifesta a necessida­de de símbolos místicos; sob capa não religiosa continua a professar a crença em valores que só Deus pode oferecer adequadamente: a plena felicidade, a eternidade, o serviço a uma Causa Maior que mereça plena dedicação... É impossível, porém, que um fator não religioso assuma sa­tisfatoriamente o lugar da própria Religião na vida de um povo.

O presente artigo utilizou as páginas escritas por Michel Sollogoub, Professor de Economia em Paris e Mans, Vice-Presidente da Ação Cristã dos Estudantes Russos, páginas publicadas com o título: Du Berceau au Tombeau. Des rites pour tous les Ages en Union Soviétique, em L'Ac­tualité Religieuse dans le Monde, n° 21, 15/03/85, pp. 6-9.

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NOTAS:
[1] Na Estônia, por exemplo, contavam-se 3.500 Confirmações em 1950 e mais de 10.000 em 1957.
[2] Oktiabriny é a cerimônia introduzida nos primeiros anos da revolução rus­sa. O nome era uma réplica a krestiny, Batismo em russo; em vez de krest, (cruz), foi utilizado o radical oktiabr, outubro, com o sufixo iny.

terça-feira, 25 de setembro de 2007

Sacerdócio: celibato sacerdotal (o direito de amar)

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 276/1984)


3. Sacerdócio e celibato: conveniência

Levaremos em conta especial a encíclica do papa Paulo VI, Sacrossanctum Concilium, citada como SC.

3.1. Fundamentação teológica

1) Identificação com Cristo

O sacerdócio cristão só pode ser entendido à luz de Cristo, ou seja, como participação do sacerdócio do Senhor Jesus. Ora, para executar a sua missão de Mediador, Jesus Cristo perma­neceu toda a vida em estado de celibato, estado que lhe per­mitiu plena dedicação ao serviço de Deus Pai e dos homens (cf. SC 21). Além disto, o Salvador abriu aos seus discípulos a perspectiva de uma consagração total ao Reino dos Céus mediante renúncia ao matrimônio; deixou-lhes, com efeito, tal convite: “Há eunucos que se fizeram tais por causa do Reino dos Céus. Quem pode compreender, compreenda» (Mt 19,12).

Assim interpelado pelo Divino Mestre, é lógico que o sacer­dote procure responder-lhe não somente abraçando o ministé­rio sacerdotal, mas também compartilhando com o Senhor o estado de vida indivisa. Destarte, ele dá uma resposta de amor ao amor que Cristo manifestou de modo tão elevado (cf. Jo 15,13; 3,16). Consequentemente, o celibato vem a ser o sinal de um amor sem reserva e o estímulo de uma caridade aberta a todos os homens (cf. SC 19-25).

2) Serviço à Igreja

Identificado com Cristo quanto ao seu estado de vida, o sacerdote está em condições de amar a Igreja como Cristo a amou, dedicando-se a Ela com a máxima disponibilidade. A vida do sacerdote celibatário há de ser marcada pelas notas da harmonia e da unidade de ideal: todas as suas riquezas naturais e sobrenaturais estão livres para se dedicar plenamente à leitura e à assimilação da Palavra de Deus, à oração pública e particular, à celebração consciente e férvida da S. Eucaris­tia, ao serviço de todos os homens. O celibato deve propor­cionar ao padre as melhores disposições psicológicas e afetivas para que exerça continuamente a caridade e seja mais solicito pastor de almas, fazendo-se tudo em favor de todos (cf. 1Cor 9,22; 2Cor 12,15). Em suma, a imagem de Cristo deve trans­parecer através dos traços do sacerdote celibatário, de modo que este ofereça à Igreja e ao mundo um sinal vivo do Senhor presente entre os homens (cl. SC 26-32).

3) Sinal dos bens celestiais

A vida una consagrada a Deus é uma das primeiras e mais espontâneas expressões do Cristianismo neste mundo. Com efeito, já em 56, na sua primeira carta aos Coríntios, São Paulo ensinava que o matrimônio é santo, mas a virgin­dade ainda é mais santa (cf. 1Cor 7,8). Esta afirmação sur­preendia judeus e pagãos, cujas idéias não os levariam a tal conclusão; era caracteristicamente inspirada pela mensagem cristã. Em verdade, o cristão sabe que, com a vinda de Cristo, a vida eterna já começou neste mundo, os bens celestiais e definitivos já são dados aos homens mediante o Batismo e a Eucaristia; por isto interessa sumamente ao discípulo de Cristo viver o mais possível desses valores e para esses valores eter­nos numa atitude de virgindade espiritual e (se possível) cor­poral. Na virgindade física (que não deve ser separada da vir­gindade espiritual, ou seja, da entrega total do amor a Cristo), o cristão antecipa, na medida do possível, o estado final ou escatológico: “Na ressurreição, ninguém tomará marido nem mulher, mas serão todos como anjos no céu» (Mt 22,30).

É também a este título que o celibato convém ao sacer­dote: a vida una é, aos olhos da fé, testemunho de que a eter­nidade baixou a este mundo e um estimulo para que todos os homens levantem os corações ao alto (cf. Cl 3,1-4 e SC 83-34).

Eis, em resumo, os grandes motivos que recomendam o celibato cristão em geral e o do clero em particular.

Não se pode, porém, esquecer que contra tal posição se levantam objeções.

3.2. Objeções

1) Contrário à natureza

Afirma-se que o celibato violenta o ser humano, colo­cando-o em situação física e psicológica antinatural. Impede-lhe o equilíbrio e a maturidade de personalidade, sujeitando-o à aridez afetiva ou a atitudes desumanas. Em suma, o celibato menospreza valores humanos, que Deus criou e que Cristo Re­dentor santificou (cf. SC 10).

Que dizer?

- Antinatural é “não amar». O homem foi feito para amar; é esta a sua necessidade primordial, de tal modo que Bernanos podia dizer que “o inferno consiste em não amar».

O amor, porém, não se exerce apenas no plano biológico. Ele pode mesmo prescindir de qualquer contato sexual, pois o homem, além de ser carne, é espírito; com o espírito ele adere, em puro amor, a Deus e a todos os filhos de Deus.

Ora o sacerdote ama e ama intensamente dispensando-se, porém, das manifestações carnais do amor. Um ditado popular assevera com razão “O padre é o coração dos homens junto a Deus, e o coração de Deus junto aos homens» o que quer dizer: no coração do padre se encontram o amor, ou seja, todas as aspirações retas e nobres dos seres humanos e, ao mesmo tempo, o amor ou toda a benevolência com que Deus ama os homens.

O sacerdote celibatário não ignora nem despreza a vida afetiva (o que poderia redundar em desequilíbrio físico e psí­quico de sua personalidade), mas disciplina-a e eleva a um plano superior; é em Deus e por Deus que ele concebe os seus afetos. Em conseqüência, o padre deve amar com um cora­ção dilatado, exercendo uma paternidade mais elevada do que a paternidade natural, paternidade que prolonga, de maneira particular, a paternidade de Deus em relação aos homens (cf. SC 53-56).

Não se deve, pois, dizer que a Igreja priva o sacerdote do direito de amar. Ao contrário, é para garantir a abertura e a universalidade do amor de seus ministros que a Igreja lhes pede o celibato.

Se um cristão quer casar-se legitimamente, tem em seu favor o sacramento do matrimônio, que santificará a sua vida conjugal. Não há necessidade de que seja sacerdote na Igreja Latina, se deseja casar-se. Em suma, amar não quer dizer apenas “ter vida sexual»; a vida sexual não é senão uma das expressões do amor de duas pessoas que Deus uniu pelo sacra­mento do matrimônio.

2) Homem solitário

“Pelo celibato o sacerdote se condena a viver em solidão, que se lhe torna fonte de amargura e aviltamento» (SC 10).

- Em resposta, podem-se lembrar as palavras do Santo Cura d'Ars: “O sacerdote é um homem devorado pelos ho­mens». Em virtude do seu ministério, está constantemente em contato com seus semelhantes. que ele procura ou que o pro­curam; Deus o chamou em favor de todos os homens, dele fazendo fermento na massa e luz para o mundo. E, quando, nas horas noturnas, o sacerdote se recolhe, deve sentir a necessidade de se encontrar a sós com o Senhor Deus a fim de orar e meditar; é nesses momentos que ele se revigora e “reabastece» para poder continuar a dar aos homens a pala­vra e a vida do próprio Deus.

Naturalmente, pode haver na vida do sacerdote momentos em que sinta a falta de reconforto humano. Lembrar-se-á então de Cristo, que em grau máximo quis experimentar tais situações, mas pôde declarar: “Não estou só, porque o Pai está comigo (Jo 16,32). É na intimidade com Deus que o padre encontra a força de alma necessária para dissipar me­lancolias e depressões; o Divino Amigo, dando-lhe parte mais intensa nas suas dores, dá-lhe também a consciência de estar mais identificado com o mistério da morte que é vida para o mundo.

Nas circunstâncias normais, não hão de faltar ao sacer­dote abalado a solicitude de seu pai espiritual, o Bispo dioce­sano, o apoio de seus irmãos no sacerdócio e o reconforto do povo de Deus; a S. Igreja deseja que todos os seus filhos se auxiliem mutuamente nos setores que lhes estejam ao alcance, conscientes de que formam todos um só corpo em Cristo (SC 58-59).

3) Escassez de clero

“Se o matrimônio fosse permitido aos padres, haveria maior número de vocações; muitos jovens parecem desistir do sacerdócio por sentirem atrativo para o casamento. Este uma vez concedido, a carência de sacerdotes deixaria de ser o pro­blema que ora tanto preocupa a Igreja» (cf. SC 8).

- A experiência das comunidades orientais que admitem o casamento de seus ministros, demonstra que tal suposição é infundada; nem por isso tem mais clero do que os cristãos do Ocidente.

A raiz da escassez de clero está na atenuação do senso de Deus e das coisas sagradas que se verifica tanto nos indivíduos como nas famílias. Também se deve recensear a perda da estima pela Igreja, instituição que salva mediante a fé e os sacramentos. Em suma, a descristianização dos lares e das escolas, o esvaecimento do senso religioso nas diversas camadas da sociedade tornam assaz difícil o surto e o desabrochar das vocações sacerdotais na juventude contemporânea.

A solução de muitos dos problemas que afligem os cristãos em nossos dias, depende da recristianização da família nos lares onde a fé é conservada, o apelo do Senhor para o ministério sagrado não somente se faz ouvir com freqüência, mas encontra a devida correspondência por parte dos jovens e o estímulo por parte dos mais velhos É notório que muitas famílias contemporâneas acolhem com tristeza e repulsa a notícia de que um de seus filhos se deseja consagrar a Deus.

De resto, é preciso não esquecer que o Senhor Jesus quis confiar a evangelização do mundo a um punhado humana­mente insignificante de discípulos, os quais, não obstante, rea­lizaram maravilhas com a graça de Deus. Em toda a história da Igreja, a messe sempre foi grande e exíguo o número de operários - razão pela qual ainda hoje no Evangelho Cristo exorta seus fiéis a recorrerem à oração, a fim de que o Pai suscite novas e novas vocações na S. Igreja (cf. SC 47 e 49).

4) Dois dons distintos

“A Igreja faz coincidir o dom da vocação sacerdotal com o da perfeita castidade. Ora pode acontecer que alguém receba o chamado para o ministério sagrado sem receber ao mesmo tempo o dom da vida celibatária» (cf. SC 71).

- Por certo, o dom divino do ministério sacerdotal é dis­tinto do da perfeita continência. Note-se, porém, que a voca­ção sacerdotal, embora provenha de Deus, não se torna defini­tiva, concreta e atuante senão na Igreja. Esta é o Corpo vivo e prolongado de Cristo; é por Ela que Cristo fala, confirmando ou não nos seus jovens fiéis o chamamento para o sacerdócio. Ora à Igreja o Senhor confiou a faculdade de estabelecer os requisitos necessários para que os homens possam exercer o ministério sacerdotal. Por conseguinte, não é licito opor entre si “chamado de Deus para o sacerdócio» e “exigência da Igreja», pois, na verdade, o chamado divino só vem dentro do quadro de condições estipuladas pela Igreja. “Quando no Ocidente Deus dá o dom da vocação sacerdotal, também dá o da continência perfeita», é o que se deve dizer numa visão de fé coerente (cf. SC 15 e 62).

Isto quer dizer que, quando alguém sente inclinação para o sacerdócio ministerial, mas, ao mesmo tempo, experimenta forte necessidade de se casar, talvez não esteja sendo por Deus chamado ao sacerdócio; é para desejar que tal pessoa se exa­mine bem a fim de averiguar se Deus não lhe concede a graça de transferir sua necessidade de amor para o plano espiritual, de modo que possa dignamente tender ao sacerdócio e exercer o ministério sagrado. Caso não consiga prescindir do amor conjugal, esteja certo de que Deus não o está chamando para o sacerdócio ministerial.

5) As dolorosas deserções

“Se os padres se casassem, não se verificariam as infidelidades e deserções que, no atual regime, entristecem a Igreja. Os ministros de Cristo dariam o testemunho de vida cristã no setor da família» (cf. SC 9).

- As deserções, que nos últimos tempos se têm registrado em maior número, não depõem contra os valores positivos do celibato na vida sacerdotal, mas chamam a atenção para outro problema: faz-se mister proporcionar um preparo mais ade­quado e prudente aos jovens que se candidatam à vida sacer­dotal (...)

Deve-se também notar que as desistências de sacerdotes se devem não raras vezes a um afrouxamento geral dos mes­mos em sua vida de ascese e piedade. Quem negligencia a oração, vai aos poucos perdendo o sabor das coisas de Deus, começa a experimentar o vazio em seu íntimo, e finalmente sente necessidade de se satisfazer em bens criados, aos quais livremente renunciou. As defecções de sacerdotes geralmente não são o resultado de uma crise momentânea, mas, sim a conseqüência de um progressivo afastamento dos valores sobrenaturais. A vida moderna, com suas imperiosas exigências de trabalho, tende muitas vezes a quebrar o ritmo de oração e disciplina do padre; insensivelmente distancia-o de maior vigilância sobre si mesmo, vigilância indispensável para que não se deixe arrastar pela onda dos afazeres e pelos numerosos atrativos sensíveis a que está sujeito. Ora é esse zelo intenso para com a vida espiritual que a S. Sé preconiza, a fim de que os ministros do Senhor não sejam dolorosamente surpreendidos pelas tentações.

quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Religião: indiferentismo religioso

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 258/1981)

Em síntese: O indiferentismo religioso é fenômeno cada vez mais alastrado. Por motivos diversos, muitas e muitas pessoas julgam que não merece atenção o problema de Deus e da Religião. Todavia é de notar que o problema de Deus é tão vital quanto a questão do sentido da vida; ele coincide com as perguntas: Donde vimos? Para onde vamos? Por que sofremos? Por que morremos?. ..

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Estas indagações, as quais interpelam todo homem que leve a sério a sua vida, têm recebido respostas da ciência e da filosofia... Da ciência esperam muitos homens a elucidação das suas dúvidas e o afastamento dos males que os afligem; todavia esta esperança é desmentida pelo que acontece em países de tecnologia e organização social evoluídas como é, por exemplo, a Suécia; nesta o número de suicídios é crescente, porque o homem se sente só, embora cercado de semelhantes; o vazio do indivíduo não é preenchido pelos benefícios da técnica e do conforto. A filosofia, ou melhor, as filosofias apresentam um leque de respostas ao homem, várias delas materialistas (e frustrativas por este motivo), outras dualistas (avessas ao corpo e à matéria - o que é artificial).

Existe também a resposta filosófica teísta, que é completada pela Revelação cristã. Esta apresenta a seguinte síntese:

Existe o Transcendental ou Deus, como existe o pólo Norte que atrai a agulha magnética. Sem pólo Norte não se explica a "Inquietação" da agulha.

O homem só existe por um ato de amor gratuito do Criador; esse amor é irreversível, porque divino, de modo que o homem o encontra inabalável, mesmo depois das mais graves faltas. A grande vocação do homem é a de voltar para Deus através das estradas desta vida.

A nossa vida terrestre é comparável a uma gestação consciente que nos prepara para a segunda natividade ou para o nosso pleno nascimento. Se no seio materno a criança é irresponsável por sua estatura, no decorrer desta vida o homem é autor da sua sorte definitiva.

Esta perspectiva não desobriga o ser humano de trabalhar fielmente neste mundo como mediador entre as criaturas Inferiores e o Criador.

O sofrimento é a conseqüência da desordem acarretada pelo homem na obra de Deus; cioso de ser Igual a Deus vê-se vítima da sua arrogância. Todavia o Redentor assumiu a dor e a morte do homem e as transfigurou.

A luz destas verdades, a morte é consumação.

Comentário: Já temos aludido em PR ao fenômeno do indiferentismo religioso, que em muitos países se substitui ao ateísmo militante. Nos Estados Unidos, na Escandinávia, no Japão contam-se aos milhões aqueles que, embora não sejam hostis à religião, se dizem desinteressados do problema religioso.

O fenômeno da apostasia em relação à religião começou no séc. XVIII com o racionalismo dos filósofos franceses (os enciclopedistas Voltaire, Diderot, D'Alembert), alemães e ingleses (iluministas). Já em 1748 escrevia o filósofo materialista De La Mettrie: “O mundo nunca será feliz a menos que seja ateu. A apostasia prolongou-se no século XIX, assumindo diversas formas: o positivismo de Augusto Comte († 1857), a esquerda hegeliana de Feuerbach († 1872), o socialismo ateu militante de Marx e seu precursor Engels (+ 1895); o evolucionismo materialista de Darwin († 1882) e Spencer († 1903), o voluntarismo desesperado de Friederich Nietzsche († 1900) e Schopenhauer († 1860). Nietzsche, por exemplo, referindo-se aos cristãos dizia: “O cristão é um inútil, um separado, um resignado, é estranho ao trabalho da terra”.

As últimas expressões do fenômeno no séc. XX são o pansexualismo de Freud († 1930), o hedonismo ou o culto do pra­zer, as ideologias comunista, fascista, nacional-socialista, racista.

Hoje em dia essas tendências anti-religiosas tomaram nova forma, que não exclui as anteriores, mas se vai alastrando como sendo mais cômoda, porque não implica militância alguma: a do indiferentismo. - Ora é precisamente esse indiferentismo, tão propagado em nossos dias que interessa levar em conta, procurando aprofundar o seu significado. É o que vamos fazer nas páginas que se seguem.

1 .O fenômeno do indiferentismo

Podem-se registrar diversas facetas do indiferentismo religioso em nossos dias.

1) Há os que não dão o mínimo de atenção ao problema religioso, porque estão “atolados” no trabalho e nas obrigações sociais, de tal modo que não lhes resta tempo para encarar a questão religiosa. São pessoas que vivem constantemente fora de si mesmas, vítimas do ritmo frenético da vida, mas que, em última instância, estão contentes por nunca se encontrarem consigo mesmas e com a própria consciência, porque isto as poderia “assustar” ou levar a uma certa desinstalação ou mudança de vida.

2) Outros nunca foram sacudidos pela vida e, conseqüentemente, obrigados a sair de certa leviandade rotineira. Talvez sejam pessoas “vazias” em seu íntimo e, por isto, necessitadas de encher a vida, com coisas que lhes prometem ilusória satisfação: a conquista e o uso do dinheiro que nunca basta, a ornamentação da casa com mil objetos inúteis, a carreira ameaçada por obstáculos, a moda que tiraniza e obriga a constantes mudanças.....

3) Outras ainda há que colocaram para si o problema religioso, ainda que talvez sem grande esforço, mas que julgaram não dever “perder tempo” com Cristo, pois religião seria um fenômeno ultrapassado ou um acervo de histórias e práticas obscurantistas (embora muitas dessas pessoas tenham sua crença no “horóscopo” ou nos porte-bonheur ou nos talismãs ou evitem o w 13).

Perguntamo-nos agora:

2. Fé não é problema?

Na verdade, o problema de Deus é vital, porque vem a ser o problema do sentido da vida humana; por isto também quem se interroga sobre o significado da sua vida, não pode deixar de encarar o problema de Deus com seriedade.

Com efeito. Todo homem, em sua existência, vê-se obrigado a se defrontar com vários desafios imediatos: o da subsistência, por exemplo, que envolve alimentação, habitação, cura de doenças. Há, depois, os problemas do trabalho, da profissão, da família, da cidade ou da política..., que constituem um conjunto de sérias preocupações.. .

Acontece, porém; que há um problema radical ou fundamental, que é o do homem; tudo o que o homem faz, deriva o seu sentido daquilo que o homem é. De fato, pergunta-se: quem é o homem que trabalha, constrói, luta, sofre e morre? Por que trabalha e padece? Donde veio? Para onde vai após a morte, Ou esta põe fim a tudo o que ele é e faz? São estas as perguntas supremas e decisivas às quais nenhum homem pode fugir. Aqueles que não as concebem, arriscam-se a levar uma vida superficial e rotineira; somente os seres infra-humanos não concebem as perguntas relativas aos grandes porquês e para quês da vida.

Se o problema do sentido da vida é “vital”, e não lhe pode escapar quem realmente queira viver consciente e profundamente, examinemos algumas das respostas mais freqüentemente dadas a tal problema.

3. A resposta da ciência e da técnica

Há quem julgue que a ciência poderá responder às grandes indagações do homem e proporcionar-lhe paz e felicidade. Quanto à técnica, que decorre do progresso da ciência, ela seria apta a oferecer ao homem comodidade e bem-estar.

Ora, na verdade a ciência como tal não chega a colocar as grandes e supremas interrogações do homem; se o fizesse, ela se tornaria filosofia, saindo da sua alçada sem ter métodos adequados para enfrentar as indagações da filosofia. Assim, por exemplo, a biologia, que é a ciência da vida, procura saber como a vida teve origem, como se desenvolve e multiplica, mas ela (como ciência biológica) não pergunta por que a vida existe e qual o sentido do fenômeno da vida, pois tais problemas fogem ao campo de competência da ciência biológica. Mais ainda: a biologia só pode estudar os viventes corpóreos materiais; caso haja viventes não corpóreos, a biologia não os atinge, ela não pode dizer nem mesmo se existem ou não. Eis por que não tem sentido dizer que a alma não existe, pois nenhum biólogo ou nenhum médico jamais a encontrou na ponta do seu bisturi; na verdade, a alma, como ser espiritual, pertence a outro plano que não o da matéria; ela não é matéria mais sutil do que os outros tipos de matéria, mas simplesmente não é matéria.

Aliás, uma prova de que a ciência e a técnica não satisfazem às aspirações mais fundamentais do homem nem respondem aos interrogativos mais profundos, é a situação de países tecnologicamente evoluídos como os Estados Unidos, a Suécia e o Japão. A propósito da vida na Suécia, a revista espanhola Cambio 16 publicou interessante crônica com o titulo “Suecidarse” (palavra que funde Suécia e Suicídio). Passamos a apresentar essas observações em tradução brasileira:

"Vinte e dois dentre cem mil suecos se suicidam porque têm casa e carro próprios, poucas horas de trabalho por dia, riqueza material e muito tempo livre, segundo o estudo Gente en crisis, editado pelo Departamento social do Sindicato de Empregados. O número de suicidas, de resto, é duas vezes maior do que o das vitimas de desastres de automóvel.

Os dados são sombrios. Entre os motivos que duas mil pessoas encontram para matar-se todos os anos, os autores do trabalho põem em primeiro lugar a solidão.

Além disto, o ingresso da mulher no mundo alienado do trabalho colocou-a em condições de carência idênticas às dos homens. Nos últimos vinte anos o índice de suicídios femininos subiu de 100%, ao passo que o de masculinos aumentou de 25%. Não somente isto: as mulheres se salvam, por ora, em virtude da sua relativa falta de eficácia para tirar a vida a si mesmas, pois são três vezes mais numerosas as que tentam o suicídio do que as que morrem.

Leve-se em conta também que os índices não são de toda confiança. O pudor e a pouca simpatia das Companhias de Seguros para com o suicídio levam a tachar de acidentes automobilísticos muitos casos de suicídio. Assim, com a chegada da primavera e o degelo dos lagos, é freqüente subirem os números de afogados, os quais na verdade não seriam senão suicidas, cujo fim trágico é encoberto pela mentira Imposta por normas sociais.

A maior porcentagem de suicídios - revela Gente en crisis - ocorre entre os homens de 40 a 65 anos e entre as mulheres de 45 a 60 anos. Os grupos mais afetados são os dos alcoólicos, drogados, enfermos e divorciados (nessa ordem). As pessoas se matam mais nas grandes cidades do que no campo ; o índice de suicidas em Estocolmo, por exemplo, é longe o dobro do de todo o pais.

Um exame dos dados estatísticos leva os estudiosos a verificar que o suicídio é o resultado de um ato refletido e não de um impulso. Vinte por cento dos que se suicidam deixam cartas de despedida; alta porcentagem mata-se depois de ter estado com seu médico ou psiquiatra; os familiares não parecem surpreender-se com a decisão; apenas observam: 'Estava muito deprimido'. 'As coisas não lhe iam a contento'.

Atualmente um milhão de suecos vivem solitários. O número não deixa de aumentar porque a casa própria deixou de ser um luxo... Em seus tempos de lazer, os suecos, ajudados por seus recursos materiais, torna­ram-se individualistas: passeiam, patinam, praticam o esqui ou navegam solitários e silenciosos, segundo as conclusões do estudo, que também afirma : 'O alcoólico se suicida quando perde o último contato de relacionamento pessoal com os seus semelhantes'.

Visto que as causas do suicídio estão muito ligadas às condições de vida na Suécia, parece impossível extirpá-las. O diário Dagens Nyheter de Estocolomo lançou uma cética proposta em editorial, sugerindo o aumento das horas de trabalho diário ou uma redução das comodidades postas à disposição do público... Todavia os observadores mais realistas exprimem o seu pessimismo; 'Não há solução, dizem; será sempre assim: as sociedades desenvolvidas terão que acostumar-se ao suicídio e considerá-lo como um dos numerosos e indesejáveis efeitos do progresso".

Estas observações sugerem dois comentários:

1) A solidão é o grande mal do homem num mundo que se vai povoando cada vez mais. ó paradoxo! Os indivíduos se isolam uns dos outros, embora estejam cercados de gente. E por quê? Em parte, porque cada qual se deixa absorver por seu pequeno mundo e seus interesses pessoais ou, também, porque tem medo de que os outros o perturbem e desinstalem. Por ironia, esse fechamento “protetor” e “tutelar” não acarreta maior felicidade ou paz para a pessoa que se flecha, mas, ao contrário, dá-lhe a impressão do vazio e da solidão, que se tornam mortais para o homem. Vê-se que este tem que escolher entre o culto egoísta dos bens materiais ou o serviço aos irmãos. Isto não quer dizer que não seja possível possuir bens materiais e sentir-se feliz; mas para tanto é necessário que os bens materiais não tornem pesado e gorduroso o coração do homem (adjetivações bíblicas), mas, antes, concorram para torná-lo mais livre e generoso. - Ora uma tal atitude dificilmente se consegue se não se tem uma motivação de ordem transcendental, ou seja, o amor a Deus como fundamento do amor ao próximo.

2) O artigo termina chamando a atenção para o fato de que a crescente onda de suicídios na Suécia está muito vinculada às condições de vida da população local. Há quem diga que doravante as perspectivas da sociedade de consumo incluirão a nota marcante do suicídio. Esta prospectiva é profundamente dolorosa. - Deve-se dizer, porém, que progresso da civilização e suicídio não são elementos necessariamente associados entre si; o primeiro de per si não implica o segundo. A associação só ocorre se o homem perde a visão do sentido do progresso material ou se esquece de que as conquistas materiais devem ser o trampolim para a ascensão ao plano dos bens definitivos e transcendentais.

Pode-se, pois, concluir que por certo o progresso da ciência e da tecnologia é insuficiente para proporcionar ao homem as respostas atinentes ao sentido da vida.

Examinemos agora as respostas que a filosofia, ou seja, o uso da razão natural, sem fé, oferece ao homem a respeito das mesmas questões.

4. As respostas da Filosofia

A filosofia, sem dúvida, procura ultrapassar as causas imediatas de cada fenômeno, para descobrir as causas últimas ou supremas; ela tem por objetivo colocar cada fato e cada valor no conjunto dos fatos e dos valores em síntese harmoniosa. Todavia acontece que não há uma filosofia, mas muitas filosofias. Principalmente a partir do século XVI cada pensa­sador tende a trilhar seu caminho próprio, resultando daí que muitas vezes os sistemas filosóficos se destroem mutuamente e chegam a conclusões contraditórias. Em conseqüência, muita gente, diante das propostas da filosofia, toma uma das duas atitudes: o relativismo (tanto faz uma como outra) ou o ceticismo (nenhuma atinge a verdade). É o que explica que já se tenha falado do “escândalo da filosofia”. Percorramos rapida­mente as principais respostas dos filósofos:

1) Materialismo: Há quem diga que só existe matéria. Deus não existe; quanto ao chamado “espirito”, é redutível à matéria. Por conseguinte, não há vida póstuma: o homem vive e morre como os demais viventes, e, como estes, desaparece no nada. Por isto o sentido da vida consiste em procurarmos ser o mais possível felizes com os bens desta terra.

2) Positivismo e nopositivismo. Esta escola ensina que não se deve procurar o que fica para além da percepção dos sentidos. Indagar qual seja o significado da vida não tem propósito, porque só se pode falar do que se consegue experimentar e averiguar cientificamente. Por conseguinte, não tem cabimento falar de Deus, do espírito, de vida póstuma e de voca­ção transcendental do homem.

3) Idealismo. Os filósofos desta escola afirmam que o homem só conhece as suas próprias idéias. O conhecimento, portanto, não bem valor objetivo. Mais amplamente, dizem: é o próprio homem quem cria os seus valores e realiza em absoluta liberdade a imagem que ele projeta de si mesmo e para si mesmo. Tome consciência disto, e não pretenda realizar padrões objetivos ou atingir metas transcendentais porque estas escapam ao seu conhecimento.

4) Panteísmo. Esta corrente de pensamento identifica o homem com a Divindade. Entre as várias formas que ela assume, uma das mais freqüentes afirma que a Divindade se acha apoucada ou diminuída dentro do corpo ou da matéria, de sorte que o sentido da vida terrestre consiste em libertar do corpo a centelha divina que está dentro do homem ou que é o homem propriamente dito. Esta perspectiva está associada a duas teses filosóficas:

a) o dualismo, segundo o qual a matéria e o mundo visível são algo de mau. Os únicos valores são os do espírito. Este se acha encarcerado dentro da matéria, que impede a sua plena expansão. Em conseqüência, tal escola filosófica não tem interesse pelo progresso da civilização; antes, vinculam o homem à matéria e ao mundo, quando na verdade todo o afã do homem deve consistir em desprender-se de qualquer relacionamento com a matéria.

b) o reencarnacionismo. Se o homem é a própria Divindade, está claro que ele não espera de Deus a sua salvação, mas a espera de si mesmo. E, se o homem não consegue salvar-se ou libertar-se interiormente do apego à matéria e aos bens materiais numa só vida ou encarnação, terá que se encarnar de novo e passar outra vez pela vida terrestre; isto se repetirá tantas vezes quantas forem necessárias para possibilitar ao indivíduo a sua total purificação ou renúncia aos afetos terrenos.

Refletindo sobre as quatro respostas filosóficas que acabam de ser enunciadas, podemos dizer:

As três primeiras (materialismo, positivismo, idealismo) cortam qualquer perspectiva de transcendência, deixando o homem confiado ao regime do visível, material e transitório. Por certo, não satisfazem à aspiração inata que temos para a vida, e a vida sem fim, nem correspondem ao testemunho de todos os povos que, da antigüidade até nossos dias, admitiram a vida póstuma.

A quarta resposta (a panteísta-reencarnacionista) supõe, em grau mais ou menos explícito, o dualismo entre a matéria e o espírito, condenando a matéria à rejeição, como sendo elemento aviltante e degradante da centelha divina que é o cerne do homem. Ora o dualismo é antinatural ou artificial, visto que o corpo faz parte integrante da natureza do homem; sem o corpo, a mente não adquire idéias nem concebe afetos.

5) Teísmo. Existe também uma filosofia teísta, isto é, que professa a existência de Deus e do transcendental. Todavia, sendo filosofia ou obra da razão entregue tão somente ao seu acume natural, não consegue penetrar a fundo na realidade do homem e da vida. Por isto, ela tem sido completada pela revelação que o próprio Deus fez de si ao homem. Assim se origina a síntese ou a resposta cristã.

Aliás, é de notar que já Platão († 347 a. C.), embora reconhecesse o valor da razão para desvendar o mistério do homem (a questão da imortalidade da alma), julgava que a razão é como uma pobre jangada, que nos leva a atravessar o mar da vida com riscos ou perigos para nós; seria melhor, dizia ele, fazermos o trajeto com mais segurança e menos perigo, usando mais sólida embarcação, ou seja, seguindo uma revelação divina (Fedon c. 35c-d). Ora é precisamente esta mais sólida embarcação que leva os pensadores cristãos a responder com segurança às grandes questões atinentes ao sentido da vida.

Vejamos, pois, as grandes linhas da síntese cristã.

5. A síntese cristã

Eis os principais pontos que compõem a resposta cristã.

1) O transcendental (Deus). A síntese cristã afirma a existência de Deus... Entre as numerosas razões desta afirmativa, salientamos as de ordem antropológica. Onde há polarização, existe pólo; se a agulha magnética é inquieta e atraída por algo invisível, existe esse invisível, que é o pólo Norte; ele é real, embora os sentidos não o vejam imediatamente. Ora o homem é atraído naturalmente (não em virtude dos artifícios de alguma cultura ou escola) para a Vida, a Verdade, a Felicidade, o Amor, a Justiça, a Paz.. . Por conseguinte, estes valores que atraem, devem existir; existe, sim, um ser que é a Plenitude ou o Ser propriamente dito, e que é, ao mesmo tempo, a Verdade, o Amor, a Vida, etc. Sem tal Ser, não se explica o mistério do homem; este seria uma agulha magnetizada sem polo Norte - o que é absurdo ou contraditório.

2) O homem. A razão pela qual o homem e, com ele, o mundo existem, é, sem dúvida, a bondade de Deus. Este, sendo o ser absolutamente perfeito, não tinha necessidade de criar. Se criou, foi porque quis fazer a criatura participante da sua vida e felicidade. Diziam os neoplatônicos: “O bem é difusivo de s”». Ora, se Deus é o Sumo Bem, Ele é sumamente difusivo de Si. - Há, pois, na raiz da existência de cada ser humano um ato de benevolência gratuita ou um ato de amor de Deus, que quer bem sem compensação ou sem interesse egoísta. Esse ato de amor é irreversível; é Sim uma vez por todas, dado que Deus não pode ser Sim e Não ou não se pode contradizer nem retratar; mesmo que o homem vacile ou se afaste, ele pode encontrar esse amor inabalável do Criador desde que resolva voltar a Este. Esta verdade será útil, mais adiante, para se ilustrar o sofrimento humano.

O homem criado benevolamente por Deus é chamado a participar da vida divina para todo o sempre. Ele procede de Deus (por criação) como ser embrionário e retorna para Deus, através das estradas desta vida.

3) A vida presente é, pois, concedida como um caminhar para a “Casa do Pai” ou para a Plenitude da Vida, da Verdade, do Amor... Ela pode (e deve) ser comparada a uma gestação; com efeito, o ser humano só nasce plena e definitivamente no termo da sua vida terrestre. Entre o nascimento para a luz do sol e o nascimento para a luz da eternidade, vai-se formando a personalidade e vão-se desabrochando as virtualidades desta; a gestação no seio materno (onde a criança está oculta e inconsciente) se prolonga no decorrer desta vida terrestre umbrátil ou claro-escura, só terminando no dia em que o homem é projetado diretamente para a luz sem fim e definitiva. Se no seio materno a criança não é responsável por sua formação ou construção, já no decurso da segunda gestação o homem é, via de regra, responsável pela sua estatura e configuração definitiva.

4) Se realçamos o caráter provisório e passageiro desta vida (o que, aliás, é evidente à própria experiência), não queremos dizer que o ser humano se possa considerar descompromissado em relação à realidade deste mundo. É mediante o exercício da sua missão de mediador ou de sacerdote entre o mundo material e Deus que o homem se realiza ou desabrocha as suas virtualidades e atinge a plenitude da sua estatura. O Criador entregou ao homem o mundo ainda embrionário para que este continue a obra do Criador. Tal é o sentido do trabalho humano; é digno e nobre, ainda que braçal e servil. O homem não há de trabalhar segundo seus caprichos, mas procurará construir um mundo melhor, mais consentâneo com os desígnios de Deus, que são de amor, justiça e fraternidade; trabalhar contra este plano, ou seja, a serviço do egoísmo e do ódio é desfigurar o trabalho e torná-lo obra satânica, da qual só podem resultar dissabores e amarguras para o trabalhador.

5) O sofrimento há de ser considerado neste contexto de otimismo. Resulta da desordem introduzida pelo homem na obra do Criador, por abuso do livre arbítrio. Ele quis ser “como Deus” (Gn 3,5) ou auto-suficiente.

É natural, pois, que, tendo desejado assumir por soberba uma posição que não lhe compete, o homem sinta as conseqüências da desordem acarretada. Todavia o sofrimento, embora suscite sempre interrogações ao homem, não é simplesmente um enigma indecifrável; o próprio Deus se dignou de assumir a sorte dolorosa e mortal do homem, a fim de trans­figurar tal realidade; assim o homem sofre justamente, mas com a esperança, ou mesmo a certeza, de que tal sofrimento, associado ao de Cristo, é passagem para a ressurreição e a glória. Em síntese: o sofrimento é explicado pelo Cristianismo como conseqüência do pecado, mas é transfigurado pela presença da misericórdia do Senhor, que faz da dor um instrumento de pu­rificação e santificação. É esta, entre todas as explicações dadas ao sofrimento, a mais plausível. A que recorre ao dualismo, admitindo um Principio Subsistente do Mal, é antifilosófica (pois o mal é sempre uma carência e nunca um ser positivo). A última atitude da filosofia perante a dor é a da angústia e do desespero, de que dá testemunho o existencialismo ateu; o homem vê a vida como algo de absurdo, e tira as conseqüências dessa perspectiva. Ao invés, a visão cristã, embora reconheça o que tem de horrendo o sofrimento, sabe integrá-lo numa síntese de otimismo.

6) Após quanto foi dito, a morte aparece como consumação, e não como ruptura da vida. É o término da gestação e a segunda ou definitiva natividade do ser humano. O cristão olha para ela não como para algo de meramente negativo, mas como algo que o ajuda a avaliar cada um dos bens que lhe ocorre; cada um destes só tem sentido se contribui para que o cristão se encontre,mais livre e mais consciente, com o Bem Infinito no fim da sua peregrinação terrestre.

Eis em poucos tópicos a resposta cristã à questão do sentido da vida humana.

É harmoniosa; todavia a sua veracidade só se comprova plenamente pela experiência ou pela vivência concreta e fiel da mesma.

terça-feira, 18 de setembro de 2007

Alma Humana: a alma humana é imortal?

(Revista Pergunte e Responderemos, PR 227/ 1978)

Em síntese: A imortalidade natural da alma humana se evidencia, no plano filosófico, a partir de três argumentos principais

- a alma humana, sendo espírito, é simples ou não composta; por conseguinte, não se decompõe ou não se dissolve por sua própria natureza. Deus, que a criou, poderia aniquilá-la, mas não o faz, pois isto contradiria à sabedoria e à justiça do Criador;

- a alma humana aspira naturalmente à vida, e à vida sem fim; ora tal desejo inato não pode ser frustrado, pois, se o fosse, a natureza seria absurda e suporia o absurdo em sua origem. Todavia não se pode crer que o ser humano seja o único absurdo em meio a um mundo cheio de ordem e harmonia naturais;

- a alma humana aspira naturalmente à justa sanção ou à retribuição devida ao bem e ao mal. Já que esta só ocorre precariamente na vida presente, deve haver outra vida na qual a justiça seja exercida. Em caso contrário, a história seria absurda, terminando com o espezinhamento (ao menos, parcial) do bem e da virtude e a exaltação (ao menos, parcial) do mal.

Verdade é que o composto humano (corpo e alma) aspira à vida imortal. Todavia o composto humano é, por sua natureza, perecível, de modo que o seu desejo de imortalidade é veleidade, incapaz de encontrar a sua resposta natural. A fé ensina que o Senhor Deus ressuscitará o ser humano depois da experiência da decomposição ou da morte, sendo Cristo o penhor e o exemplar da ressurreição de todos os homens.

***

Comentário: Sabe-se que a morte não põe fim, por com­pleto, à pessoa humana, pois os feitos desta continuam pre­sentes aos pósteros; principalmente aquelas pessoas que con­tribuem mais eficazmente para a construção ou a destruição da humanidade, permanecem, de certo modo, atuando junto às gerações posteriores. É este o tipo de imortalidade que, por exemplo, o marxismo propõe ao ser humano a partir de suas premissas materialistas; a escola de Marx tenta recon­fortar seus discípulos dizendo-lhes que a grandeza imortal do homem consiste em ser o carvão lançado na grande locomo­tiva da história da humanidade; destrua-se, contanto que faça avançar o comboio, em cuja marcha cada um se imortaliza.

Outras correntes de pensamento admitem a sobrevivência da alma humana; sustentam, porém, a tese de que esta perde a sua individualidade e se integra num grande todo que leva uma vida impessoal. É o que professa o hinduísmo em geral.

Há, porém, quem afirme que a alma humana é por si mesma imortal, de tal modo que, quando o corpo já não lhe oferece condições de exercer suas atividades psicossomáticas, a alma se separa do mesmo e subsiste em sua realidade indi­vidual e pessoal, exercendo os atos próprios da sua vida espi­ritual. É esta a tese clássica nas escolas de filosofia cristãs. Ultimamente, porém, alguns pensadores católicos, negando a distinção real de corpo e alma, asseveram que a morte extin­gue por completo o ser humano, mas Deus o ressuscita ime­diatamente após a morte!

Esta última tese não se sustenta desde que se admita, como se deve admitir, a distinção real de corpo e alma. No artigo anterior ficou comprovado que a alma humana é espi­ritual e o corpo material; a recusa desta afirmativa implica, ao menos implicitamente, profissão de materialismo.

Nas páginas subseqüentes, apresentaremos os argumen­tos em favor da imortalidade natural da alma humana, que é um ser distinto do respectivo corpo.

1. A natureza mesma da alma humana

A morte é a dissolução do ser vivo.

Um ser pode dissolver-se de duas maneiras: por si mesmo ou em razão de outrem. No primeiro caso, dissolve-se direta­mente; no segundo caso, a dissolução ocorre em virtude da dependência em que tal ser se encontra em relação a outro que se dissolve.

Ora a alma humana não pode dissolver-se por si, por­que não é composta de partes, mas é simples, como todo espírito é simples ou isento de composição. A quantidade e a extensão são propriedades dos corpos; um espírito não consta de partes justapostas.

A alma humana não pode dissolver-se em razão de sua dependência de outrem, ou, no caso, do corpo, porque ela não depende do corpo para existir; sendo espírito, e direta­mente criada por Deus e pode subsistir sem o corpo, embora exista para se unir à matéria e constituir com esta um todo substancial que é o composto humano.

Objeta-se, porém: dado que a alma humana não existe necessária, mas contingentemente, não poderia ela deixar de existir ou ser aniquilada? Em outras palavras: Deus, que criou a alma humana, tirando-a do nada, não a poderia redu­zir ao nada? Neste caso, a alma humana não se decomporia nem se dissolveria, mas simplesmente perderia a existência.

Eis a resposta adequada: Deus, que criou, pode certa­mente aniquilar qualquer criatura, pois seu ato criador é livre; Ele não é obrigado a conservar na existência qualquer criatura que seja. Se, porém, consideramos a Onipotência Divina não como atributo de Deus isolado, mas em relação aos outros atributos divinos, verificamos que a aniquilação de uma alma humana contrariaria à sabedoria e à justiça de Deus. Com efeito, seria uma espécie de contradição, pois Deus retiraria o ser de uma criatura depois de lhe ter dado uma natureza imortal; além disto, a aniquilação seria algo de injusto, pois tornaria impossível a aplicação das sanções merecidas pelo ser humano nesta vida.

Note-se, aliás, que esta última é a única razão que Kant (+ 1804) aceita para afirmar a imortalidade da alma. A sobrevivência da pessoa humana, diz este filósofo, é uma exi­gência da consciência moral, pois é evidente que a justiça não reina neste mundo: a virtude não costuma ser devida­mente recompensada, nem o vicio adequadamente punido. Antes, o contrário ocorre com freqüência: o justo é perse­guido, enquanto os maus prosperam. Ulteriores ponderações sobre este assunto seguir-se-ão sob o subtítulo 2 deste artigo.

Conclui-se, pois, que a alma humana é naturalmente imortal e não deixa de usufruir desta sua prerrogativa, pois Deus não subtrai às criaturas o que lhes outorgou como atri­butos próprios.

2. O desejo natural

Todo ser tende a se conservar e a perseverar na exis­tência. Nos seres que usufruem de conhecimento, esse desejo é condicionado pelo conhecimento. O animal irracional conhece apenas a existência presente e não deseja outra realidade; não teme a morte porque não a conhece. O homem, porém, conhece o ser de modo absoluto, abstraindo do tempo. Deseja, em conseqüência, existir sem tempo ou, positivamente, con­forme toda a duração possível do tempo - o que é existir sem limites de duração.

Ora o desejo natural de uma vida sem fim se deriva da própria natureza do homem; não é algo de convencional ou dependente de alguma forma de cultura. Tal desejo não pode ser frustrado ou vão; se o fosse, a natureza humana seria contraditória e absurda. Mais: ela suporia o Absurdo na sua origem, pois teria sido feita para a vida e a vida sem fim, mas não teria a capacidade de usufruir da imortalidade. Por conseguinte, a alma humana há de ser imortal, a fim de poder fruir da plenitude de vida à qual ela naturalmente aspira.

Dir-se-á, porém: se tal argumento é válido para a alma, há de ser válido também para o corpo, ou melhor, para o homem todo (composto de corpo e alma). Com efeito, o ser humano como tal deseja viver sempre e tem espontâneo hor­ror à morte.

Em resposta, consideremos o seguinte:

O desejo de imortalidade do homem (ou do composto de corpo e alma), embora seja natural, não é senão uma veleidade ou uma aspiração ineficaz, pois o composto humano tende naturalmente a desgastar-se; os órgãos corpóreos se vão extenuando e tornando ineptos para a vida; no momento em que estão totalmente deteriorados, a vida nesse orga­nismo se torna impossível e a alma humana se separa do mesmo.

Ao contrário, o desejo de imortalidade da alma humana pode ser eficaz, visto que a alma, não sendo composta, não se dissolve; além do mais, tem condições de sobreviver sepa­rada do corpo.

Há, pois, uma diferença entre o desejo natural de imor­talidade do composto humano e o desejo natural de imorta­lidade da alma humana. Em conseqüência, diz a filosofia, o primeiro não tem conseqüências práticas, ao passo que o segundo as tem.

Estas afirmações hão de ser completadas pelos dados da fé. Esta ensina que o Senhor Deus, atendendo gratuitamente ao desejo natural de imortalidade do composto humano, ins­tituiu a ressurreição física dos mortos. Jesus Cristo, Deus feito homem, tendo assumido a carne humana, quis padecer a morte do homem, a fim de vencê-la e ressuscitar como primícias de uma nova humanidade (cf. 1Cor 15,20). A res­surreição de Cristo é o penhor da ressurreição de todos os homens, a qual ocorrerá na consumação dos tempos, quando o Senhor vier em sua glória para dizer a última palavra da história.

Assim a fé ensina que o composto humano terá duração sem fim, pois, embora morra, o Senhor Deus lhe quer dar a vitória sobre a morte e conceder a plenitude da vida.

3. A sanção da justiça

O ser humano foi feito para a justiça, à qual aspira com toda a veemência. Contudo a justiça na vida presente é precária. Freqüentemente as pessoas retas e dignas são ma­terialmente prejudicadas por praticarem o bem, ao passo que os criminosos e iníquos são materialmente beneficiados pela perversão; a justiça humana e o curso da história não raro «premiam» os maus e «castigam» os bons.

Ora, se a alma humana não fosse apta a sobreviver após a existência presente a fim de receber a sanção de seus atos, a justiça ficaria definitivamente violada e conculcada no caso de muitos homens. A história da humanidade terminaria com o triunfo (ao menos, parcial) da injustiça e da desordem sobre a justiça e o bem. A prática da virtude não seria reco­nhecida como tal, mas, antes, colocada em plano de des­prezo e rejeição. Ora tais conseqüências suporiam um mundo absurdo, e, na origem deste mundo, um principio de contra­dição e absurdo, conseqüências estas que não condizem com a ordem e a harmonia que se verificam em geral no universo. Daí afirmar-se que a alma humana é, por si, imortal e, por conseguinte, apta a receber na vida póstuma a justa sanção, que muitas vezes na vida presente lhe é negada.

Se nada houvesse que correspondesse às aspirações ina­tas à vida, à justiça, à verdade, ao amor... que todo homem traz naturalmente em si, teriam plena razão os que, mediante entorpecentes e psicotrópicos, procuram «paraísos artificiais», ou aqueles que põem fim a si mesmos no suicídio. Diz sabia­mente Gabriel Marcel:

"Se a morte é a realidade última, todo valor se aniquila no escândalo puro; a realidade está como que ferida em seu coração".

O que acaba de ser dito, pode ser ilustrado pela veri­ficação de certos fenômenos ocorrentes na natureza. Esta parece excluir a frustração e o absurdo; com efeito,

se tenho olhos, é porque existe a luz para a qual o olho é feito;

se tenho ouvidos, é porque existem sons e melodias;

se tenho pulmões, existe o ar que lhes corresponde;

se tenho fome e sede, existem os alimentos de que preciso;

se a mulher tem o senso da maternidade e aspira a ser mãe, existe para ela a maternidade ou o poder tornar-se mãe.

Mais ainda:

se as águas do mar sobem por ocasião das marés, tornan­do-se agitadas e inquietas, sei que essa agitação não é casual, mas se deve ao atrativo sobre elas exercido pela Lua;

se a agulha magnética se agita dentro da bússola, posso estar certo de que existe um polo Norte (invisível, sim, mas muito real) que a atrai e só permite repouse quando devida­mente voltada para o seu Norte.

Assim analogamente, se verifico em mim (anteriormente a qualquer reflexão filosófica ou religiosa) a sede de certos valores ou mesmo do Infinito, posso estar certo de que tais valores e o Bem Infinito existem no Além, em correspon­dência a tais aspirações.

Simone de Beauvoir, imbuída de existencialismo, escre­veu muito acertadamente:

"Uma vida, para que seja interessante, deve assemelhar-se a uma ascensão: galga-se um patamar e, depois, outro...; cada patamar não existe senão em vista do patamar seguinte... Se essa subida, chegando ao auge, retrocede, ela se torna absurda desde o seu ponto de partida" ("Le sang des autres").

Aprofundando um pouco mais estas reflexões, observa­mos: o universo se apresenta marcado por nota de profunda harmonia; é o que declaram os estudiosos de qualquer dos reinos naturais: mineral, vegetal e animal (irracional). Eins­tein experimentava admiração extática ao considerar a ordem do infinitamente grande. Aliás, as ciências naturais não se­riam possíveis se o universo e a natureza não fossem inteli­gíveis ou não fossem o produto de uma Inteligência Suprema que concebeu cada uma das criaturas (grandes e pequenas) e seu maravilhoso interrelacionamento. Pergunta-se, pois: somente o homem e sua existência sobre a terra seriam algo de absurdo ou destituído de explicação e razão de ser?

Vê-se que o absurdo consistiria, antes, em se admitir que somente o ser humano seja marcado pela nota do absurdo no conjunto das criaturas; parece desarrazoado que, colocado no todo harmonioso do universo, o homem, e somente o ho­mem, não se beneficie da ordem que se exprime no conjunto e em cada um dos seus outros setores.

Em conclusão: certas interrogações e aspirações espon­tâneas em todo homem exigem resposta. Ora, já que tal res­posta não é dada na vida presente por alguma das finitas criaturas que nos cercam, há uma vida póstuma, em que encontramos, sem disputa nem contestação, a resposta aos mais genuínos anseios do ser humano (resposta que é indis­sociável da fruição do Bem Infinito ou do Criador).

A propósito

R. Verneaux, "Filosofia do homem". Livraria Duas Cidades, São Paulo 1969.

"Unwandelbares im Wandel der Zeit", herausgegeben von Hans Pfeil. Band li, pp. 15-72. Aschaffenburg 1977.

PR 117/1969, pp. 372-385 (Deus existe ?);

PR 118/1969, pp. 411-416 (Absurdo ou Mistério ?).